Um enfermeiro, dois técnicos de enfermagem e um agente que atuam em Atalaia do Norte (AM) testaram positivo para Covid-19; suspeita é de contágio a partir de um pescador; trata-se da maior região no mundo de indígenas sem contato
Por Maria Fernanda Ribeiro
A contaminação de quatro profissionais de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Vale do Javari, no Oeste do Amazonas, acendeu o alerta para o avanço da pandemia do coronavírus na maior região de indígenas isolados do mundo. De acordo com informações da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), um enfermeiro, dois técnicos de enfermagem e um agente de combate a endemias não-indígenas, que atuam no Polo Base Médio Javari, na região do município de Atalaia do Norte, teriam sido contaminados após um pescador com sintomas ter acessado a região.
Atalaia do Norte é a cidade mais próxima e a porta de entrada para a Terra Indígena Vale do Javari. Uma nota emitida pela Sesai afirma que os profissionais desconhecem a forma de contaminação, pois não tiveram contato com nenhum caso positivo. Eles afirmam que, no último mês, houve comercialização e permuta de gêneros alimentícios entre indígenas e não indígenas brasileiros e peruanos, no perímetro do Polo Base. A suspeita é a de que um pescador do município de Benjamin Constant, com sintomas de Covid-19, teria adentrado na região.
De acordo com uma fonte que já trabalhou na região e não quis se identificar, causam muita preocupação esses casos no perímetro da Terra Indígena Vale do Javari: “Se esses profissionais estavam em campo, é uma situação gritante e é gravíssimo para os índios isolados”.
O Polo Base relatado pela Sesai está localizado em uma região próxima da fronteira com o Peru, onde o Rio Javari faz divisa entre os países. A nota informa que o fluxo de pessoas é constante no território, vindas dos municípios de Tabatinga, Benjamin Constant e de cidades do Peru.
Os polos são a primeira referência para as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI), que atuam nas aldeias. Cada Polo Base cobre um conjunto de aldeias.
Os profissionais acessaram a área indígena pela última vez no dia 29 de abril, exceto o agente de combate a endemias, que entrou no dia 22 de maio. A Sesai afirma que eles passaram “por rigoroso cumprimento de quarentena”, conforme estabelecida no Plano de Contingência do Dsei Vale Do Javari para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus (Covid-19).
O Dsei Vale do Javari atende a uma população de 6,2 mil pessoas, distribuídas em 60 aldeias em uma área de 8,5 milhões de hectares. O povos contatados são Marubo, Matís, Mayoruna, Kanamari, Kulina e Tyohom Djapá e alguns grupos de Korubo. No território também vivem vários subgrupos isolados de etnias já contatadas.
LÍDER DIZ QUE FAZENDEIROS ENTRAM NO TERRITÓRIO
Em abril, o juiz federal Fabiano Verli, da Vara Única de Tabatinga (AM), na região da tríplice fronteira com Peru e Colômbia, decidiu que missionários não podem entrar na Terra Indígena Vale do Javari. Em decisão favorável à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Verli destacou a falta de imunidade dos povos isolados a germes que os não indígenas podem levar a eles. Ele refutou o argumento da liberdade religiosa: “Juiz de Tabatinga (AM) decide que missionários não podem entrar em território de indígenas isolados“.
Ainda em abril, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), dez caçadores foram detidos por servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), portando armas, na região de isolados. Lucas Marubo, vice-coordenador da Univaja, relatou ao órgão que fazendeiros também têm entrado no território.
Desde o início da pandemia, os líderes indígenas do Vale do Javari temem que as invasões possam levar doenças para as aldeias, principalmente para os povos sem contato. Lucas Marubo disse que acontecem invasões ao sul da terra indígena, perto da divisa com o Acre, e sudeste, a partir dos municípios de Eirunepé e Ipixuna. Segundo ele, fazendeiros e pescadores entram por ali.
A Sesai informou que as ações de vigilância das Síndromes Gripais e de Síndromes Respiratórias Agudas Graves na região serão intensificadas e as pessoas que tiveram contato com os profissionais ficarão sob atenção da Equipe de Resposta Rápida. O quadro de saúde dos profissionais é considerado leve. Somente o enfermeiro está sintomático e em terapia medicamentosa. Todos encontram-se em isolamento, cumprindo a quarentena dentro do Polo Base.
A contaminação de profissionais de saúde indígena que atuam na linha de frente no combate à pandemia é uma preocupação desde o início. A transmissão de coronavírus em indígenas no Amazonas começou no dia 19 de março, quando um médico no Alto Solimões fez atendimento, contaminado pela doença, e trabalhou com profissionais de saúde: enfermeiros, técnicos em enfermagem e agentes indígenas de saúde.
Em 25 de março, após ter contato com o médico, uma agente de saúde indígena do povo Kokama testou positivo. A jovem de 20 anos teve contato com sete pessoas; três delas foram contaminadas, uma delas um bebê. Esse foi o primeiro caso de coronavírus em indígenas brasileiros. No Dsei Yanomami, ao menos dezesseis profissionais testaram positivo.
|Maria Fernanda Ribeiro é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Cimi Regional Norte I): orla de Atalaia do Norte, no Amazonas