Ailton Krenak: “A mentira e a manipulação colocam a vida das pessoas íntegras em risco”

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Líder consagrado na Constituinte, o indígena teme hoje pela segurança de quem, como ele, milita em prol das questões socioambientais; a fala de seu povo sobre a natureza é pacífica, enfatiza, mas o cenário político parece tentar associá-la a aspectos negativos

Ailton Krenak é um dos principais líderes indígenas do Brasil.  Mineiro, descende de um grupo que vive em uma reserva, desde o fim dos anos 1920, na margem esquerda do Rio Doce, entre os municípios de Resplendor e Conselheiro Pena. Jornalista e escritor, ele tem 65 anos e milita há mais de quatro décadas.  Em 1987, durante as discussões da Assembleia Constituinte, conquistou atenção nacional ao pintar o rosto de preto com jenipapo enquanto discursava sobre o modo de vida de seu povo, que perdia aspectos importantes da cultura diante da insegurança de não ter as terras demarcadas. Sua fala contundente foi decisiva para a aprovação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, nos quais os direitos sociais dos indígenas foram reconhecidos, inclusive a demarcação de territórios. Das 1.296 terras indígenas existentes no Brasil, no entanto, apenas 31% estão demarcadas. “Temos ao menos 400 processos parados por conta da judicialização”, diz. Diante da posição do presidente Jair Bolsonaro, publicamente contra as demarcações, Ailton destaca a intensificação da militância. Ele conversou com o De Olho nos Ruralistas no dia 30 de maio, em São Paulo, data da segunda manifestação contra os cortes de verba na educação. Seguem os principais trechos da entrevista concedida à repórter Priscilla Arroyo

De Olho nos Ruralistas – Jair Bolsonaro disse que durante o seu governo não haveria nem mais um centímetro de terra indígena demarcada. De que maneira essa postura reflete na militância?

Ailton Krenak – Quando o governo falou que ia tirar a Fundação Nacional do Índio (Funai) do Ministério da Justiça e levar para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, nós levantamos e fomos fazer o governo mudar a decisão. Ganhamos (essa batalha) no Congresso, no jogo democrático. A Funai voltou para o Ministério da Justiça com o poder de demarcar os nossos territórios. Isso obriga o executivo a desengavetar os mais de 400 processos de terras indígenas, que estão paralisados, para concluir o rito demarcatório. [No dia 19 de junho, Bolsonaro decretou o retorno da responsabilidade de demarcação para o Ministério da Agricultura; o Congresso terá 120 dias para acatar ou recusar a decisão]. 

De Olho nos Ruralistas – Inclusive porque essas demarcações já deveriam ter acontecido há 25 anos, conforme aponta a Constituição…

Se o Estado está travado, dominado e contra a gente, não podemos cobrar coisas passadas, e sim pensar daqui para frente. Temos de destravar esses processos e cessar a pressão do agronegócio em cima dos nossos territórios. Se há um sentido legítimo de território é a concepção indígena, no qual as terras são demandadas por coletivos, pelo bem comum do povo. É diferente de um latifundiário querer ficar com a posse dele individual de um território  onde tem água, ecossistema, biodiversidade e transformar em uma monocultura. Do ponto de vista da economia, transformar aquilo no lucro de um só.

De Olho nos Ruralistas – Como avalia a democracia hoje no Brasil?

Estamos vivendo um tempo de tantas falsidades, e uma delas é dizer que vivemos uma situação que chama democracia relativa ou um estado de direito relativo, no qual o pleno exercício da cidadania fica suspenso, onde as pessoas podem ser aviltadas, ofendidas. E  não têm a quem recorrer porque o sistema da justiça não está a serviço do bem comum, ele está cooptado. O aparelho da Justiça está cooptado.

De Olho nos Ruralistas – Cooptado por quem?

Cooptado por uma ideologia, por uma mentalidade. O capitalismo necrosa a vida democrática. Ele adoece (a democracia), porque torna os operadores do sistema da justiça subalternos à grana. É o que está acontecendo. Estamos visto isso de maneira escancarada.

De Olho nos Ruralistas – Você sente medo de fazer ativismo em um período tão nebuloso?

Protejo a minha família de exposição. Estamos avançando para um território inseguro no qual a mentira e a manipulação podem colocar a vida das pessoas íntegras, que fazem um trabalho ambiental sério, em risco. Isso me incomoda. Podemos ser notados como alguém que está ameaçando. A nossa fala sobre a natureza é pacífica. Vincular a gente com qualquer coisa negativa é uma sacanagem.

De Olho nos Ruralistas – A mídia tem papel relevante nesse processo?

Fico muito preocupado com esse território da disputa porque deixa de ser o chão onde nós pisamos e passa a ser quase uma camada virtual de realidade, realidade líquida em que a informação não tem base de checagem. Diante da informação, a população fica inquirindo se aquilo tem alguma origem verdadeira, se é uma mentira, insinuação. Se não há um chão verdadeiro, entramos no mundo das mensagens midiáticas – o marketing. O senso comum acha que marketing é alguma coisa que vende produtos, mas ele também vende ideias.

De Olho nos Ruralistas – A antropóloga Lucia Helena Rangel, assessora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), acredita que o preconceito contra indígenas não se alterou ao longo das últimas décadas. Para ela, isso faz parte da formação social do brasileiro. O que acha?  

Não acredito que essa relação vai melhorar. Essas atitudes inspiradas no racismo e no preconceito, que configuram discriminações, podem ser mais verificadas à medida que são socialmente observadas. Isso pode criar um controle social. Acho que é mais importante existir um controle social sobre as nossas relações do que uma lei ou uma norma. A sociedade brasileira é escravocrata, racista e preconceituosa no sentido também dos gêneros. E se atribui a virtude da tolerância. Eles dizem que eles toleram. Mas tolerar não é aceitar.

Com o rosto pintado, Krenak chamou atenção na Constituinte, em 1987, para as questões indígenas. (Foto: You Tube/ Reprodução)

De Olho nos Ruralistas – O rompimento da barragem da mineradora Samarco em Mariana, em novembro de 2015, poluiu o Rio Doce e prejudicou o acesso do povo Krenak à água. Estamos falando de uma população de 1.600 pessoas que vive nas margens do rio entre os municípios de Resplendor e Conselheiro Pena. É possível identificar qual atividade – extração vegetal, animal e mineral – é  mais danosa para o ambiente?

O Brasil é um grande território extrativista, e isso vai afetar toda a plataforma territorial – rios, floresta, clima, ecossistema amplo. É uma impossibilidade identificar qual dessas atividades é mais danosa. A história do garimpo e da mineração no Brasil se confunde com a fundação da ideia de um país. O agronegócio é recente. Ele já pega um território em disputa por diferentes outras atividades econômicas. Todas elas, hoje, com a pressão do capital global, estão desregulamentadas. Há algo de mais grave nisso: se permitirmos  que o agente minerador possa se licenciar, estaremos decretando o fim do mundo.

De Olho nos Ruralistas – Você enxerga futuro para o planeta Terra?  

Nós, a humanidade, temos uma capacidade de adaptação que me deixa apavorado. Se uma catástrofe em escala global exterminar 90% da população do planeta, os outros 10% que sobreviver vão continuar sendo uma peste. Então a nossa única oportunidade é todo mundo desaparecer para a Terra voltar a se regenerar. Não estamos sem esperança, estamos diante de um desafio. Ou honramos a vida aqui no planeta ou renunciamos à vida. Temos de largar de ser imbecil e fazer uma escolha.

 

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2 commentsOn Ailton Krenak: “A mentira e a manipulação colocam a vida das pessoas íntegras em risco”

  • Jose Maria Soares da Silva

    Bom dia, sou estudante da Universidade do Federal do Pará e achei muito interessante essa entrevista. Infelizmente não sou bolsista do mestrado e me encontro em total incapacidade de pagar pela assinatura da revista( no momento) mas gostaria de fazer uso dela em um artigo que será publicado futuramente em um livro, que será custeado pelos estudantes de uma disciplina chamada Epistemologia na amazônia, do Mestrado de Estudos Antrópicos da Amazônia (UFPA). Então gostaria de pedir a Autorização para fazer um citação em meu trabalho dessa entrevista. Aguardando resposta. Grato!

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