Relatório da Comissão Pastoral da Terra mostra que o discurso anti-indigenista de Bolsonaro foi o estopim perfeito para avalizar e legitimar ataques contra as terras indígenas no primeiro ano de seu governo
Por Ludmilla Balduino
Depois de uma violenta campanha anti-demarcação, a vitória nas urnas e a posse em janeiro, o primeiro ano do governo Bolsonaro ficou marcado na história do Brasil como o ano em que as famílias indígenas brasileiras protagonizaram a luta pela terra, segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil 2019, divulgado na manhã desta sexta-feira (17) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
De cada três famílias em situação de conflito por terra (ameaças, expulsões, assassinatos, entre outras violações de direitos de todas as pessoas), em 2019, uma era indígena. Ou seja, de um total de 144.742 famílias, 49.750 famílias indígenas (34%) esteve envolvida em conflito por terra durante o ano passado.
Dessas quase 50 mil famílias de indígenas brasileiros, 930 foram efetivamente expulsas de suas casas em ações de despejo determinadas pela justiça. Outras 320 foram expulsas por não indígenas que tomaram suas casas e seus terrenos. Muitas vezes essas expulsões extrajudiciais são realizadas à força, sob ameaças e tortura psicológica.
Como os números falam sobre famílias, cabe assinalar que, no caso de famílias indígenas, uma única família pode corresponder a uma etnia inteira — ou seja, enquanto 1.250 famílias foram despejadas em 2019, pelo menos o dobro de brasileiros sofreu essa violação do direito fundamental de habitação.
NÚMERO DE HOMICÍDIOS É O MAIOR EM ONZE ANOS
Nove indígenas foram assassinados no Brasil em 2019, entre eles sete líderes. Esse foi o maior número de líderes indígenas mortos nos últimos onze anos. Outras nove pessoas sofreram tentativas de assassinato; e 39 foram ameaçadas de morte.
Os casos mais emblemáticos foram os recentes assassinatos de indígenas Guajajara no Maranhão, estado onde mais ocorreram violências no campo em 2019. No dia 1º de novembro, o guardião da floresta Paulo Paulino Guajajara foi brutalmente assassinado, e Laércio Guajajara, baleado dentro de seu território, a Terra Indígena (TI) Araribóia, no município de Amarante.
No começo de dezembro, foram assassinados Raimundo Guajajara e Firmino Silvino Prexedes Guajajara, na BR 226, entre as Aldeias Boa Vista e El Betel, na Terra Indígena Cana Brava, e mais dois indígenas ficaram feridos. No dia 13 de dezembro, foi encontrado morto o adolescente Erisvan Guajajara, de 15 anos, da Terra Indígena Arariboia. Seu corpo tinha sinais de tortura.
“Pode-se afirmar que tais crimes estejam ligados ao aumento da escalada de ódio e intolerância”, escreve Sônia Guajajara em artigo publicado junto com o relatório da CPT. “A certeza da impunidade só aumenta essa violência brutal”. O nome do artigo faz a conexão política: “Governo Bolsonaro: o retrato da barbárie contra os povos indígenas e a vida”.
AMEAÇARAM ‘MATAR CRIANÇAS, PARA QUE SENTISSEM DOR’
A maior parte das ameaças contra os povos indígenas vem dos grileiros, madeireiros e garimpeiros que invadem os territórios originais. Em janeiro de 2019, por exemplo, líderes da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, denunciaram a invasão de quarenta grileiros em uma carta ao superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no estado.
Os próprios indígenas conseguiram expulsar os invasores, que saíram ameaçando voltar e “matar as crianças, para que eles sentissem dor”. Em abril, a TI foi invadida novamente, e desta vez em peso: estimava-se a presença de mil grileiros dentro do território.
Esse cenário repetiu-se por todo o Brasil, em especial nas terras indígenas da Amazônia, durante o ano de 2019. “Bolsonaro estabeleceu como alvos preferenciais os povos indígenas e seus territórios, dentro dos quais ele pretende legalizar atividades econômicas, algo absolutamente inconstitucional”, diz o relatório da CPT.
O presidente tem cumprido à risca a promessa de campanha de não demarcar novos territórios indígenas, “nem um centímetro a mais”. Concomitantemente, tramitam projetos de lei no Congresso que tentam flexibilizar o licenciamento ambiental, abrindo brechas para a exploração agropecuária, minerária e energética em locais onde vivem indígenas, restando pouco espaço para os povos originários exercerem seu direito de existência.
Sônia Guajajara escreve sobre esse quadro:
— O conjunto dessas violações impacta nos direitos e na vida dos povos indígenas aumentando os conflitos, as violências e as práticas de racismo, resultando em verdadeiro genocídio, etnocídio e ecocídio contra os povos indígenas. Essas práticas não são conjunturais, fazem parte de uma estrutura do Estado Brasileiro e são legitimadas pelo atual governo, que tem se omitido em demarcar as Terras Indígenas e também produzido a impunidade dos crimes praticados contra os povos indígenas.