Muito além dos R$ 600: movimentos sociais querem R$ 1 bilhão específico para agricultura camponesa

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28/12/2017- Bahia- Ações do Governo do Estado fortalecem agricultura familiar, O Governo do Estado tem assegurado o desenvolvimento rural da Bahia, colocando a agricultura familiar no lugar de protagonista. Desde 2015, já foi executado mais de R$ 1 bilhão em investimento e custeio de políticas públicas e ações de fomento à agricultura familiar, no âmbito do programa Bahia Mais Forte, realizado pela Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR). Foto: Ascom/SDR

Articulação Nacional de Agroecologia encabeça movimento para retomada do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, o PAA; liberação emergencial contribuiria para evitar volta do Brasil ao Mapa da Fome, tendência acelerada pela Covid-19

Por Ludmilla Balduino

Preocupados com o cenário de fome que se aproxima na mesma velocidade de propagação do novo coronavírus, 315 movimentos sociais de todo o Brasil assinaram na última quarta-feira (08) um documento que apresenta soluções práticas para evitar que brasileiros pobres e em situações de vulnerabilidade morram de fome. Encabeçados pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), os movimentos pedem o restabelecimento completo do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), com liberação emergencial de um aporte de R$ 1 bilhão.

Também no dia 8, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, anunciou a liberação de R$ 500 milhões para o PAA, para a aquisição e distribuição de produtos de hortifrúti, de leite, de flores e de pequenas cooperativas. Para integrantes dos movimentos signatários da proposta apresentada pela ANA, o valor é insuficiente para o momento de crise mundial e situação de emergência nacional, além de favorecer a classe dos produtores de leite, fortalecida pela indústria, em relação aos pequenos agricultores.

Denis Monteiro, secretário executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), diz que o aporte de R$ 1 bilhão beneficiaria 150 mil agricultores. “Nossa proposta ainda é modesta perto do número total de estabelecimentos agropecuários cadastrados no Brasil, mais de 5 milhões”, diz. “Destes, cerca de 80% estão inscritos na categoria agricultura familiar”. Esses números ainda não contemplam as terras indígenas. “Mais de 500 mil indígenas estão em áreas rurais, são produtores de alimentos, e também podem fazer parte do PAA”.

O valor de R$ 1 bilhão é próximo do valor repassado pelo governo federal em 2012, auge da execução do programa. Os contextos são bem diferentes, explica Francisco Menezes, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea): “Em 2012, a economia brasileira estava relativamente bem. Chegávamos perto do pleno emprego, e mesmo assim, o aporte da época, de R$ 850 milhões, foi insuficiente. Em 2020, estamos numa situação de caos social, e precisamos de um enfrentamento severo”.

PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS SOFRE DESMONTE

O Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura começou a ser desmontado antes mesmo do golpe de 2016. Várias estruturas da dinâmica de abastecimento e segurança alimentar no Brasil foram enfraquecidas ou completamente destruídas. Entre elas, a formação de estoques e a interrupção dos fluxos da produção para o consumo.

Para Francisco Menezes, um dos pontos-chave do projeto apresentado pelos movimentos sociais é o modelo da compra direta: “A modalidade com doação simultânea é importante tanto para o fortalecimento das associações e cooperativas de agricultores familiares, como pela agilidade de fazer chegar o alimento de forma rápida, dinâmica e desburocratizada aos bolsões de pobreza do país”. O que seria conveniente neste momento emergencial.

Esse modelo tem um funcionamento simples e prático: o governo repassa seu aporte para a associação ou cooperativa de pequenos agricultores, e assim eles conseguem iniciar o processo de produção e estocagem do alimento no qual são especialistas. Depois, realizam o transporte da carga para o local destinado — favelas, periferias e outras localidades que vivem sob a ameaça de insegurança alimentar.

“É óbvio para todos que a liberação do auxílio emergencial de R$ 600 por três meses não coloca comida de boa qualidade na mesa dos mais pobres”, diz Denis Monteiro. “O PAA pode garantir e priorizar o abastecimento com frutas, verduras e legumes, complementando o que as famílias conseguem comprar nos mercados, e evitando o consumo exagerado de ultraprocessados”.

O secretário executivo da Articulação Nacional de Agroecologia diz que o PAA é a solução porque reúne dois grupos sociais vulneráveis no Brasil: os grupos das periferias urbanas que mais precisam de alimentos e os agricultores familiares — os camponeses — que têm possibilidade de fornecer os alimentos saudáveis e garantir a renda.

REPASSE PARA MERENDA ESCOLAR AFETA QUALIDADE DA COMIDA

Merenda escolar no Pará. (Foto: Marco Santos / Agência Pará)

No início do mês, com as escolas fechadas para ensino presencial, foi aprovada uma lei federal que permite que a merenda escolar chegue às famílias dos estudantes, e cada município define como repassar o dinheiro para a alimentação. Alguns municípios estão adotando a prática do repasse direto do dinheiro para as famílias, prática que Francisco Menezes não aprova:

— A compra de alimentos pelo município para abastecer a merenda escolar é feita em larga escala e diretamente com as associações de produtores de agricultura familiar, o que diminui o preço do alimento. No modelo que as prefeituras querem praticar, o valor que as famílias recebem é muito baixo, e na hora do supermercado não vão conseguir comprar nada, ou só comprar produtos industrializados de qualidade nutricional inferior.

Como alternativa ao modelo das prefeituras, o economista sugere que seja feito um rodízio da produção das merendas escolares, com entrega nas casas dos alunos. “E é claro que o PAA fortalecido poderia ajudar muito nessa distribuição justa dos alimentos”.

A segunda solução emergencial proposta pelos movimentos é a retomada da modalidade Formação de Estoque, que deixou de existir em 2013. Nessa modalidade, o governo realiza um empréstimo para que as cooperativas de agricultores formadas por pelo menos 30% de mulheres consigam manter suas produções sem a necessidade de comercializar na época da safra. Assim, é garantido um capital de giro para pagar os custos de produção. No fim do contrato, o dinheiro emprestado deve retornar ao governo ou os agricultores podem pagar com os produtos.

A proposta apresentada pela Articulação Nacional de Agroecologia pede que os agricultores sejam autorizados a liquidar o pagamento em produtos — o que permite a rápida formação de estoques para compor cestas de alimentos e distribuir para famílias vulneráveis no atual contexto de insegurança salutar e alimentar.

Com as medidas de isolamento da pandemia de coronavírus, as feiras livres não estão acontecendo e há uma crise no escoamento da produção.

De acordo com Carlos Eduardo de Souza Leite, do núcleo executivo da ANA e da coordenação executiva do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais na Bahia (Sasop-BA), no nordeste da Bahia há produções de peixe eviscerado e filé de peixe, e de produtos agroecológicos, como macaxeira, mel, polpas de frutas nativas (umbú e maracujá do mato) e polpas de manga, acerola e goiaba, e hortaliças (coentro, alface, abóbora, entre outros). Esses alimentos fazem parte do cardápio regional do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e podem ser incluídos no PAA.

“O orçamento de R$ 1 bilhão precisa ser aprovado o quanto antes”, diz Denis Monteiro. “Não é só uma demanda de setores da agricultura que estão jogando comida fora. Há setores especializados que perderam seus canais de venda, como os produtores de açaí na Amazônia”. Ele observa que o documento tem assinatura de movimentos da cidade, que estão se mobilizando nas favelas, identificando os mais pobres e ajudando a pressionar o governo

“Não estamos inventando nada do zero”, argumenta. “O PAA é reconhecido no mundo inteiro. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), apesar de sucateada, ainda tem capacidade de operar. Os prefeitos e governadores dos estados têm uma responsabilidade prioritária de pressionar o governo federal a liberar os recursos”.

GOVERNO FEDERAL ESCONDE DADOS SOBRE A FOME

Bolsonaro omite dados e diz que os outros mentem. (Foto: Carolina Antunes/PR)

Em agosto de 2018, técnicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foram a campo e realizaram a Pesquisa de Orçamentos Familiares. Entre os dados coletados estão aqueles relativos à segurança alimentar, que indica o número de famílias que se declararam em situação de insegurança alimentar grave. Famílias marcadas em situação de insegurança grave são as que estão na linha da fome, quando passam os dias se alimentando precariamente, ou não têm alimentos para consumo diário.

Alguns dados da pesquisa já foram publicados, mas os números referentes à segurança alimentar das famílias entrevistadas ainda não saíram. O governo federal vem adiando sistematicamente a divulgação desse resultado da pesquisa. Mesmo assim, em 2019, sem mostrar dados, Jair Bolsonaro não teve dúvidas: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”.

Francisco Menezes faz um alerta:

— Se vamos fazer essa discussão, é preciso mostrar os resultados da pesquisa que já deveriam ter sido divulgados. Embora havendo seguidas advertências sobre a ameaça de fome, agora estamos sendo surpreendidos pelo tamanho desse problema que se apresenta com a chegada da pandemia ao país. Existe um risco real de que a tragédia do coronavírus tenha um encontro marcado com a fome, e isso pode ser catastrófico para as populações mais pobres.

Foto principal: agricultura camponesa na Bahia. (Fotos Públicas/Ascom/SDR)

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