O mais antigo e respeitado cacique da região, Aritana Yawalapiti, viveu com os irmãos Villas-Bôas e organiza grupo com o filho e outros jovens graduados para defender território
Por Clarissa Beretz, do Alto Xingu
Aritana Yawalapiti chega ao ponto de sua aldeia com conexão à internet para fazer algo inédito em seus 70 anos de vida. Pela primeira vez, o mais antigo e respeitado cacique do Alto Xingu usa o whatsapp para falar com um amigo em São Paulo. “Que bom ter notícias de longe!”, entusiasma-se. O líder da etnia Yawalapiti é a mais velha autoridade atuante na região. Aos 19 anos, aceitou a incumbência de ser cacique.
Passou os cinco anos seguintes em reclusão, recebendo ensinamentos para ocupar o posto. O indígena que hoje usa a internet é um dos últimos remanescentes dos povos que caçavam e pescavam com arco e flecha nascidos antes da criação do Parque Indígena do Xingu (PIX). Ele cresceu ouvindo os irmãos Orlando e Cláudio Villas-Bôas, dois dos mentores da maior reserva indígena do mundo.
“Você é quem vai tomar conta dessa terra”, disse Cláudio ao jovem Aritana. “Quando o branco entrar aqui, ele vai vir com papéis e panos coloridos para convencer vocês. No dia em que você deixar, acabou o Xingu”, relembra.
Esse dia chegou, constata o líder, ao saber das declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o desejo de “integrar” os indígenas na sociedade capitalista e da proposta de uso de suas terras para lucrarem com o agronegócio: “Não precisamos plantar soja. Temos a nossa roça, mandioca, milho, pesca, caça. O governo tem que respeitar o nosso modo de vida”.
DEMARCAÇÃO ASSEGURA DIREITO PARA 16 ETNIAS
Homologada em 1961, a demarcação de quase 2,8 milhões de hectares para a criação do PIX (divididos entre Alto, Baixo e Médio Xingu) assegurou a 16 etnias o direito de viver em suas terras ancestrais como contrapartida à devastação promovida pela Marcha para o Oeste, programa do governo Getúlio Vargas que pretendia ocupar o Brasil central.
É nesse oásis isolado com florestas e rios, na região nordeste do Mato Grosso, que cerca de 8 mil índios vivem entre seus hábitos milenares e costumes adquiridos com o homem branco. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a área concentra o mais importante mosaico linguístico puro do país. Mas o rico território é ameaçado pela contaminação de seus rios por agrotóxicos e pelo roubo de madeira e minérios, além das barragens previstas no Rio Xingu e seus irreversíveis impactos socioambientais, como a hidrelétrica de Belo Monte.
Aritana diz que sua luta hoje não é mais de borduna. “É de papel, caneta e computador”, afirma. Essa parte ele conta que deixará para os jovens. Entre manter as tradições e enfrentar os desafios do presente, traçou uma estratégia com o filho Tapi, que mora em Brasília e faz mestrado em Linguística na Universidade de Brasília (UNB). E reuniu um time de indígenas graduados para defender o seu povo.
São jovens que concluíram cursos universitários e agora retornam para a aldeia, entre eles um mestre em Antropologia, dois bacharéis de Direito e um em Ciências Políticas. Eles auxiliarão os caciques na elaboração de documentos e tomada de decisões, conta Tapi, que se prepara para suceder o pai como o próximo cacique Yawalapiti.
A DEMARCAÇÃO DO XINGU PODE MUDAR?
Aritana lembra que o seu território está mais resguardado em relação aos outros povos indígenas do Brasil, já que a demarcação do Xingu, feita há 58 anos, assegura constitucionalmente ao seu povo viver nessas terras de forma vitalícia. Depois que a responsabilidade de demarcação territorial indígena foi transferida para o Ministério da Agricultura, resta saber se o órgão, comandado pela então líder da bancada ruralista no Congresso, Tereza Cristina, ousará mexer no até então intocável território do Alto Xingu para expandir o agronegócio na região.
O coordenador de políticas públicas do Greenpeace, Marcio Astrini, explica que, para isso acontecer, o governo teria de rever a demarcação, anular o processo ou aprovar via Congresso a alteração dos limites da reserva:
– O governo não pode arrendar uma terra indígena para a produção de soja simplesmente porque deseja. O país tem leis, que devem ser respeitadas. Apesar das Terras Indígenas pertencerem ao estado brasileiro, elas têm um destino: o direito de uso dos indígenas. Não pode haver outro destino ao mesmo tempo. Para tanto, seria preciso mudar a legislação atual, mudar a Constituição e desfazer a destinação. Só depois seria dado um novo destino (no caso, ao agronegócio) via licitação, leilão, regularização fundiária, etc. Seria algo absurdo. Mas não podemos duvidar de nada deste governo.
Para o líder do Alto Xingu, o governo tem uma dívida histórica com os indígenas. “Tomaram tudo o que tínhamos, principalmente dos parentes de outras etnias: terra, madeira, riquezas minerais”, afirma. “Então, tem mais é que dar melhorias. E sem contrapartida. Queremos internet, televisão, dentista? Sim, precisamos! Mas que respeitem a nossa forma de vida”, finaliza Aritana, enquanto sai de sua oca, nu, para tomar mais um banho no rio Toatoari.
Sua maior arma é a paciência. Ele acredita que a principal função de um cacique é promover o diálogo e o entendimento. Assim, o menino que tomava arranhadura de dente de piranha na pele para aprender a lidar com a dor prepara-se para os desafios. Nos encontros em Brasília e reuniões com fazendeiros, mantém o tom amigável. Aritana dialoga com figuras das quais discorda, como Blairo Maggi, ex-governador do Mato Grosso e ex-ministro da Agricultura do governo Temer, um dos maiores produtores de soja do mundo.
Maggi conversou com Aritana sobre a construção de uma estrada na região para escoar a produção de soja e milho desde Querência e Canarana (MT), rumo aos portos de Miritituba e Santarém, no Pará. “O Blairo falou que irá trazer melhorias para o nosso povo, porque poderemos levar os nossos doentes mais rápido para o hospital”, comenta. Aritana não quer o suposto benefício. Disse que não quer, pois a estrada facilitará “a chegada do que não presta”.