No 1º ano de governo, projetos de Flávio Bolsonaro destacam-se entre “atentados” legislativos contra povos do campo

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Expressão foi utilizada pelo professor Marco Mitidiero, da UFPB, em relatório da Comissão Pastoral da Terra sobre violência agrária em 2019; senador e bancada da bala uniram-se à bancada ruralista em projetos que atacam direitos sociais e ambientais

Por Ludmilla Balduino

Enquanto dados sobre o aumento da violência contra os povos indígenas e os camponeses são publicados no relatório Conflitos no Campo Brasil 2019, divulgado nesta sexta-feira (17) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), o governo federal e congressistas da bancada da bala — como um dos filhos do presidente, senador Flávio Bolsonaro — propõem leis que, se aprovadas, vão favorecer ainda mais os assassinatos de povos do campo, despejos e outras tensões nas áreas rurais nos próximos anos.

Bolsonaro em reunião da Frente Parlamentar da Agropecuária, em 2019. (Foto: Alan Santos/PR)

Há três projetos de leis apresentados pela família Bolsonaro e em processo de tramitação que merecem atenção: a Medida Provisória 910/2019, proposta pelo próprio presidente, mais conhecida como “MP da Grilagem”, a PEC 80 e o PL 2362/2019, propostos pelo senador, eleito pelo PSL do Rio de Janeiro, hoje no partido ligado à Igreja Universal, o Republicanos.

À frente de uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o geógrafo Marco Mitidiero Júnior assina no relatório da CPT um artigo específico sobre o Congresso e o que ele chama de “violência legislativa” contra o ambiente e os povos do campo. Em vez de “ataques” a esses direitos, e diante da gravidade desses projetos de lei, ele prefere uma palavra mais forte: “atentados”.

Não à toa, a truculência da família do presidente alinhou-se de imediato com as demandas históricas da bancada ruralista. Tendo como primeiro proponente o senador Flávio Bolsonaro, a Proposta de Emenda Constitucional 80 (PEC 80), assinada por mais 27 senadores, pretende alterar o significado de função social das propriedades urbanas e rurais. Em sua defesa, a PEC cria uma nova definição de propriedade privada, definida como “um bem sagrado” que “deve ser protegido de injustiças”. 

O primogênito de Jair Bolsonaro avança também sobre os temas ambientais. Assinado por ele e pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), o Projeto de Lei 2362/2019 pretende retirar qualquer tipo de punição ao proprietário rural que desmatar sua propriedade e anula a obrigação de manter áreas de reserva legal. 

“Os efeitos ambientais, climáticos e sociais da ocupação massiva do agronegócio do Cerrado e de parte da Amazônia brasileira já estão nas pesquisas científicas e denúncias dos povos tradicionais e movimentos sociais”, analisa Marco Mitidiero. “Destruir essa lei [da reserva legal] será agravar uma situação já em curso e bastante preocupante”.

MP DA GRILAGEM FAVORECE QUEM DESMATOU

O projeto ruralista mais agressivo é a MP da Grilagem, uma promessa de campanha que Jair Bolsonaro fez aos grileiros. A Medida Provisória 910/2019, que pode ser votada nos próximos dias, facilita o processo de legalização do roubo de terras públicas, já que basta o ocupante (no caso de grandes propriedades, em boa parte, grileiros) apresentar documentos que comprovem a posse da terra, com o georreferenciamento. 

Imagem aérea de Novo Progresso (PA), durante as queimadas de 2019. (Foto: Victor Moriyama/Greenpeace)

Entre os documentos que podem ser apresentados ao governo está uma comprovação de desmatamento da área ocupada. Ou seja, a prova de um crime ambiental pode se tornar um instrumento para legalizar territórios conquistados de forma ilícita. Além disso, é preciso apresentar uma declaração de que não há uso de trabalho escravo no território ocupado e prestes a ser legalizado.

Sem a obrigatoriedade de realizar uma vistoria, o Estado analisa os documentos e regulariza a propriedade, que pode ser de até 15 módulos fiscais — a depender da localização, como na Amazônia, 15 módulos fiscais resultam em uma área de milhares de hectares.

“Os grileiros são mestres em documentação e burocracia, assim os 15 módulos fiscais podem se multiplicar, basta o grileiro distribuir as regularizações entre familiares, laranjas empregados, que ele pode somar uma área enorme, como já aconteceu com o Projeto Terra Legal na Amazônia”, analisam Mitidiero  e os estudantes Lucas Araújo Martins e Brenna da Conceição Moizés, do Departamento de Geociências da UFPB. “E a checagem disso tudo é muito pouco provável, dado o sucateamento do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]”.

Na MP da Grilagem, o marco temporal para comprovar a ocupação da terra pode ser até 2014 — nesse caso o grileiro obtém um desconto sobre o valor mínimo da terra na hora de pagar para regularizar. Se o marco temporal for 2018, o ocupante terá de pagar o valor mínimo sem desconto.

PEC DE SENADOR É INCONSTITUCIONAL

A PEC que retira a função social da propriedade, proposta por Flávio Bolsonaro decorre de uma visão individualista da sociedade, como mostram Mitidiero e seus alunos:  “A noção de propriedade volta a ser entendida como um direito absoluto, de caráter individual, o que detonaria as noções de direito coletivo. Na Constituição Federal está expresso que o direito coletivo deve sobrepor o direito individual, o que mostra a inconstitucionalidade da nova proposta”.

De Olho nos Ruralistas divulgou em primeira mão, em junho, o projeto encaminhado pelo senador: “Flávio Bolsonaro propõe emenda contra a função social da terra“.

Hoje, o artigo 186 da Constituição Federal diz que uma propriedade rural só cumpre sua função social, ou seja, coletiva, se atender todos estes quatro requisitos:

  1. Aproveitamento racional e adequado;
  2. Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
  3. Observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
  4. Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Atualmente, quando um desses requisitos não é atendido, a propriedade pode ser desapropriada para reforma agrária. Se a PEC 80 for aprovada, não será mais necessário que o dono da propriedade rural cumpra os quatro requisitos, mas apenas um deles, para que a propriedade tenha sua função social garantida — e, assim, não correr mais o risco de desapropriação.

Na prática, esse afrouxamento da obrigatoriedade dos requisitos livraria, por exemplo, um grande fazendeiro produtor de soja, que não respeita leis ambientais e emprega trabalho escravo, de ser desapropriado. Isso porque ele estaria cumprindo um dos requisitos, o de “aproveitamento racional”.

Além disso, a PEC 80 altera quem decide pela desapropriação. De acordo com a lei vigente, é o presidente da República. Conforme a PEC, o poder legislativo e decisões judiciais ganham essa prerrogativa. Se a desapropriação for aprovada em uma dessas instâncias, aí sim será encaminhada para o decreto do presidente.

O artigo encabeçado por Mitidiero explica as consequências:

— Um processo de desapropriação de uma propriedade rural nunca seria votado na Câmara. E, como corre na história dos conflitos agrários, o juiz costuma pensar com a cabeça do fazendeiro, por isso seriam raríssimas as desapropriações vindas do Judiciário. Arriscamos a dizer que se nesse atual governo chegar um processo de desapropriação para reforma agrária, supostamente depois de passar pelo caminho proposto pela PEC, e se essa desapropriação for fruto de luta pela terra o atual presidente não só não assina o decreto, como rasga ou bota fogo na papelada.

Caso aconteça alguma desapropriação, a PEC de Flávio Bolsonaro obriga o Estado a pagar indenização no valor de mercado. Ou seja, o ex-proprietário receberá um valor de venda de sua propriedade rural em dinheiro vivo e imediatamente depois da desapropriação. Fatores que fariam o preço da propriedade cair em relação ao mercado, como solo degradado e falta de água no território, não serão considerados na hora da indenização. “De caráter punitivo, a nova lei passaria a ser premiativa”, analisa o pesquisador.

RURALISTAS SOMAM 111 PROJETOS DESDE 2015

A retirada de direitos de mulheres e homens do campo vem sendo realizada de forma mais intensa desde a véspera do golpe de 2016, instaurando um período antidemocrático, com a aprovação de um número recorde de projetos de lei a favor do agronegócio, retirando direitos e conquistas dos povos do campo e facilitando a destruição da natureza no país.

De acordo com dados apresentados por Mitidiero, Martins e Brenna, 2016 foi o ano em que mais ocorreu a distribuição de projetos de leis que ferem os direitos dos povos do campo. No total, foram 47 textos que, de forma geral, tentam fragilizar ou destruir leis de proteção da natureza — com as suas consequências para as populações mais vulneráveis e para a sociedade brasileira.

De 2015 até 2019, subiu para 111 o número de projetos que tramitam na Câmara e no Senado e estão relacionados à liberação de agrotóxicos, criminalização de movimentos do campo e expropriação de indígenas de seus territórios originais. 

“Esse momento da história política brasileira despertou nos ruralistas o deleite de que tudo podiam”, escrevem Mitidiero e equipe de pesquisadores. “Como não sabiam até quando duraria esse período, aproveitaram para propor e desarquivar a maior quantidade possível de projetos de lei em seu favor, a fim de garantir o que eles denominam de segurança jurídica”.

Em entrevista ao De Olho nos Ruralistas, Mitidiero explica por que existe esse esforço descomunal dos congressistas em aprovar leis que retiram direitos de povos do campo e da natureza:

— Desde um pouco antes do golpe de 2016, os interessados nas aprovações dessas leis repetem o tempo todo: “Precisamos de segurança jurídica. Precisamos de segurança jurídica”. Como se fosse um mantra. Sabemos que, mesmo atuando contra a lei, eles não vão a julgamento, não pagam multas. Só que, com a lei, eles têm mais uma segurança para continuar fazendo o que sempre fizeram, porque transformaram o delito em lei a favor deles. Nem precisam gastar dinheiro com advogado, porque já têm uma lei que defende o que eles estão fazendo.

Foto: Flávio Bolsonaro alinhou-se com face truculenta da bancada ruralista. (Fabio Rodrigues Pozzebom/EBC)

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