Família Safra obteve 50 mil hectares em região Xavante durante a ditadura, em 1967

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Uma das fazendas do grupo Safra no Vale do Araguaia. (Foto: Reprodução)

Atividade pecuária dos banqueiros no Vale do Araguaia teve subsídio da Sudam; em nome de Joseph Safra, uma das empresas do grupo no Mato Grosso possui hoje 21 mil cabeças de gado e planta soja no município de Água Boa

Por Alceu Luís Castilho

A família do homem mais rico do Brasil, Joseph Safra, obteve, em 1967, 50 mil hectares de terras na Bacia do Araguaia, no Mato Grosso, em região de ocupação tradicional do povo Xavante. Na época o banco Safra era pilotado por Joseph, Moise (falecido em 2014) e Edmond Safra (falecido em 1999). O grupo cria gado e planta soja no município de Água Boa.

O Vale do Araguaia mato-grossense é a mesma região da Fazenda Suiá Missu, objeto de desintrusão – expulsão de invasores – no fim de 2012 e início de 2013, para a efetivação da Terra Indígena Marãiwatsédé. O MPF pede uma indenização de R$ 130 milhões para os Xavante.

Uma das empresas agropecuárias tem sede na Paulista. (Foto: Reprodução)

Mais de cinco décadas depois, as fazendas do grupo Safra no município de Água Boa estão em nome de duas empresas do grupo, a Pastoril Agropecuária Couto Magalhães S.A., com sede no Mato Grosso, e a Agropecuária Potrillo S.A., com endereço na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta.

Uma área de 50 mil hectares, como a do território obtido pela família Safra, equivale a cerca de duas vezes o território das Ilhas Cayman, no Caribe. Não há informação sobre incidência específica nas fazendas dos Safra, mas inúmeros estudos acadêmicos mostram que as terras cedidas nessa região eram ocupadas por indígenas.

A família Safra voltou aos holofotes por causa da doação de R$ 88 milhões anunciada na semana passada por Lilly Safra, viúva de Edmond Safra, para a reconstrução da Catedral de Notre Dame, em Paris. A família possui tradição em investimentos que define como filantrópicos.

Liliy Safra é dona de uma mansão bilionária na Riviera, na França, a Villa Leopolda. Avaliada em R$ 2 bilhões, ela já foi a mais cara do mundo, mas perdeu o posto. Ali, numa das regiões mais badaladas da Europa, a Côte d’Azur, cinquenta jardineiros cuidam de cerca de 8 hectares de bosques, à beira do Mar Mediterrâneo.

EMPRESA NO ARAGUAIA FOI CRIADA NOS ANOS DE CHUMBO

A Fazenda Campo Alegre, em Água Boa, está no nome da Agropecuária Couto Magalhães. A empresa foi criada no dia 26 de setembro de 1967, um ano antes do AI-5, em dezembro de 1968, um dos marcos do endurecimento da ditadura. A Guerrilha do Araguaia, massacrada pelo regime militar em 1972, começou exatamente em 1967, mas ao norte das terras dos banqueiros, no sudeste do Pará.

Um relatório anual da Pastoril Agropecuária Couto Magalhães S.A., publicado no dia 27 de março de 2018, mostra que a empresa possuía, em dezembro de 2017, 11.493 cabeças classificadas como “gado bovino” e 9.313 cabeças classificadas como “gado reprodutor”. No valor de R$ 10,7 e R$ 10,8 milhões, respectivamente. Valor da produção de soja do grupo: R$ 7,4 milhões.

O relatório também informa que a empresa fez um depósito judicial no valor de R$ 4,4 milhões, “vinculado à contingência fiscal referente a um processo onde se discute a origem dos impostos compensados”. O setor jurídico da corporação considera a probabilidade de perda do processo “remota”.

O endereço oficial da Agropecuária Couto Magalhães fica na própria Fazenda Campo Alegre, em Água Boa. O município foi fundado doze anos após a empresa, em 1979. Antes era Barra do Garças. O endereço da Agropecuária Potrillo é bem mais conhecido: Avenida Paulista, 2.100, esquina com a Rua Augusta. A sede do banco Safra.

Liderança Xavante, Juruna nasceu na região ocupada por empresas do Sul e Sudeste. (Foto: Reprodução)

A Agropecuária Potrillo possui um imóvel rural homônimo, a Fazenda Potrillo. Ela fica na mesma região do Rio Couto Magalhães, afluente do Rio Culuene, um dos formadores do Rio Xingu. Foi nessa região do Couto Magalhães que nasceu Mário Juruna (1943-2002), deputado federal pelo PDT nos anos 80, único parlamentar indígena durante o século 20.

A porteira da Fazenda Potrillo traz um grande S, de Safra. É ela quem ilustra a foto principal desta reportagem – reproduzida de um site sobre trilhas. Ela também fica na região do Rio Couto Magalhães.

Criada no dia 9 de outubro de 1985, já no primeiro ano do governo Sarney, a Potrillo possui um capital social mais tímido, de R$ 9,7 milhões. Em 2006, a empresa doou R$ 15 mil para a campanha ao Senado do ex-governador mato-grossense Blairo Maggi, na época, no PPS. O político viria a ser ministro da Agricultura ao longo do governo Temer.

O relatório da Agropecuária Potrillo referente ao ano de 2016 mostra que, naquele ano, a empresa possuía 3.652 cabeças “de gado bovino” e outras 3.331 cabeças de “matrizes e touros reprodutores”. Total da Potrillo: 6.987. Somando Potrillo e Couto Magalhães, portanto, o grupo teria cerca de 28 mil cabeças de gado.

TERRAS FORAM VENDIDAS A PREÇOS IRRISÓRIOS

Em dezembro de 2000, o Instituto Socioambiental (ISA) publicou um diagnóstico sobre a região das nascentes do Xingu – o que inclui o município de Água Boa. A Agropecuária Couto Magalhães é mencionada, ao lado da Agropecuária Suiá Missu, entre as empresas que obtiveram incentivos fiscais da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).

Segundo a organização, a concentração fundiária na região dos formadores do Xingu “se deu por intermédio da grilagem de terras originalmente indígenas”. E, conforme a versão oficial, por meio de incentivos do governo a empresários do Sul e Sudeste, “com a venda de grandes extensões de terra a preços irrisórios e com os incentivos fiscais da Sudam”.

Ainda de acordo com o ISA, a derrubada da mata para introdução do pasto – o projeto era de expansão pecuária – era uma condição para a titulação da terra. E o norte do estado do Mato Grosso foi o maior beneficiário desses incentivos fiscais, entre 1965 e 1978. Em particular ao longo da BR-158, que passa por Água Boa.

Uma tese de doutorado defendida pela historiadora Maria do Socorro de Sousa Araújo na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2013 mostra que os 50 mil hectares para a empresa do grupo Safra fizeram parte de um financiamento mais amplo no Vale do Araguaia mato-grossense, destinado a empresas que controlavam 2,17 milhões de hectares. Um terço desse total, 695 mil hectares (uma área maior que a Palestina), estava nas mãos dos invasores da Terra Indígena Marãwaitsédé.

Fazendeiros ainda tentam reconquistar Suiá Missu. (Foto: CPT)

Os empresários colonizadores, diz Maria do Socorro em sua tese, se conduziam como “bandeirantes modernos”. Por isso, e com a predominância dos sulistas, incorporavam a missão de conquistar territórios inóspitos e fazê-los “civilizados”.

A tese da historiadora não é a única a apresentar essa lista de empresas beneficiadas no Vale do Araguaia, obtida a partir de dados da própria Sudam. Aumeri Carlos Bampi, da Universidade do Estado de Mato Grosso, Mara Maria Dutra, do Instituto Federal de Mato Grosso, Carlos Alberto Franco da Silva, da Universidade Federal Fluminense, e Jeferson Odair Diel, da Universidade do Estado de Mato Grosso, escreveram em artigo que a Sudam contribuiu significativamente para a concentração fundiária por meio do estabelecimento dos latifúndios no Araguaia. E que os projetos agropecuários foram responsáveis pela expulsão da população que ocupava a região:

– Após 1960, empreendimentos latifundiários foram implantados e estabeleceram o cultivo de pastagens a pecuária extensiva. Com subsídios estatais, grupos econômicos realizaram a exploração florestal e a abertura de fazendas sobre o território Xavante. Os nativos foram realocados forçosamente com apoio do regime militar. Com essa transferência, muitos vieram a óbito por doenças e depressão, causadas pelo desenraizamento violento.

Outro documento do ISA reproduz anotações de campo do antropólogo Eugênio Gervásio Wenzel, realizadas em 1996, no Mato Grosso. Ele conta que perto do Rio Sete de Setembro, no Rio Couto Magalhães, o banco Safra tem uma fazenda, a antiga fazenda Campo Alegre, “e ali colocam tela no rio para impedir a passagem de peixes, especialmente na piracema”. “Em 1983 houve um conflito em Campinápolis por causa do peixe, resultando em duas vítimas entre os não índios”.

DENUNCIADO NA ZELOTES PRESIDE UMA DAS EMPRESAS

A Agropecuária Couto Magalhães tem um único sócio: Joseph Yacoub Safra. A empresa é presidida por João Inácio Puga, vice-presidente e conselheiro do grupo Safra denunciado pelo Ministério Público Federal em 2016, no âmbito da Operação Zelotes. Ele foi acusado de negociar propinas de R$ 15,3 milhões com servidores da Receita Federal, para a obtenção de decisões favoráveis no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Operação Zelotes investigou propinas pagas por empresas. (Foto: Reprodução)

A operação investigou um grupo de funcionários que favorecia empresas com dívidas milionárias com a União. Uma das empresas do grupo, a JS Administração e Recursos, tinha multas de mais de R$ 2 bilhões no Carf. Em 2017, a Procuradoria da República no Distrito Federal pediu dez anos de prisão para o executivo, denunciado também por corrupção passiva e obstrução da justiça.

Dono da Agropecuária Guerreiro Ltda, de Cuiabá, João Inácio Puga também aparece como um dos dois diretores da Agropecuária Potrillo, ao lado de José Roberto Marcellino dos Santos, mecenas do Museu de Arte Sacra e criador de cavalos. As Agropecuárias Potrillo e Couto Magalhães, como vimos, pertencem ao grupo Safra. O capital social da Couto Magalhães é de R$ 40,96 milhões.

Figura central no sexto maior banco do país, Joseph Safra chegou a ser denunciado, ao longo das investigações da Zelotes, mas foi excluído da ação em dezembro de 2016. Ele é o banqueiro mais rico do mundo, segundo a Forbes, com um patrimônio de US$ 25,2 bilhões. É o homem mais rico do Brasil.

O jornal espanhol El País informa que o banco Safra tem 1 milhão de clientes, poucos diante dos 77 milhões do Itaú, mas aposta em nichos, como as pequenas empresas e os proprietários de terra do interior paulista – onde possui a maior parte de suas agências.

SAFRA E CUTRALE CONTROLAM ANTIGA UNITED FRUIT

Em 2017, uma joint venture entre o Safra e a Cutrale – gigante do setor de cítricos – adquiriu por US$ 1,3 bi a empresa de bananas Chiquita Brands. A marca foi eternizada pela cantora Emilinha Borba em 1948 e 1949, com a música “Chiquita Bacana”, um sucesso internacional. Mas ela já tinha sido registrada dois anos antes, em 1947 pela United Fruit Company, dos Estados Unidos.

Safra e Cutrale compraram Chiquita Brands, antiga United Fruits. (Imagem: Reprodução)

A United Fruit participou ativamente da derrubada de democracias na América Latina. Um dos episódios de “Cem Anos de Solidão”, um clássico do colombiano Gabriel García Márquez, retrata o Massacre das Bananeiras, de 1928, quando mil grevistas foram metralhados por militares no município de Aracataca, em defesa da United Fruit. A empresa motivou também um poema do chileno Pablo Neruda, publicado em 1950 no livro “Canto Geral“.

O jornalista Peter Chapman descreveu os horrores relativos à empresa no livro “Bananas – How the United Fruit Company Shaped the World” (Canongate, 2009). Entre outras ações da empresa – cujas iniciativas políticas inspiraram a expressão “república das bananas” – estiveram um golpe na Guatemala e o envolvimento na invasão de Honduras.

Comprada em 1969 pela Zapata Corporation, a United Fruit mudou seu nome para Chiquita Brands. Foi com esse nome que a empresa foi julgada nos EUA, em 2007. O grupo teve de pagar US$ 1,7 milhão ao Departamento de Justiça. Motivo: sua subsidiária colombiana financiou – com US$ 25 milhões – grupos paramilitares responsáveis pelo massacre de camponeses, em áreas de plantação de bananas.

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