Relatório do Cimi divulgado nesta quarta-feira (17) mostra que etnias tiveram 176 homicídios em 2021; número de invasões de aldeias triplicou; organizadores relacionam ataques a medidas do governo que favorecem a exploração e a apropriação privada de territórios
Por Mariana Franco Ramos
“Vocês querem ser seres humanos como nós?”, pergunta Neusa Kunha Takua Martine, a uma plateia lotada. “Podemos ensinar vocês”. Líder Guarani-Nhandeva do Rio de Janeiro, ela discursava sobre os números do relatório “Violência contra os Povos Indígenas do Brasil“, que mostram aumento em quinze das dezenove categorias sistematizadas.
O lançamento aconteceu nesta quarta-feira (17), no auditório da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília, e contou com transmissão on line. Autor da publicação, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) registrou 176 assassinatos em 2021 e 305 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio, espalhados por 226 Terras Indígenas (TIs) de 22 estados.
Em 28 delas havia presença de povos isolados, o que coloca a própria existência desses grupos em risco. No ano anterior, 263 situações de invasão haviam afetado 201 TIs em dezenove estados. E a quantidade triplicou em relação a 2018, quando aconteceram 109 casos do tipo.
A organização, ligada à CNBB, atribui o contexto geral de ataques a uma série de medidas do governo Jair Bolsonaro e de sua base aliada no Congresso que favoreceram a exploração e a apropriação privada dos territórios.
CRIANÇAS E ADOLESCENTES ESTÃO ENTRE VÍTIMAS DE CRIMES BÁRBAROS
“Bolsonaro é um assassino e deveria ser preso”, afirma Neusa. “O presidente da Funai também deveria estar preso”, completa, sobre Marcelo Xavier, da Fundação Nacional do Índio (Funai). “Como seria para vocês ver um filho ser morto dentro de casa?”, questiona. “Conviver com uma arma apontada o tempo todo? As mãos de vocês estão vermelhas do sangue do meu povo”.
Entre os casos contabilizados pelo Cimi estão execuções de crianças e adolescentes praticadas com extrema crueldade e brutalidade. Raíssa Cabreira Guarani Kaiowá, de apenas 11 anos, e Daiane Griá Sales, do povo Kaingang, de 14 anos, foram estupradas e mortas em agosto do ano passado. Os crimes ocorreram em Dourados (MS) e Redentora (RS), respectivamente.
“A mesma violência que a gente sofre no Mato Grosso do Sul todos os povos indígenas sofrem”, diz a Guarani-Kaiowá Alenir Aquines Ximenes. “A gente não tem nem mais sangue para derramar”, acrescenta. “Só peço que todos os apoiadores dos povos indígenas se levantem com a gente”.
— Ser indígena é sentir a dor dos seus povos. É chorar junto, se abraçar junto no momento difícil. Ser indígena, mesmo com a dor na alma, é dar aquele sorriso lindo, aquele grito lindo. É ir atrás de um futuro melhor para seus filhos, seus anciãos, para todos. É salvar o ar que respiramos. Da aldeia, da terra retomada, não vai sair uma doença que mata milhões.
PRESIDENTE CUMPRIU “PROMESSA” DE NÃO DEMARCAR TERRITÓRIOS
O Conselho Indigenista identificou que, das 1.393 terras indígenas no Brasil, 871 (62%) continuam com pendências para a regularização. Destas, 598 são áreas reivindicadas pelos povos originários que não contam com nenhuma providência do Estado para dar início ao processo.
Uma das responsáveis pelo relatório, Lucia Helena Rangel lembrou que o presidente cumpriu sua “promessa de campanha” de não demarcar nenhum centímetro de terra para quilombolas ou indígenas, aprofundando as desigualdades e violações de direito. “Nunca tínhamos visto isso”, afirma. “São atos governamentais que nos assustam”.
De acordo com a pesquisadora, os dados não tratam de algo localizado. “Em todo território nacional essas invasões ocorrem e a violência está cada vez maior”, lamenta. “Invadem, não só desacatam, como entram atirando, botam fogo em casa de reza, em roçado, em residência, e entram destruindo. É um grau de violência cada vez maior”.
Cerca de oitenta líderes Guarani e do povo Pataxó do Sul e do Sudeste do país, presentes na cerimônia, devem continuar na capital federal até o fim de semana. A expectativa é que as delegações visitem a Defensoria Nacional de Direitos Humanos, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o Ministério Público Federal (MPF), a Câmara e os Ministérios da Educação, da Justiça e da Saúde.
INVASORES TENTAM VENDER TERRAS ILEGALMENTE PELAS REDES SOCIAIS
O primeiro capítulo da publicação reúne um total de 1.294 casos de violência contra o patrimônio. Foram registrados: omissão e morosidade na regularização de terras (871 casos); conflitos relativos a direitos territoriais (118 casos); e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio (305 casos).
Também se destacam, nesta categoria, a queima de Casas de Reza, espaços centrais para a espiritualidade de diversas comunidades. O Cimi contabilizou quatro casos no Mato Grosso do Sul, envolvendo os povos Guarani-Kaiowá, e um no Rio Grande do Sul, com o povo Guarani-Mbya.
Entre os conflitos por direitos territoriais estão diversos registros de sobreposição de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) e de certificações de propriedades privadas sobre terras indígenas. O Conselho Indigenista informou que, em alguns casos, como nas TIs Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, e Barra Velha, na Bahia, houve a tentativa de venda de “lotes” de terra por meio de redes sociais.
Em relação aos casos de “Violência contra a Pessoa”, sistematizados no segundo capítulo, foram registrados os seguintes dados: abuso de poder (33); ameaça de morte (19); ameaças várias (39); assassinatos (176); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (21); racismo e discriminação étnico cultural (21); tentativa de assassinato (12); e violência sexual (14).
O número total, 355, é o maior desde 2013. Os estados que registraram mais assassinatos em 2021 são: Amazonas (38), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (32).
O Cimi divulgou, ainda, a ocorrência de 148 suicídios. E, apesar do início da vacinação, 847 indígenas morreram de Covid-19 em 2021. A Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), ligada à Funai, indicava a ocorrência de 315 óbitos no mesmo período.
“Essas populações enfrentaram a pandemia e morreram desassistidas e invisibilizadas em cidades, acampamentos e retomadas”, destacam os pesquisadores.
| Mariana Franco Ramos é jornalista. |
Foto principal (Tiago Miotto/Cimi): país bate recordes de violência contra indígenas na era Bolsonaro