Coproduzido por coletivo liderado por mulheres, “Amazônia Sociedade Anônima” acompanha o processo de autodemarcação da etnia; exibido na 43ª Mostra Internacional de Cinema, longa mostra ameaça de latifundiários, desmatadores e grandes obras à terra indígena
Por Priscilla Arroyo
De tradição guerreira, os Munduruku não se esquivam de uma batalha. E nem poderiam. Como uma das etnias mais populosas do Brasil, eles somam 14 mil e vivem em 13 aldeias à beira do Tapajós, em cujo curso o governo planeja intervir para construir hidrelétricas. A ameaça aos povos tradicionais não se resume a essas obras, pois madeireiros e palmiteiros têm-se instalado ilegalmente nas suas terras. O filme Amazônia Sociedade Anônima, exibido na 43ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, mostra a resistência a essas invasões — intensificadas nos últimos meses — na Terra Indígena (TI) Sawré Muybu, entre os municípios de Itaituba e Trairão, no Pará, onde vivem cerca de 200 indígenas, além de populações ribeirinhas.
A obra reúne imagens feitas nos últimos cinco anos pela produtora Pindorama para a série Amazônia S/A — uma encomenda da Globo — com material do Coletivo Audiovisual da comunidade, liderado por mulheres. Intercalando belas imagens da floresta, feita por drones, com reuniões que a comunidade fez para organizar o processo de autodemarcação que começou em 2014, o longa é dinâmico, preciso e bonito. É possível acompanhar interessantes sequências dos grupos de moradores da TI em expedições para demarcar o território de 1.798 quilômetros quadrados, uma área do tamanho do Piauí, 20% maior que a cidade de São Paulo. São dias de jornada. Em algumas dessas incursões no mato, eles percebem a presença de invasores e traçam uma estratégia certeira para expulsá-los.
O filme foi exibido para uma plateia lotada pela primeira vez no dia 27 de outubro, no Cinesesc, com a presença do líder da resistência na TI Sawré Muybu, Cacique Juarez, e o diretor, Estêvão Ciavatta. Após a exibição, eles participaram de um debate no qual ressaltaram a importância de comunicar a situação dos Munduruku também em linguagem cinematográfica como uma tática de defesa. “Nós, os caciques, estamos sendo ameaçados, e ficamos recolhidos bastante tempo nas aldeias”, diz Juarez. “Existe uma única estrada para sair da TI e estamos evitando andar por lá”.
O receio dos líderes aumentou desde 19 de julho, depois que 120 Munduruku fizeram uma jornada de cinco dias na qual percorreram mais de cem quilômetros para expulsar de suas terras 30 madeireiros com seus maquinários. As imagens da ação estão no filme, e foram feitas pelo Coletivo Audiovisual liderado pelas mulheres da comunidade, que assinam a produção junto com a Pindorama Filmes e o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
As mulheres começaram a fazer os registros há cinco anos com celulares como forma de documentar o processo de autodemarcação. A produção acabou se tornando importante ferramenta de denúncia das comunidades e se sofisticou. “Estamos lutando para ter acesso à internet, o que vai facilitar as denúncias”, afirma o cacique Juarez.
O estudo de identificação e delimitação da TI, publicado em abril de 2016 pela Fundação Nacional do Índio (Funai), é questionado por construtoras, que têm interesse em realizar obras de hidrelétricas na região. Em novembro de 2016, houve uma vitória pontual dos povos tradicionais: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovávei (Ibama) arquivou o processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica (UHE) São Luís do Tapajós, que alagaria 7% de território da TI.
Mas a ameaça continua, pois essa é apenas uma das sete hidrelétricas de grande porte cujas construções estão previstas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) na região. Além de inundar partes da floresta, a geração de energia facilitaria a exploração de jazidas minerais, o que prejudicaria outras terras da mesma etnia. Na TI Munduruku, do lado oposto do Tapajós em relação à Sawré Muybu, foram instalados mais de 500 garimpos.
FILME VEICULA CONVERSA TELEFÔNICA DE GRILEIROS
A Operação Castanheira — deflagrada em agosto de 2014 em uma força-tarefa da Polícia Federal, Ibama, Receita Federal e Ministério Público Federal (MPF) — desvendou as atividadeS de uma quadrilha de desmatadores e grileiros que operava na região da BR-163, perto de Novo Progresso, sudoeste do Pará. A região constituiu o epicentro do “dia do fogo”, em agosto, sucessão de queimadas que ganhou repercussão internacional. Durante a investigação, foram gravadas conversas telefônicas entre aqueles dispostos a negociar terras públicas e os interessados em comprá-las. Trechos que mostram a dinâmica do esquema são reproduzidos no filme.
De acordo com o “vendedor de terras”, os maiores interessados em negociar são pecuaristas que transformaram os seus pastos no Mato Grosso em monocultura de soja e buscam negócios no Pará para criar animais. “Depois do primeiro fogo, fazemos o segundo fogo”, diz o negociador ao potencial cliente, sem saber que estava sendo gravado. “Isso é para colocar gado em cima. Então, queimamos de novo”. Ele diz que a área é tão boa “que já passou por três queimadas”. Até agosto, o país teve mais de 91 mil focos de incêndio, metade na Amazônia.
O MapBiomas verificou 10 mil casos de desmatamento no Brasil neste ano, mas somente 0,5% tinham autorização. Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, destaca que, a cada dez hectares desmatados desde 1985, seis viraram pastagem de baixa produtividade. “Ou seja, estamos desmatando para nada”, disse Azevedo, que também participou do debate sobre o filme, que deve entrar no catálogo de empresas de streaming e ser exibido em escolas.
DESMATAMENTO AUMENTA EM TERRAS INDÍGENAS
Hoje mais de 15% dos desmatamentos no país acontecem em áreas protegidas, como as Terras Indígenas, percentual que aumentou nos últimos anos. “Quando começamos o monitoramento, em 1985, esse percentual era de 1%”, diz Azevedo. Isso se traduz em uma escalada no número de invasões nos territórios ancestrais. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), houve até setembro 160 casos de invasões em terras indígenas, aumento de 32% em relação a todo o ano passado. Como consequência, a violência contra os povos se intensifica.
No dia 1º, Paulo Paulino Guajajara, conhecido como Lobo Mau, foi assassinado a tiros na Terra Indígena Arariboia, na região de Bom Jesus das Selvas, no Maranhão. Paulino voltava da caça com outro líder da comunidade, Laércio Guajajara, quando foram abordados por uma emboscada de não indígenas. Suspeita: madeireiros. Paulinho era um dos líderes, assim como Laércio, do “Guardiões da Floresta”, grupo de 180 indígenas formado em 2012 para fiscalizar e controlar as constantes invasões.
Não se trata de um caso isolado. Em meados de julho, um grupo de 50 garimpeiros invadiu a TI Wajãpi, no oeste do Amapá, com armas pesadas. Atacaram a aldeia Mariry e assassinaram o cacique Emyra Wajãpi, de 68 anos, um dos principais líderes da comunidade. O corpo foi encontrado em 23 de julho perto de um rio com evidências de esfaqueamento, olhos perfurados e genitais decepados. Mesmo com a morte brutal, a Polícia Federal não reconheceu o crime. Divulgou em agosto um laudo atestando que a morte fora por afogamento. A conclusão dos peritos foi contestada por diversas organizações em defesa dos povos, como o Conselho das Aldeias Wajãpi e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Diante da vulnerabilidade dos indígenas, a Apib tornou internacional a campanha “Sangue Indígena: nenhuma gota a mais”, lançada em 10 de janeiro com o objetivo de mobilizar a sociedade internacional pela defesa dos direitos indígenas. Entre 17 de outubro e 20 de novembro, uma delegação com a presença da presidente da entidade, Sônia Guajajara, e mais oito líderes circulam pela Europa para buscar espaços importantes de diálogo e ações de impacto político junto à opinião pública.
Pelas redes sociais, os membros da delegação fizeram protestos contra a morte de Paulo. Sonia Guajajara, originária de Arariboia, afirmou que exploradores ilegais de madeira assassinaram seu parente:
— É hora de dar um basta nessa situação. Estamos na Europa para denunciar essas ameaças e esses assassinatos que estão acontecendo em todo o Brasil, em todos os territórios indígenas.
Ela fez a declaração em vídeo postado no dia 4. Celia Xacriabá, outra integrante do grupo, postou uma foto na qual segura um retrato de Paulo com a legenda: “Quantos corpos Indígenas seu voto segue matando?”
A delegação já passou por oito países, como Itália, Holanda, Noruega Alemanha e Suécia. Durante a conversa com membros do parlamento holandês, em 30 de outubro, o grupo denunciou as violações de direitos humanos e ambientais que enfrenta no Brasil e reforçou o pedido para que o acordo Mercosul-EFTA garanta que os produtos exportados respeitem os direitos ambientais, os direitos indígenas e das mulheres. E que os produtos comercializados não sejam oriundos de áreas de conflitos, desmatamento, trabalho escravo e nem de terras indígenas.
Foto principal: povo Munduruku expulsou, em julho, madeireiros de seu território (Reprodução)