A história do trabalhador que morreu em máquina de moer frango – e do frigorífico onde ele trabalhava

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A família de Rodrigo Lopes ainda aguarda informações do inquérito sobre sua morte, em março, no município de Eldorado (MS); polícia trabalha com acidente como principal linha de investigação, mas suicídio e homicídio não foram descartados

Por Julia Dolce

Morte número 1. No dia 7 de março, Rodrigo Lopes, gremista, fã de humoristas de comédia stand-up e funcionário há um ano do frigorífico da Bello Alimentos Ltda, em Eldorado (MS), morreu ao cair por acidente em uma máquina de moer frango.

Morte número 2. Lopes comprara havia pouco tempo um Volkswagen Gol 0 km. Meses antes, iniciara um namoro com foto no Facebook e tudo. Mas cometeu suicídio se lançando em uma máquina de moer frango.

Morte número 3. Um dos colegas de trabalho de Lopes, olhos verdes, aparelho nos dentes e alargador nas orelhas, o empurrou, escolhendo a máquina de moer carne como instrumento do homicídio.

Desde essa data, as três linhas de investigação sobre a morte de Rodrigo estão sendo analisadas pelo delegado Pablo Reis, da Polícia Civil de Eldorado. Quase dois meses após o ocorrido, pouco noticiado pela mídia, a delegacia aguarda o laudo do Instituto Médico Legal (IML) sobre as condições em que o corpo foi encontrado.

A família de Rodrigo ainda tem poucas informações sobre o caso. No velório, realizado no dia seguinte e financiado pela empresa, o caixão estava aberto. Para a surpresa da mãe de Rodrigo, empregada doméstica aposentada, de seu irmão, Ricardo, vendedor e estudante do terceiro ano do Ensino Médio do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), e de sua irmã.

Polícia não teve ainda acesso ao laudo do IML para dar andamento ao inquérito. (Foto: Reprodução)

O busto de Rodrigo ficou praticamente preservado. No seu rosto, uma cicatriz disfarçada com maquiagem cortava o espaço entre o nariz e o lábio. Do tronco para baixo, o que restou do corpo do operador de máquinas estava coberto por flores. A família notou que Rodrigo não levava as mãos sobre o peito, pose tradicional em velórios, e assim percebeu que seus membros superiores estavam ausentes.

“Ele parecia em posição de sentido, com os braços cobertos por flores, não conseguimos ver”, contou o irmão. “O maior dano, com certeza, foi na parte de baixo do corpo”. Até agora, além do pagamento do velório, a família não recebeu nenhum tipo de indenização ou assistência por parte da empresa.

FRIGORÍFICOS SÃO AMBIENTES DE TRABALHO PERIGOSOS

Apesar da fatalidade representada pela cena, da lentidão no inquérito e das estranhas linhas de investigação, acidentes de trabalho que acabam em óbitos são um fenômeno comum em frigoríficos. O extinto Ministério do Trabalho e Emprego classificava, por meio de uma escala crescente, os ambientes mais perigosos para a saúde do trabalhador. O setor de frigoríficos se situa na faixa três, a segunda mais grave.

Entre 2006 e 2013, conforme dados do Boletim Epidemiológico referentes ao agravo à saúde para trabalhadores da indústria de carnes no Brasil, houve 47 óbitos no setor por conta de acidentes de trabalho.

No abate de bovinos, ocorrem duas vezes mais traumatismos de cabeças e três vezes mais traumatismos de abdômen, ombro e braço do que em outras profissões. O risco de sofrer uma queimadura nesses ambientes é seis vezes superior ao de outros locais de trabalho. No abate de aves e suínos, o risco de um funcionário sofrer uma lesão no punho ou nos plexos nervosos do braço é 743% maior.

Os dados da multiplicação de diferentes acidentes de trabalho no setor de abate de carnes são do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário do antigo Ministério da Previdência Social (MPS), atual Secretaria da Previdência do Ministério da Economia.

Exclusivamente no abate de aves, a chance de um trabalhador desenvolver um transtorno de humor, como uma depressão, é 3,41 vezes maior do que em outras categorias. Rodrigo conduzia, sozinho em uma sala, o moedor de carne de frango.

A possibilidade de ele ter cometido suicídio é analisada pela investigação devido à altura da abertura do triturador da máquina, que batia no peito da vítima. Ouvido pelo De Olho nos Ruralistas, o delegado Reis diz que não teria como o funcionário ter se “desequilibrado e caído dentro da máquina”:

O trabalhador subia em uma plataforma para lançar o tempero para os embutidos nessa máquina. Mas ele ficava mais ou menos na altura do peito. É muito difícil cair nela, a não ser que ele tenha se pendurado para pegar algo que tenha caído lá dentro. Então estamos tentando entender como ele poderia ter caído. Se for acidente, certamente ele precisou se pendurar para puxar algo ali dentro.

A tese de que o irmão tenha se suicidado espanta Ricardo. Ele afirma que Rodrigo nunca apresentou sinais de depressão e falava bem sobre o emprego no frigorífico:

É impossível. Ele não tem nenhum histórico de insanidade, de remédio, de passagem por psiquiatra ou mesmo psicólogo. Não percebi nada de diferente no comportamento dele, era o irmão que sempre tive, muito vivo e apaixonado pela vida.

FAMÍLIA NÃO TEVE ACESSO AO LOCAL DA MORTE

Segundo Ricardo, antes de conseguir o emprego na Bello Alimentos, o irmão trabalhava como segurança em um banco próximo da fronteira com o Paraguai. Ele possuía porte de armas, o que significa que passou nos testes psicotécnicos da categoria. A hipótese de Rodrigo ter tido acesso a uma arma de fogo por tanto tempo e ter se matado pulando no moedor de carne é vista com bastante desconfiança por seu irmão. “Temos certeza que não tem como ser isso”, questiona. “Já a hipótese de assassinato… Quem teria a intenção de matá-lo?”

A prepocupação com segurança ostentada no cartaz da Bello não condiz com a realidade da empresa. (Foto: Reprodução).

O delegado Pablo Reis diz que não consegue acreditar que alguém tenha se suicidado “daquela forma dolorosa”. Mesmo assim, a Polícia Civil não descarta a possibilidade de suicídio ou de homicídio.

Ele morreu num fim de tarde e não havia ninguém com ele naquele momento. Dois funcionários trabalhavam em salas próximas e foram chamados para depor. Eles alegaram que não testemunharam o fato. Na data, câmeras de segurança ainda estavam sendo instaladas, na fase final de cabeamento, pela Bello Alimentos. A cena da tragédia foi isolada logo em seguida pela polícia e pela empresa, e ninguém da família teve acesso ao local.

Foi por meio de um telefonema da psicóloga do frigorífico que a irmã de Rodrigo soube da morte do irmão. E que teria de cumprir o difícil papel de identificação do corpo. Segundo Ricardo, avisado em seguida, a psicóloga foi bem pontual em sua fala: “Não deu muitas informações”.

Por último, ambos avisaram a mãe. “Ela não teve reação, ficou em choque”, conta Ricardo. “Minha mãe sempre prezou muito pela carteira assinada, porque, por ser doméstica, nunca teve a carteira assinada”

INDENIZAÇÃO DEPENDE DO TIPO DE INVESTIGAÇÃO

A família foi informada sobre a possibilidade de indenização pela morte da vítima pelo contato com a reportagem. Até então, passado quase um mês do ocorrido, eles não haviam contatado um advogado. A desinformação das famílias que tiveram um membro vítima de acidente de trabalho não é rara.

Um levantamento feito em 2012 pela ONG Repórter Brasil mostrou que os funcionários que se acidentam gravemente ou desenvolvem doenças ocupacionais em frigoríficos têm indenizações comparáveis às recebidas por cidadãos que tiveram seus nomes inseridos indevidamente no cadastro de “maus pagadores” da Serasa Experian. A ONG chegou a essa conclusão coletando dezenas de processos aleatoriamente nos sites dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) de três estados que concentram indústrias importantes de carne: Goiás, Mato Grosso e Santa Catarina.

O trabalhador pode reivindicar na Justiça basicamente dois tipos de indenização: uma por dano material, que visa ressarcir o tempo e a capacidade de trabalho perdidos, e outra por dano moral, que compensaria o sofrimento e abalo psicológicos provocados por problema de saúde. Ambas as ações podem ser pedidas pela família do funcionário acidentado no caso de óbito.

No entanto, com a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) em vigor desde novembro de 2017, acidentes de trabalho que aconteceram durante o período de trânsito do trabalhador não são mais indenizáveis. Além disso, a reforma estabeleceu a necessidade de pagamento dos honorários sucumbenciais caso os trabalhadores percam o processo, o que inibiu as já subnotificadas denúncias. Dados divulgados em novembro pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) mostram que, um ano após a reforma, houve uma redução de 36% nas ações trabalhistas ajuizadas.

No caso de trabalhadores que cometem suicídio durante o exercício da função não há responsabilidade do empregador quanto à reparação do dano sofrido. A jurisprudência foi estabelecida pela 6ª Turma do TST, em uma morte ocorrida em dezembro de 2008, em Catanduvas (SC), quando uma operária se jogou de um caminhão em movimento da empresa.

Em relação à jurisprudência de homicídios ocorridos durante o expediente, a 6ª Turma do TST se pronunciou em julho de 2018, no caso de uma empregada morta por um colega de serviço em uma loja de móveis de Sobral (CE). Na ocasião, o tribunal condenou a empresa a indenizar os herdeiros da funcionária, entendendo que estava configurada sua responsabilidade objetiva pelo ato praticado por empregado no local e horário de trabalho.

SÓCIOS RESPONDEM A PROCESSOS POR FALTA DE SEGURANÇA

Não seria a primeira vez que a Bello Alimentos teria de indenizar funcionários e familiares. A empresa, que não retornou os pedidos de entrevista por e-mail e por telefone realizados pela reportagem, responde a alguns processos por insalubridade ocupacional.

Com capital social anunciado em torno de R$15 milhões, a Bello Alimentos foi fundada em 2006 na região do município de Itaquiraí (MS). Em sua página oficial, ela afirma ter sido idealizada por um grupo de empresas com vasta experiência no segmento avícola. A marca Frango Ouro, com sede em Aparecida do Taboado (MS), foi integrada à Bello no ano de 2010.

Os principais sócios da Bello Alimentos são Roberto Carlos Miotto Ferreira e os irmãos Lauri Francisco Paludo e Adroaldo Antônio Paludo, também sócios da Pluma Agroavícola, produtora de ovos férteis paranaense fundada nos anos 1990. O nome de Adroaldo reúne processos de danos morais referentes à falta de condições de higiene e segurança no ambiente de trabalho.

Em um processo julgado em segunda instância em março de 2018, um funcionário reclama ter trabalhado em um aviário do empresário e de Adriana Maximiliano Paludo removendo aves mortas e outros dejetos sem o equipamento de proteção individual, exposto à possibilidade de contaminação. Fotografias anexadas ao processo mostravam o trabalhador andando sobre as fezes dos animais com suas roupas e calçados de uso diário.

Processados pelo juiz Marcelo Baruffi, da 1ª Vara Trabalhista de Três Lagoas, que estabeleceu apenas um adicional de insalubridade em grau médio para o funcionário, os empresários recorreram e perderam também em segunda instância, segundo decisão do relator, o desembargador Francisco das C. Lima Filho, da Segunda Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região.

O empresário Miotto já foi condenado ao pagamento de R$ 7 mil por danos morais para o funcionário Izaias Macedo de Mattos, pelo desembargador do trabalho Ricardo Geraldo Monteiro Zandona, em 2014. O processo denunciava tanto a terceirização do trabalhador para serviços relacionados à atividade fim quanto a falta de equipamentos de proteção individual de segurança. Sem falar do ambiente inadequado para a realização de alimentação e higiene pessoal, em uma granja.

Miotto foi condenado ao pagamento de indenização por danos morais para outro funcionário, também em 2014, por expô-lo à insalubridade de grau máximo. Na ocasião, o juiz de primeira instância considerou que o funcionário trabalhou “em contato permanente com carnes, glândulas, vísceras, sangue, ossos, couros, pelos e dejeções de animais portadores de doenças infectocontagiosas (carbunculose, brucelose, tuberculose)”.

Processo condenou sócio da Bello Alimentos a indenizar funcionário sem equipamento de proteção. (Imagem: Reprodução)

Outros processos referentes a acidentes de trabalhos são facilmente encontrados no nome da Pluma Agroavícola Ltda.

Em maio de 2013, a empresa foi inocentada, em segunda instância, ao pagamento de indenização por danos morais à família de um trabalhador que morreu intoxicado pela aplicação de formol. Ele ficou exposto à substância por horas ininterruptas durante o trabalho em um aviário. A empresa alegou inexistir nexo causal, ou seja, relação, entre o evento da morte e o trabalho realizado pelo funcionário. O inquérito policial foi arquivado concluindo que a ligação não poderia ser feita.

De acordo com o inquérito policial, o ex-empregado foi encontrado caído e sem sinais vitais, em cima de uma plataforma que continha caixas d’água, próxima do aviário ao qual prestava serviço. A companheira do funcionário morto, Graciane de Oliveira, seu filho menor e os pais do empregado falecido interpuseram a ação alegando que a empresa não forneceu equipamentos de proteção adequados ou treinamento para execução da atividade.

O funcionário Gilmar Flores, testemunha ouvida pelo inquérito, afirmou que a máscara utilizada pelo colega não possuía validade e era a mesma utilizada por todos que trabalhavam na granja. Flores disse também que os funcionários não tiveram treinamento para uso do formol. A conclusão do laudo do IML foi “morte de origem indeterminada”. O tribunal negou o agravo de instrumento da família do funcionário, por reconhecer que não havia relação de causalidade entre a morte e a atividade exercida pelo trabalhador.

Funcionários da empresa recebem treinamento de emergência a distância. (Foto: Reprodução)

Pouco mais de um mês após a morte de Rodrigo Lopes, a Bello Alimentos estampou, orgulhosamente, em seu site, o início de treinamento de seus funcionários a distância. O treinamento foi uma parceria com o Sesi e o Senai na unidade de Itaquiraí. Foram cedidos 13 notebooks para que os “colaboradores” realizassem módulos online, segundo a empresa, “otimizando o tempo nos treinamentos”.

“Assim conseguimos tirá-los duas horas por dia do trabalho, distribuindo em vários dias até fechar a carga horária necessária para conclusão”. diz o texto. O curso, realizado entre março e abril, chama-se NR 23- Brigada de Emergência.

EMPRESA JÁ FOI PROIBIDA DE EXPORTAR

Em abril de 2018, a Bello Alimentos Ltda foi um dos vinte frigoríficos brasileiros proibidos de exportar para a União Europeia (UE). O motivo? A deficiência do controle sanitário sobre os processos de abate e exportação. “Nós confirmamos que os representantes dos países votaram por unanimidade a favor de desligar vinte estabelecimentos brasileiros de exportar carne e seus derivados, especialmente frango”, diz o comunicado da UE.

Em 2015, a China já havia suspendido a compra de produtos da Bello Alimentos, devido à suspeita de contágio químico. O país identificou cargas contaminadas por dioxina, substância que está entre as mais tóxicas conhecidas. Alguns tipos de dioxina, como o 2,3,7,8-TCDD, são reconhecidamente cancerígenos para humanos, conforme a Agência Internacional de Pesquisas do Câncer (IARC).

No site da Bello Alimentos e do Grupo Pluma é possível observar que os principais compradores de seus produtos estão no Oriente Médio. A empresa conquistou, em 2015, a certificação halal, necessária para entrar no comércio local. Para tanto, as empresas passam por um processo de auditoria, apresentando certificados e fichas técnicas das matérias primas utilizadas.

“Legal” ou “permitido” em árabe, halal é também o termo utilizado para descrever os alimentos apropriados para o consumo da população muçulmana. O Selo Halal é obtido quando a empresa prova estar de acordo com os preceitos e as normas ditadas pelo Alcorão Sagrado e pela Jurisprudência Islâmica. Dentre os critérios estabelecidos, alguns são puramente religiosos, como a garantia de que o primeiro sangramento dos animais abatido seja realizado em direção a Meca, principal templo islâmico.

O abate halal envolve uma arquitetura de frigoríficos especialmente pensada para seguir as normas islâmicas, bem como a contratação de funcionários muçulmanos para realizarem fases específicas do abate. O assunto tem ganhado a mídia nos últimos meses devido ao desconforto causado pelo presidente Jair Bolsonaro ao prometer transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Com a transferência, uma afronta ao governo palestino, as relações comerciais entre a indústria brasileira de carne e o mercado do Oriente Médio ficaram estremecidas.

Os critérios da norma halal envolvem responsabilidades trabalhistas, sociais e ambientais. A garantia do bem estar dos trabalhadores é o pré-requisito mais importante para se conseguir o selo. Segundo Mohamed Hussein El Zoghbi, presidente da Fambras Halal, primeira e maior certificadora do Brasil, o procedimento é um “padrão ético e moral de ações lícitas no que diz respeito à alimentação, ao ambiente social, à conduta, à justiça, às vestimentas e às finanças. Um sistema baseado em princípios e valores que beneficiam a humanidade”.

Mapa de exportação da Bello Alimentos

A avicultura brasileira é a maior produtora e exportadora de carne de frango halal do mundo. Em 2018 foram 1,438 milhão de toneladas embarcadas para mercados muçulmanos, a maioria para países do Oriente Médio. Em fevereiro de 2019, a Bello Frangos foi uma das empresas agrícolas presentes no evento Gulfood Dubai 2019, buscando acelerar os novos negócios. Notícias sobre o mercado halal e o comparecimento a eventos da indústria agrícola no Oriente Médio são amplamente divulgados no site da Bello Alimentos.

Uma série de denúncias já foram feitas por funcionários de frigoríficos que negam que os preceitos religiosos do halal sejam colocados em prática no Brasil, principalmente por falta de tempo, como expôs uma reportagem de 2012 da ONG Repórter Brasil. Com a onda de pedidos de refúgio por muçulmanos no Brasil desde 2015, também explodiram denúncias de precarização do trabalho desses imigrantes em indústrias de carne que necessitavam de trabalhadores muçulmanos para obterem o selo halal.

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