Armas liberadas: “residente em área rural” representa 16% da população brasileira

In De Olho na Política, De Olho nos Conflitos, Em destaque, Governo Bolsonaro, Povos Indígenas, Principal, Quilombolas, Sem categoria, Sem-Terra, Últimas

Nada menos que 30 milhões de pessoas vivem no campo, segundo o IBGE; especialistas são unânimes em afirmar que decreto de Bolsonaro, discutível do ponto de vista constitucional, radicaliza a exposição da população mais vulnerável à violência

Por Maria Lígia Pagenotto

O último decreto sobre armamento do presidente Jair Bolsonaro, assinado na terça-feira (07/05), é claro: o cidadão “residente em área rural” poderá portar e usar armas de fogo dentro de suas propriedades. Desde que se encaixe em alguns requisitos, entre eles ter mais de 25 anos.

A medida afeta diretamente o cotidiano de 16% da população – 30 milhões de pessoas que vivem no campo, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para a professora Tania Bacelar de Araújo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora da Ceplan Consultoria Econômica e Planejamento, o percentual de moradores de áreas rurais no Brasil está subestimado pelo IBGE – portanto esse dado seria muito maior.

O Brasil tem cerca de 70 milhões de pessoas vivendo em áreas rurais, segundo estudo feito pela pesquisadora Tania Bacelar. (Foto: UFPE).

Há três anos Tania coordenou um estudo que considera como 36% o percentual de pessoas vivendo em áreas rurais do país. Isso significa 70 milhões de brasileiros. A pesquisa “Repensando o Conceito de Ruralidade no Brasil: Implicações para as Políticas Públicas” foi desenvolvida com apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, o Ministério do Planejamento e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Segundo ela, muitos municípios brasileiros têm menos de 5 mil habitantes. “Sociologicamente, essas localidades deveriam ser consideradas zonas rurais, e não urbanas”, diz a professora. “O estilo de vida dessas pessoas é mais ligado à natureza, as relações sociais são diferentes”.

Para o IBGE, afirma a pesquisadora, o conceito de ruralidade é dado por exclusão: “Urbano é todo brasileiro que mora no perímetro urbano de um município e esse limite é definido por uma lei municipal, que pode ser mudada com facilidade”. Quem está fora dessa área, portanto, é considerado morador de área rural.

Dessa forma, é difícil mensurar quantos serão os brasileiros que poderão se valer do decreto presidencial para portar armas. “Eu creio que, no momento de definir quem é o morador de área rural serão levados em conta os dados oficiais, que são os do IBGE”, argumenta a professora da UFPE. Mas, para ela, não fica muito claro, por exemplo, o que significa esse decreto para uma pessoa que se considera moradora de área rural, mesmo oficialmente estando em perímetro urbano:

– Morar no perímetro urbano de São Paulo é uma coisa, de um município com uma população de 5 mil pessoas, no Nordeste do Brasil, por exemplo, é outra coisa bem diferente.

CPT: ‘PRESIDENTE QUER AGRADAR QUEM O ELEGEU, E NÃO GOVERNAR’

O Decreto nº 9.785, publicado no Diário Oficial da União na terça feira, deixa claro que pessoas residentes em áreas rurais, acima de 25 anos, poderão portar e usar armas de fogo dentro de propriedades rurais. Com a nova medida, Bolsonaro permite que toda a área de uma propriedade rural seja considerada como a residência ou o local de trabalho do proprietário, autorizando o uso de armas dentro de seus territórios.

O decreto foi assinado menos de um mês depois de a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgar um relatório que mostra aumento no número de área e no número de famílias envolvidas em conflitos e expulsas de suas terras. O relatório da comissão mostra ainda o aumento do número de conflitos por água, questões trabalhistas e disputas relacionadas à mineração ao longo do ano passado.

A medida radicaliza as ideias expostas pelo presidente ao longo de sua campanha e de seu mandato. No fim do mês passado, durante a Agrishow (Feira Internacional de Tecnologia Agrícola), em Ribeirão Preto, o presidente garantiu que irá apresentar um projeto de lei para isentar de responsabilidade os donos de terras que atirarem contra quem ocupar suas propriedades:

– A propriedade privada é sagrada e ponto final. 

Bolsonaro assina decreto que libera ainda mais as armas, ao lado de integrantes da bancada da bala. (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Para Jeane Bellini, da coordenação nacional da CPT, o decreto faz parte de uma série de medidas anunciadas ou concretizadas pelo atual governo que diminuem a segurança da população do campo. “O presidente parece mais preocupado em agradar a parcela da população que o apoiou do que em governar o país”, disse. Em janeiro, o governo já havia publicado um decreto para facilitar a posse de armas, excluindo a comprovação de necessidade.

Além de facilitar o porte para residentes em áreas rurais, a medida incluiu colecionadores, atiradores e caçadores entre os beneficiados. E autoriza essa categoria a transportar a arma carregada e municiada no transporte entre a casa e o clube te tiro. O texto permite a livre importação de armas e munições e amplia o prazo de validade do certificado de registro de armas para dez anos.

O decreto aumenta a quantidade de munição que pode ser adquirida por proprietário. O limite passa a ser de mil munições anuais para cada arma de fogo de uso restrito e de 5 mil munições para as de uso permitido registradas. O limite anterior era de 50 unidades.

PESQUISADOR DIZ QUE DECRETO ESTIMULA A CRIAÇÃO DE MILÍCIAS

Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), discute a constitucionalidade da medida, pois ela contraria o Estatuto do Desarmamento. Ele assegura que, politicamente, o decreto é extremamente preocupante. Na sua avaliação, é um estímulo à criação de milícias, pois dá direito ao porte para policiais da reserva. “O Pará, por exemplo, é um dos estados com mais conflitos no país hoje”, afirma. “O estado tem muitas milícias também e com certeza o decreto acirra essa situação de confronto”.

O juiz André Augusto Bezerra, ex- presidente da Associação de Juízes pela Democracia, diz que o decreto amplia o pacote anticrime anunciado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, em fevereiro. “É a lógica da justiça pelas próprias mãos, ignorando a justiça institucional”, afirma. “São práticas antiiluministas, pré-Estado, pré-contrato social”.

Autor do livro “Povos Indígenas e Direitos Humanos: direito à multiplicidade ontológica na resistência Tupinambá”, Bezerra diz que o decreto poderá ter consequências dramáticas para as populações mais vulneráveis. “De 2003 para cá mais de mil indígenas foram assassinados”, afirma. “Imagina o quanto essa situação pode ser agravada com um decreto que delega armas para pistoleiros privados?”. A mudança no Estatuto do Desarmamento, segundo o juiz, é uma atribuição do Legislativo que foi levada para o Executivo. “Ao fazer isso, Bolsonaro está abrindo mão do monopólio do uso da força pelo estado”.

Logo após o anúncio do decreto, partidos da oposição se mobilizaram para pedir a sua inconstitucionalidade. “O único meio de impugnar isso é pelo Judiciário”, afirma Bezerra.

You may also read!

Doador de campanha de Nikolas protagoniza conflito com quilombolas em Minas

Sócio da Ônix Céu Aberto, Gabriel Baya Andrade doou R$ 20 mil para o deputado, líder de campanha contra

Read More...

Tigrinho, golpistas e ex-sócio de Trump: quem financiou Nikolas Ferreira?

De Olho nos Ruralistas conta quem são os doadores de campanha do deputado mineiro, articulador das notícias falsas que

Read More...

Vídeo mostra como mercado, imprensa, Legislativo e Judiciário naturalizaram Bolsonaro

De Olho nos Ruralistas reúne informações e imagens sobre a ascensão do político patrocinada por empresários e jornalistas; omissão

Read More...

One commentOn Armas liberadas: “residente em área rural” representa 16% da população brasileira

  • Inacreditável a definição de rural do IBGE, é feita por pessoas que nunca sairam do escritório, só pode. O município onde moro, na Borborema, Paraíba, tem mais de 30 mil habitantes e está totalmente na dependência das áreas rurais, imagina um município com 5 mil habitantes.

    O decreto é inconstitucional, mas não contraria o desejo dos constitucionalistas no congresso, então não vejo motivo dele ser anulado e se for pro judiciário será mais improvável ainda.

Leave a reply:

Your email address will not be published.

Mobile Sliding Menu