Avô da ministra da Agricultura entregou terras para grandes empresas no MT e encolheu Parque do Xingu

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Território do Xingu era para ser seis vezes maior. (Foto: Renato Soares)

Governador nos anos 50, Fernando Corrêa da Costa atropelou Constituição para entregar 4 milhões de hectares a vinte empresas, uma área do tamanho da Holanda; custo das terras aumentou 3.750%; parque foi reduzido a 13% do original

Por Leonardo Fuhrmann

Não é de hoje que a atuação da família Corrêa da Costa na questão agrária favorece grupos econômicos em detrimento da população, em especial da comunidade indígena. O avô da ministra da Agricultura, Tereza Cristina Corrêa da Costa, foi governador do Mato Grosso na primeira metade dos anos 1950. Durante sua gestão, Fernando Corrêa da Costa entregou terras públicas para empresas privadas, gerando uma disputa judicial que se arrastou no Supremo Tribunal Federal (STF) até 2013.

Fernando Corrêa da Costa (de chapéu): governador tomou decisões contra indígenas no Mato Grosso. (Foto: Reprodução)

Com início em 1959, esse foi um dos processos mais longos da história da Corte. A Constituição de 1946, em vigor na época da cessão de terras, impedia a alienação de áreas superiores a 10 mil hectares para um único beneficiário sem autorização do Senado. A gestão de Corrêa da Costa atropelou esse trâmite. Um dos objetivos era evitar que o Parque Nacional do Xingu fosse demarcado.

A proposta original de criação do parque foi apresentada pelos irmãos Villas Bôas em 1952. Os sertanistas haviam começado uma série de expedições à região em 1946. O projeto recebeu apoio público de figuras como o antropólogo Darcy Ribeiro e o então vice-presidente da República, Café Filho. A homologação do Parque Nacional do Xingu, no entanto, só foi feita pelo presidente Jânio Quadros, em 1961.

Se não conseguiu evitar a demarcação do parque, a distribuição de terras feita por Corrêa da Costa ajudou a diminuir significativamente suas dimensões. Dos 205.750 quilômetros quadrados inicialmente sugeridos, o parque acabou com apenas 26.240 quilômetros quadrados, 12,75% do original.

CESSÃO DE TERRAS MOTIVOU CPI NO SENADO

Antes do processo no Supremo, em 1955, as denúncias contra a cessão das terras geraram uma CPI no Senado, que concluiu pelo envio das conclusões ao procurador-geral da República para as medidas judiciais necessárias à anulação dos atos praticados pelo governo de Corrêa da Costa.

Com base em um relatório enviado pelo ministro da Agricultura da época, Filinto Müller, o senador Heitor Medeiros, proponente da comissão, apontava que a intermediação das colonizadoras aumentava em até 3.750% o custo da terra para os colonos, o que resultava num lucro “fabuloso” para essas empresas.

A influência da família da ministra na política da região era anterior à gestão de Fernando. O pai dele, Pedro Celestino Corrêa da Costa, bisavô de Tereza Cristina, havia sido governador do Mato Grosso em duas oportunidades, nas décadas de 1910 e 1920. Edith, irmã de Fernando, casou-se com Virgílio Alves Corrêa, escritor tido como autor da história oficial do estado.

O casamento deu parentesco a duas das famílias mais tradicionais da política local. Do lado Corrêa da Costa, a família teve os governadores Antônio, na década de 1830, e Mário, nos anos 1920 e 1930. Os Alves Corrêa governaram o estado nos anos 1920, com Estêvão. Fernando ainda governaria o estado mais uma vez na primeira metade dos anos 60, pela Arena, partido de sustentação da ditadura de 1964.

FERNANDO CORRÊA DOOU TERRAS DOS BORORO

Povo Bororo até hoje disputa terras. (Imagem: Reprodução/ “Rituais e Festas Bororo”, 1917)

Nesse segundo governo, Fernando Corrêa da Costa foi acusado mais uma vez de agir para prejudicar os indígenas com o intuito de favorecer familiares, políticos e juízes locais. Ele concedeu a colonos 75 mil hectares do território da etnia Bororo em Santo Antônio do Leverger. Segundo o autor do relatório Figueiredo, um documento feito durante a ditadura sobre violações aos direitos indígenas, como a área possuía 65 mil hectares, os Bororo ficaram “devendo 10 mil hectares aos colonos”, ironizou.  O relatório, de mais de 7 mil páginas, passou 45 anos desaparecido e só foi localizado em 2013.

A Terra Indígena Teresa Cristina – o nome é uma referência à imperatriz, não à ministra – tem 25.694 hectares. Originalmente a área foi demarcada em 1896 pelo Marechal Cândido Rondon e concedida pelo governo estadual com 65.923 hectares de extensão. Ações como a do avô da atual ministra conseguiram tomar mais de metade do território. Desde 1996, um processo de redemarcação das terras tramita na Fundação Nacional do Índio (Funai). O Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública para garantir a conclusão do procedimento.

As medidas de Fernando Corrêa da Costa para reduzir a área do povo Bororo continuaram com o seu sucessor, Pedro Pedrossian, e contaram com a anuência do governo federal e do próprio órgão que deveria zelar pelos direitos dos povos originários, a Funai. Em 1975, ela certificou a inexistência de indígenas na Fazenda Santa Maria, de pouco mais de 3.319 hectares, localizada dentro da reserva. A declaração favorecia o fazendeiro José Roberto Figueiredo Ferraz, de uma família tradicional de São Paulo. Só foi cancelada por uma portaria do fim dos anos 1980, após a redemocratização do país.

O paulista Figueiredo Ferraz abocanhou mais de 3 mil hectares dos Bororo. (Imagem: Acervo/ISA)

Nos anos seguintes, as famílias Corrêa da Costa e Alves Corrêa mantiveram o poder econômico como proprietários rurais e continuam em conflito com indígenas e camponeses, além de outros problemas socioambientais. Mônica Alves Corrêa e Mirian Alves Corrêa são donas da fazenda Esperança, em Aquidauana (MS), dentro de uma área indígena reivindicada pelo povo Terena. Um laudo antropológico aponta fraude na aquisição das terras. Outros Alves Corrêa e Corrêa da Costa estão envolvidos em disputas com povos indígenas nos dois estados (o Mato Grosso foi dividido em 1979) e em outras irregularidades no ambiente rural.

Da mesma forma, outros governadores após Corrêa da Costa escolheram a criação do Parque Nacional do Xingu como alvo. Nos anos 1980, o estado entrou com duas ações civis no STF contra a União, cobrando indenização pela demarcação das terras, sob o argumento de que a região não era originalmente ocupada pelos indígenas. Ambas foram julgadas improcedentes, por unanimidade, pelo pleno do tribunal em agosto de 2017. Os ministros consideraram que havia comprovações suficientes nos laudos antropológicos da presença histórica dos povos originários na região do parque. E que, portanto, as áreas pertencem à União.

TEREZA TEVE PARTICIPAÇÃO ATIVA NA CPI DA FUNAI

Hoje no comando do Ministério da Agricultura, Tereza Cristina tem sob seu comando a área de demarcação de terras indígenas, quilombolas e destinadas para a reforma agrária. O início de sua gestão, assim como os dois mandatos de deputada federal, acena para uma continuidade da política de favorecimento a grandes empresários em detrimento da população, principalmente dos povos originários.

Em novembro, já escolhida por Jair Bolsonaro para ser ministra, mas ainda na condição de presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), ela se reuniu com o então ministro da Justiça, Torquato Jardim, para pedir a suspensão da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, programa que tenta resolver as pendências sobre as demarcações de terras de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outras comunidades rurais, lançado em 2007.

Ministra Tereza Cristina paramentada como as Paresi, no Mato Grosso. (Foto: Reprodução)

 

Na Câmara, Tereza Cristina foi sub-relatora da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2017. Composta majoritariamente por ruralistas, a CPI da Funai e do Incra acabou sugerindo o indiciamento de lideranças indígenas, entidades e profissionais que trabalham pelos direitos dos povos originários e tradicionais.

Nas duas campanhas, Tereza Cristina foi financiada por grandes proprietários ligados a crimes contra os indígenas. Um dos doadores foi Jacintho Honório Silva Filho, centenário fazendeiro paulistano acusado de mandar matar o cacique Marcos Veron, da etnia Guarani Kaiowá. Ele perdeu a vida, em 2003, vendo seus companheiros serem torturados, no município de Juti.

Dono da fazenda Brasília do Sul, onde aconteceu o homicídio, Honório até hoje responde em liberdade a um processo que se arrasta. Ele doou R$ 30 mil para Tereza Cristina se eleger em 2014. Em 2018, foi a vez de seu filho Jacintho Honório Silva Neto, que também responde ao processo, doar R$ 10 mil.

John Francis Walton, fazendeiro em Caarapó, foi mais um a financiar a campanha de Tereza Cristina. Ele possui terras incidentes na Terra Indígena Amambaipeguá I. O pecuarista tem tentado passar o ônus da questão para os indígenas, acusando-os de roubar seu gado. Ele doou R$ 5 mil para a deputada em 2014 e em 2018.

ANTECESSORA DA CAMARGO CORRÊA FOI BENEFICIADA

Na ação contra a distribuição de terras para “colonização”, além do governo do Mato Grosso, são citadas como rés seis empresas beneficiadas, entre elas a Construções e Comércio Camargo Corrêa, antecessora de uma das principais empreiteiras do país. Nos últimos anos, a Camargo Corrêa frequentou o noticiário policial por outros motivos, como a admitida participação em esquema de fraude e corrupção na construção do metrô em sete estados e no Distrito Federal.

Megalatifúndio da Camargo Corrêa foi parar nas mãos da JBS. (Foto: Reprodução)

Seus executivos também foram condenados em primeira instância por corrupção, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa por conta de desvios na Petrobras. A empresa cresceu principalmente com a participação em grandes obras durante a ditadura.

Os irmãos Joesley e Wesley Batista, da JBS, compraram por R$ 135 milhões, em 2015, uma fazenda que pertencia à Camargo Corrêa, a Arrossensal. Ela fica no município de Nortelândia (MT) e possui 67 mil hectares – uma área quase do tamanho de Singapura.

Outras empresas beneficiadas pela medida e rés na ação pertenciam a grandes grupos econômicos regionais, como a Sociedade de Melhoramentos Irmãos Brunini, da família proprietária do Grupo Brunini de Comunicação, concessionário de rádio e TV no estado. Em 2001, o Diário de Cuiabá fez uma reportagem sobre a situação nas terras que foram concedidas a outra dessas empresas, a Colonizadora Rio Ferro, responsável pela chegada do primeiro grupo de japoneses e descendentes ao estado.

Os relatos mostram que mais de 50 famílias compraram áreas no projeto desta empresa. Praticamente todos os colonizadores deixaram a região até meados dos anos 70. Eles abriram estradas e desmataram para plantar na região do município de Chapada dos Guimarães. A primeira viagem de Cuiabá para lá, uma distância de 400 quilômetros, começou em julho de 1953 e só foi concluída em abril de 1955. Com a intenção de plantar café e seringueiras, os cultivos fracassaram.

Quando a reportagem foi publicada, o único a permanecer era Paulo Matsubara, filho do criador do projeto. Com tecnologia desconhecida na época, ele cultivava soja, milho e arroz em 5 mil hectares. Também ligada aos japoneses, a Cooperativa Agropecuária Extrativa Mariópolis (Capem) deu seus últimos suspiros no fim dos anos 70.

Ao todo, vinte empresas receberam áreas da ordem de 200 mil hectares cada uma. A área somada era de 4 milhões de hectares, equivalente ao tamanho da Holanda ou da Suíça. Ao fim do processo, os ministros concluíram que a cessão foi ilegal, mas os contratos não poderiam ser cancelados em nome da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima, porque a colonização já tinha gerado uma “situação factual consolidada”, com a criação de diversos municípios nas áreas entregues.

MATO GROSSO É O ESTADO COM MAIS LATIFÚNDIOS

Durante o julgamento no Supremo Tribunal Federal, o ministro Ricardo Lewandowski, um dos que foram voto vencido, destacou que a colonização dos dois estados gerou concentração de terras e de renda:

– Mato Grosso é o estado com o maior número de latifúndios no país, 8.428 propriedades que abocanham 69% do território estadual. Cada uma com mais de 3,5 mil hectares, elas são 8,9% do total de imóveis registrados. Trata-se da segunda maior concentração de latifúndios calculada proporcionalmente, perdendo apenas para a do vizinho Mato Grosso do Sul, com 92%.

Marco Aurélio Mello, do STF: “Pobres colonos”. (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

Também voto vencido, o ministro Marco Aurélio Mello lembrou que a distribuição das terras, segundo relatos dos anos 50, causou prejuízos a colonos e indígenas, com a entrega de áreas incidentes em territórios indígenas. Além da proteção aos povos e à cultura indígena, o parque ganhou uma importância ambiental. Nos últimos trinta anos, 66% das florestas nas adjacências foram desmatadas e substituídas por grandes monoculturas de base agroquímica.

As secas, os agrotóxicos, as pragas e o fogo descontrolado impactam diretamente na disponibilidade de recursos naturais importantes para os indígenas. Durante a audiência, Mello chegou a ironizar o fato de ter recebido um memorial da Camargo Corrêa pela legalidade da concessão das terras. “Pobres colonos”, disse.

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