Latifundiários têm proximidade histórica com o Comitê Cívico pró-Santa Cruz, organização que reúne a elite empresarial de Santa Cruz de la Sierra, presidida pelo líder do golpe, Luis Fernando Camacho; camponeses e indígenas reagem
Por Priscilla Arroyo
A participação das Forças Armadas no golpe que impôs a renúncia de Evo Morales foi incisiva. A ponto de eclipsar o apoio histórico dos latifundiários ao grupo de opositores do líder boliviano. Entre esses proprietários de terra estão os brasileiros, que começaram a cultivar soja no começo da década de 90 no leste do país — região liderada pelo município de Santa Cruz de La Sierra, berço político do golpista Luis Fernando Camacho. Eles respondem por 35% da produção anual da oleaginosa na Bolívia, de 2,4 milhões de toneladas.
Os sojeiros participam ativamente das estratégias de entidades que defendem o interesse dos ruralistas na Bolívia, em oposição às políticas de Evo Morales e de seu partido, o Movimiento al Socialismo (MAS). “O leste foi historicamente um foco de resistência às políticas do Evo”, diz Tomaz Paoliello, professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica em São Paulo (PUC-SP). “Os representantes do campo que o apoiam são os pequenos produtores da região oeste, reunidos na cidade de Cochabamba e no seu entorno”.
Uma das principais frentes defendidas por Evo Morales — agora em exílio no México — foi a política de acesso à terra aos camponeses e o controle da exportação de alimentos, o que sempre foi visto pelos latifundiários como uma ameaça.
Por isso a queda do governo não surpreendeu Jose Guilherme Gomes dos Reis, paraense naturalizado boliviano que há quase três décadas administra 6,5 mil hectares de lavouras de soja na região de Santa Cruz de La Sierra, a mais rica do país. Em entrevista ao jornal gaúcho Zero Hora, Reis afirmou que Morales estava “virando um ditador”. “Se houve golpe, foi a fraude eleitoral do Evo”, afirmou.
BRASILEIROS FINANCIARAM COMITÊ DE SANTA CRUZ
Gomes dos Reis participa ativamente da política agrícola do país como um dos 13 diretores da Associação Nacional dos Produtores de Oleaginosas e Trigo (Anapo), uma das principais entidades que defendem os interesses dos ruralistas na Bolívia. Outros dois fazendeiros brasileiros com terras na região — o mineiro Roberto Zacarias Valle e o paranaense Elmo Sanches Flumignan — compõem a diretoria e ilustram a foto oficial (eles são o terceiro, o quinto e o sétimo, em pé, da esquerda para a direita) da Anapo.
A associação dos sojeiros apoia há pelo menos vinte anos o Comitê Cívico pró-Santa Cruz, hoje liderado por Camacho, figura mais eloquente do golpe. No dia 8, antes da queda de Evo Morales, representantes das duas organizações e a Câmara Agropecuária do Oriente participaram de um protesto contra o que consideraram “ameaça de confisco às propriedades privadas”.
Esse suporte da Anapo pode ser traduzido em cifras, como a doação de US$ 50 mil que a entidade fez para o Comitê em 2005. A maior parte desse dinheiro saiu dos produtores de soja brasileiros. Essa relação se estreitou em 2007, no segundo ano da administração de Morales, quando o governo orquestrava a implementação de uma nova Constituição para, entre outros itens, garantir os direitos dos indígenas.
Os latifundiários, especialmente os estrangeiros, se sentiram ameaçados de perder suas terras com a efetivação de uma reforma agrária que estava sendo discutida na Constituinte. Passaram, então, a apoiar a campanha do Comitê Cívico para que Santa Cruz fosse administrada com regras próprias, por meio de regras departamentais.
Essa ideia não avançou e os sojeiros mantiveram suas propriedades, mesmo com a promulgação da Carta Magna. Ainda assim, a proximidade estabelecida entre os grupos se conservou. Em 2015, o então presidente do Comitê pro Santa Cruz, Roger Montenegro Leite, o antecessor de Camacho, participou da posse da nova diretoria da Anapo.
“Eles sempre defenderam o neoliberalismo e têm como principal objetivo estabelecer tratados de livre comércio”, diz Hector Mondragón, assessor das organizações indígenas e campesinas da Colômbia. Com a queda de Morales, a flexibilização nas regras para exportação de soja, uma das principais bandeiras defendidas pelos ruralistas, fica mais perto de ser concretizada.
Como a política do líder indígena considerava a produção agrícola como fonte de alimentos, e não de commodities, o governo limitava a exportação de grãos para manter estável o preço interno dos grãos. Ainda assim, em maio, Morales havia cedido e liberado para exportação 60% da soja produzida. Mas os ruralistas continuaram a defender o escoamento de toda a produção.
“É um movimento incentivado pelos produtores brasileiros, que querem exportar de lá usando as mesmas rotas do Mato Grosso, com destino à China”, diz Paoliello. “Trata-se de uma réplica da dinâmica implementada também no Paraguai”. Junto com o afastamento de Evo Morales, caíram as barreiras para que tal plano seja colocado em prática.
LÍDER INDÍGENA DENUNCIA VIOLÊNCIA RACISTA
A reação ao golpe na Bolívia foi liderada na segunda-feira por camponeses e indígenas em El Alto, na região de La Paz. “Agora é guerra civil“, gritavam. Houve repressão. Do México, Evo Morales protestou no Twitter contra a ação da polícia:
— Depois do primeiro dia do golpe cívico-político-policial, a polícia amotinada reprime com bala para provocar mortos e feridos em El Alto. Minha solidariedade a essas vítimas inocentes, entre elas uma menina, e ao heroico povo de El Alto, defensor da democracia.
Os manifestantes portavam a Whipala, bandeira dos povos originários reconhecida pela Constituição de 2008. “Haverá sangue e luto, não vamos permitir que os neoliberais voltem ao poder”, afirmou Rodolfo Machaca Yupanqui, dirigente da Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia.
Integrante da organização Feminismo Comunitário Antipatriarcal, Adriana Guzmán Arroyo, da etnia Aymará, fez ao jornal argentino La Voz um relato em primeira pessoa da repressão aos movimentos camponeses e feministas:
— Estamos sob ameaça. Identificam as pessoas, circulam listas com nomes. São ataques racistas. Por exemplo, entre cinquenta pessoas identificam a que pode ser emblemática: uma mulher originária, de saia, ou um homem indígena; e se for do Movimiento al Socialismo, melhor. São ataques pensados, programados, não são ataques de todos contra todos. São seletivos. Além disso não é somente violência, mas também humilhação: fazem-nos ficar de joelhos e pedir perdão. O prefeito de Warnes, Mario Cronenbold, foi obrigado a renunciar e a pedir perdão ao país por ter se filiado ao MAS. Na manhã de segunda-feira estiveram na casa de dirigentes camponeses, pressionando-os e destruindo e queimando suas casas, exigindo que ficassem de joelhos, deixassem a bandeira e pedissem perdão. Nas ruas se ouve: “Esses índios de merda finalmente se vão”. Tudo tem uma lógica colonial.
Ela disse que “os cívicos” ameaçaram jornalistas de morte, tomaram rádios comunitárias e a sede da Confederação Camponesa. “Com o terror gerado nas ruas apareceu Luis Fernando Camacho, presidente do Comitê Cívico pró-Santa Cruz, que é a representação do sindicato oligarca dos proprietários de terra e empresários do país”, descreveu. “Ele tem o poder econômico”.
A repórter de La Voz informou que vídeos nas redes sociais registraram a queima de Whipalas. E que policiais retiraram de seus uniformes o símbolo indígena, plurinacional. Adriana definiu esses fatos como uma evidência do racismo do golpe. (Colaborou Alceu Luís Castilho)