Réu, “deputado das laranjas” transfere bens para os filhos e fica mais pobre

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Marquezelli e as laranjas. (Ilustração: Baptistão)

Alvo da Operação Registro Espúrio, Nelson Marquezelli (PTB-SP) tem histórico de projetos voltados à defesa da Cutrale, do setor cítrico e dos próprios interesses

Por Alceu Luís Castilho e Bruno Stankevicius Bassi

“Todo mundo legisla em causa própria”. Foi o que disse o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), produtor de laranja, após apresentar projeto de lei, em 1991, que obrigava escolas e quartéis a consumir suco de laranja. Era sua estreia na Câmara. Dono de 11 fazendas nessa época, em São Paulo e Minas, ele voltou a defender a ideia em 2009. Depois, em 2013, atuou no Congresso para dificultar a aprovação de um projeto de penhora online de bens – mesmo sendo alvo, na Justiça de São Paulo, de uma ação pelo bloqueio dos próprios bens.

Em 2018, Marquezelli desponta entre os denunciados na Operação Registro Espúrio, que investigou um esquema de negociação ilegal de registros sindicais no Ministério do Trabalho. A Polícia Federal confiscou, em julho, R$ 5 mil que estavam em sua mala. O deputado também já foi condenado por vender terrenos em um loteamento clandestino em Pirassununga (SP). Mas sua atuação mais recorrente é mesmo no setor agropecuário.

Ele é um dos políticos brasileiros mencionados em relatório da Amazon Watch divulgado internacionalmente nesta quarta-feira (11/09). O dossiê “Cumplicidade na Destruição” – cuja apuração no Brasil foi parcialmente feita pelo De Olho nos Ruralistas – aponta o papel dos consumidores da América do Norte e da Europa na consolidação de um modelo que, no Brasil, viola direitos ambientais e sociais, como os dos povos indígenas.

Ele pertence ao “trabalhista” PTB. (Foto: Divulgação)

Ex-presidente da Comissão de Agricultura da Câmara, aos 76 anos, o “deputado das laranjas” é um representante eloquente da bancada ruralista de São Paulo, a terceira maior da Câmara, seguindo o critério do número de integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária. É uma bancada que tem conexão direta com o setor industrial. Leia mais aqui: “Candidatos de SP preferem defender o setor da cana a participar da FPA”.

Em 2015, como membro da Comissão de Agricultura, Marquezelli ajudou a aprovar projeto de lei  (3.541/2012) que obriga as indústrias processadoras de laranja in natura – caso queiram receber financiamento do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – a adquirir pelo menos 40% das laranjas diretamente dos produtores rurais. Em outra votação, foi contrário a restrições a empresas que, ao mesmo tempo, plantem o fruto e tenham fábrica nessa cadeia produtiva.

O MILAGRE DA DIMINUIÇÃO DOS BENS

Integrante da tropa ruralista na CPI da Funai e do Incra, o deputado, que defende os jogos de azar, declarou neste ano um patrimônio de R$ 3,45 milhões; metade em espécie (R$ 700 mil) e em joias (R$ 1 milhão). Ele se tornou mais pobre: em 2014 seu patrimônio era de R$ 12,3 milhões. Motivo? Transferência de bens para os filhos. Pelo menos foi o que ele alegou após apresentar projeto de lei que anistiava multas da greve dos caminhoneiros – setor onde ele também atua.

A fortuna de R$ 12,3 milhões do deputado chegou a ficar bloqueada, em 2015, quando ele era réu em um processo relativo à criação de um loteamento clandestino em Pirassununga (SP), por uma de suas empresas, a FCJ Participações. Na época, Marquezelli era o Ouvidor-Geral da Câmara. Os lotes do Jardim do Urupês foram vendidos em uma região que a Secretaria Municipal de Meio Ambiente definia como Área de Preservação Permanente (APP).

Marquezelli continua aparecendo na base de dados da Receita Federal como proprietário de diversas empresas, junto com mulher e filhos. Em sua maioria, as que constam de suas declarações anteriores, como a FCJ Participações e a distribuidora de bebidas Brapira. Outras, não, como a holding Spalla Empreendimentos e Participações.

Terno e roupas de baixo. (Foto: Reprodução)

São várias locadoras de veículos (ele tem 120 caminhões para o transporte de bebidas) e uma de imóveis, chamada Orange – nome em inglês para laranja. Durante a greve dos caminhoneiros ele gravou um vídeo em apoio aos manifestantes que viralizou por um motivo peculiar: ele estava de terno em sua casa, diante de uma mesa de vidro, mas só da cintura para cima.

Em 2010, ao Tribunal Superior Eleitoral, o deputado ainda informava possuir fazendas. Mas elas não apareceram nas últimas declarações. Naquele ano eram cinco propriedades, todas no interior paulista: duas em Pirassununga, uma em Corumbataí (a São Francisco) e duas em Descalvado. Uma das fazendas em Descalvado – mais uma com nome de santo – foi declarada por R$ 1,4 milhão, a mais valiosa.

Em dezembro do ano seguinte Marquezelli abriu uma empresa com Valdecir Sebastião Peripato Filho, um obscuro fazendeiro em Descalvado (SP). Para cultivo de cana no município. Os dois são alvos de uma ação trabalhista movida em 2017 pela Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Em uma das audiências, um problema: Peripato ainda não constituíra um advogado.

DEPUTADO DEU AVAL A CARTEL

O vice-líder do PTB na Câmara investiu pesado na própria campanha, em 2014. Ele doou para si mesmo R$ 908 mil – o equivalente a cerca de quatro anos de salário como deputado. E ainda recebeu R$ 1 milhão de uma de suas empresas, a Brapira Comércio de Bebidas, fornecedora da Ambev. Soma: R$ 1,9 milhão. Ela representa a maior fatia da arrecadação em 2014, de R$ 2,56 milhões.

MST questiona fazendas da Cutrale. (Foto: Reprodução/TV TEM)

Só que Nelson Marquezelli não representa apenas a si mesmo. Durante a campanha de 2014 uma das principais financiadoras foi a Cutrale, multinacional do setor cítrico, com R$ 200 mil.  O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) vem fazendo há anos, na região de Agudos (SP), ocupações em terras públicas – desde 1909 – exploradas pela Cutrale e por outros fazendeiros.

Nesta segunda-feira (10/09), o MST fez mais uma ocupação no município. Em abril de 2017 tinha sido a vez da Fazenda Santo Henrique, que, segundo o movimento, tem 2.500 hectares de terras públicas ocupadas na vizinha Borebi (SP) pela Cutrale. Em 2012, Marquezelli assinou requerimento favorável à criação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) contra o MST.

O dono da multinacional, José Luís Cutrale, entrou em 2015 na lista dos bilionários da Bloomberg. Naquele ano era a 26ª pessoa mais rica do Brasil. Dez anos antes, por iniciativa de Marquezelli e do deputado Marcelo Barbieri (MDB-SP), seu pai José Cutrale Júnior- falecido em 2015 – ganhou homenagem na Câmara. “Sou produto da ideia e do trabalho dele”, declarou Marquezelli.

Em janeiro de 2015, a Cutrale foi denunciada por manter 23 trabalhadores em condições degradantes em uma fazenda no município de Comendador Gomes (MG). Em fevereiro, a Vara do Trabalho de Botucatu condenou a empresa por descumprimento de normas de segurança e saúde do trabalho. Entre as irregularidades identificadas pelo Ministério Público do Trabalho estava a falta de água potável. Em 2017, a empresa entrou na lisa suja do trabalho escravo.

O próprio Marquezelli contribuiu para regularizar a formação de cartel pela empresa, ao estimular – após partilha de fábricas e fazendas compradas da Cargill – a concentração de 70% do mercado de suco de laranja no Brasil por Cutrale e Citrosuco. Antes desse acordo, em 2000, ele vendia sua produção para a Citrosuco e era opositor da Cutrale. O valor pago pelas empresas pela formação de cartel em 2016, R$ 301 milhões, foi o mais alto determinado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Trabalho degradante em fazenda da Cutrale. (Foto: Ministério do Trabalho)

Em 2006, diante de investigação sobre cartel no mercado de laranjas, o deputado fez um requerimento para acompanhar um processo do Ministério de Justiça – da Secretaria de Direito Econômico – que resultara em uma busca e apreensão nas casas de diretores da Associação Brasileira dos Exportadores de Cítricos (Abecitrus) e nas sedes das empresas acusadas. Entre elas, a Cutrale. Na sala da presidência da empresa foi encontrada uma submetralhadora da marca israelense Uzi.

‘QUEM TEM DINHEIRO FAZ UNIVERSIDADE’

O nome de Marquezelli é mencionado em investigações desde os anos 90. Como na CPI dos Precatórios, em 1997, por causa de um cheque recebido de empresa suspeita. Na década seguinte ele estava entre os políticos de quem o Ministério Público Federal pedia devolução de dinheiro, por causa de um escândalo relacionado a viagens aéreas que ficou conhecido como farra das passagens.

Ele é alvo de inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) que investiga o recebimento ilegal de R$ 7,2 milhões, durante a campanha eleitoral de 2006, da empresa Global Assessoria Técnica em Comércio Exterior. A Polícia Federal investiga essa empresa por suspeita de participação em esquema de liberação de importações fiscalizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Alinhado ao governo Temer, inclusive na derrubada dos processos que investigariam o presidente por corrupção, na Câmara, Nelson Marquezelli votou a favor da PEC 241, que congelou por vinte anos gastos com educação e saúde. Uma de suas frases ganhou força, na época, nas redes sociais: “Quem não tem dinheiro não faz universidade. Os meus filhos têm e vão fazer”.

Formado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, ele teve sua distribuidora Brapira Comércio de Bebidas citada na Operação Alba Branca, em 2016, como endereço de entrega de propinas no caso do desvio de recursos da merenda escolar, durante o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) em São Paulo. O esquema de venda de produtos agrícolas superfaturados agia em pelo menos 22 prefeituras.

Na Câmara, o deputado do PTB tem histórico de votação contra os direitos dos trabalhadores. Ele votou pela ampliação da terceirização e a favor da MPV 665/2014, que dificultava o acesso ao seguro-desemprego. Entre os pontos rejeitados pelos líderes partidários durante a tramitação estava a extensão do benefício para os trabalhadores rurais que trabalham por safra.

Em 2014, Marquezelli recebeu R$ 30 mil, como doação de campanha, da Rio Claro Agroindustrial, braço goiano da Odebrecht Agro, hoje renomeada para Atvos, face canavieira da empreiteira baiana. Vários parlamentares do PTB são suspeitos, em meio às investigações da Lava Jato, de receber propina da Odebrecht. Entre eles, o deputado estadual Campos Machado, que controla a sigla em São Paulo.

Sobre a denúncia da Operação Registro Espúrio ao Supremo Tribunal Federal (STF), Marquezelli declarou ao UOL “não compactuar nem tolerar com atividades que vão contra o Estado Democrático de Direito”. À Globo News, ele disse, como vice-líder do PTB, que todos os deputados do partido estavam sendo investigados e que não tem nada a temer.

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