Médium declarou em dezembro possuir seis fazendas em Goiás, mas sua fortuna permanece desconhecida; MST e MCP protestam contra propriedades oriundas da exploração de mulheres
Por Julia Dolce
A quantidade total de terras que fazem parte da fortuna de João Teixeira de Farias, o João de Deus, ainda é obscura. Mundialmente conhecido como médium, tendo atuado por anos no município de Abadiânia (GO), o fazendeiro está preso preventivamente desde 16 de dezembro, após centenas de acusações de estupros durante supostos atendimentos espirituais.
Na manhã desta quarta-feira (13), 800 camponesas integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento Camponês Popular (MCP) ocuparam uma das terras em nome do médium: a fazenda Agropastoril Dom Inácio, localizada em Anápolis (GO).
De acordo com a assessoria de imprensa do MST, a propriedade foi ocupada por causa das múltiplas acusações de violações de mulheres. A ocupação faz parte da Jornada de Lutas do Dia Internacional da Mulher, que teve início no próprio 8 de março e segue até amanhã (14), primeiro aniversário do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL).
“Entendemos que essa propriedade foi adquirida com base em um processo de violência contra mulheres, então questionamos a própria posse da terra”, diz a porta-voz do movimento. “Ela precisa ser judicializada, retirada do proprietário, para passar pelo processo de reforma agrária, retornando à sociedade com alguma função social. Ele acumula milhões em patrimônio e muito dessa fortuna foi feita a partir de mulheres que buscavam auxílio e acabaram sendo violentadas”.
MST DIZ QUE NÃO HÁ PRODUÇÃO AGROPECUÁRIA VISÍVEL
O MST destaca que pretende manter um acampamento permanente na fazenda do médium, mesmo após a Jornada de Lutas, em um “processo contínuo de luta por essa terra”. O movimento não tem informações sobre outros processos e conflitos relacionados à propriedade nos cartórios da região. O processo sobre abusos sexuais corre sob segredo de justiça.
Questionada sobre a produtividade da terra, a assessoria de imprensa do movimento informou que precisaria de um laudo técnico para afirmar formalmente, mas que não visualizou nenhuma atividade agropecuária ou plantação na área ocupada.
A Fazenda Agropastoril Dom Inácio leva o mesmo nome da Casa espiritual Dom Inácio de Loyola onde, segundo as denúncias, João de Deus abordava e abusava das mulheres. Ela fica próxima da rodovia GO-433 e tem em torno de 700 hectares. A área, bem como as demais propriedades no nome do médium, está sub judice desde a abertura do processo pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO).
A prisão preventiva de João de Deus foi decretada após a descoberta de que, logo após as primeiras denúncias, ele movimentou R$ 35 milhões que estavam em contas e aplicações financeiras.
ELE TEM OUTRAS SEIS FAZENDAS EM GOIÁS
As propriedades de João de Deus incluem um garimpo de ouro em Nova Era (MG) e diversos endereços no próprio município de Abadiânia, entre eles a instituição filantrópica Casa da Sopa. Em buscas policiais nos endereços, foram encontrados mais de R$ 1 milhão em dinheiro e pedras preciosas, além de seis armas e munições.
Um levantamento realizado pela Folha em dezembro contabilizou, a partir de buscas em cartórios do município goiano, 27 registros de imóveis em nome de João de Deus. Entre eles, quatro na zona rural. Em 2008, a revista Galileu já apontava quatro fazendas em nome do médium, com produção de gado e soja.
Em depoimento formal à polícia em dezembro, o acusado afirmou ter seis fazendas no estado de Goiás, nos municípios de Crixás, Itapaci, São Miguel do Araguaia, Pirenópolis, Abadiânia e Anápolis.
Uma apuração realizada pela TV Record nos cartórios de Abadiânia e Anápolis ncontrou 86 imóveis registrados no nome de João de Deus e de sua atual esposa, Ana Keyla Teixeira Lourenço. A emissora enumera as fazendas Lages e Mocó, Capivary, Capivary dos Araújos e Soares, além de loteamentos urbanos.
TERRA NO ARAGUAIA INCIDE EM ÁREA PÚBLICA
De Olho nos Ruralistas teve acesso ao documento de compra da propriedade do médium em São Miguel do Araguaia, na fronteira com o Mato Grosso: a Fazenda Vista Alegre. A reportagem mostras que 38,79% da propriedade fica em área pública: “João de Deus desmata Cerrado em Fazenda na Floresta Estadual do Araguaia“.
A fazenda de 2.893 hectares tem 1.122 hectaress incidentes na Floresta Estadual do Araguaia, uma área pública, conforme dados registrados em 16 de novembro de 2016 no Cadastro Ambiental Rural (CAR).
No documento, João de Deus apresenta-se como fazendeiro. Alguns meses antes do registro da fazenda em São Miguel do Araguaia, o médium havia entrado com um processo solicitando, sem estudo de impacto ambiental, uma Licença de Exploração Florestal para o desmatamento de uma área de 4,84 hectares, em região classificadapela Secima como Cerrado Aberto Baixo (CAB).
A área seria transformada em pastagem. Antes do resultado do processo, João deu início ao desmatamento da área, e a Fazenda Vista Alegre sofreu dois embargos em áreas de Reserva Legal, também do Cerrado, que juntas somavam cerca de três campos de futebol.
MÉDIUM TROCOU GARIMPO POR FAZENDA
O observatório mostrou em dezembro que o braço direito de João de Deus, o piloto de avião, garimpeiro e fazendeiro João Américo França Vieira, aterrorizava garimpeiros no Pará. Ele é apontado como responsável pelo transporte aéreo de João de Deus para atendimentos. O médium possui um bimotor da Embraer, EMB-810C, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Acusado de cinco homicídios e absolvido por falta de provas, Vieira se apresenta como amigo de João de Deus há mais de 30 anos. O piloto é sócio de Márcio Martins da Costa, conhecido como o Rambo do Pará, morto pela Policia Militar do estado em 1992. Como explicou a reportagem “Braço direito de João de Deus fez parte de grupo que aterrorizou garimpos“, ele andava com diversas armas e usava uma fita na cabeça, como o personagem interpretado por Sylvester Stalone.
Rambo chegou a Castelo dos Sonhos, um distrito de Altamira (PA) e tentou tomar os garimpos do distrito, mas acabou expulso pela família do primeiro ocupante das terras. A informação consta do livro “Dono é quem desmata – conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste do Pará”, dos pesquisadores Maurício Torres, Juan Doblas e Daniela Fernandes Alarcon. Eles afirmam que Rambo voltou meses depois para tomar o garimpo da família e assassinou cinco pessoas.
Mesmo após o término da aventura em Castelo dos Sonhos, Vieira continuou sócio de integrantes do grupo de Rambo na MM Aviação, Comércio e Serviços. Segundo a Folha, Vieira se tornou dono de um garimpo de ouro em Crixás, de propriedade João de Deus. Ele trocou o garimpo, numa terra de 30 alqueires goianos, pela fazenda Fazenda Vista Alegre em São Miguel do Araguaia.
A atividade como garimpeiro também já tornou o médium réu em um processo. Em 1985, ele foi preso em flagrante com 300 quilos de autunita, minério com alto teor de urânio.
Além das acusações por estupro e posse de armas, João de Deus responde por coação e corrupção de testemunhas. Nesta terça-feira (12), o Tribunal de Justiça de Goiás concedeu um habeas corpus ao médium e a seu filho, Sandro Teixeira, no que se refere a essas últimas acusações. Sandro deve deixar a cadeia. O religioso permanecerá preso pelas outras acusações.