Moradores do Barra da Aroeira, em Lagoa do Tocantins (TO), veem nascentes secarem e o Cerrado desaparecer, enquanto sofrem com a pandemia; pecuaristas e sojeiros estão entre os 280 fazendeiros com propriedades incidentes no território tradicional
Por Caio de Freitas Paes
A pandemia tem sido implacável para 97 famílias quilombolas no Tocantins. Esquecido pelo poder público, o quilombo Barra da Aroeira depende mais do que nunca de suas lavouras e nascentes, além dos resquícios de Cerrado que possui. Ele fica na fronteira agrícola do Matopiba, que inclui os estados do Maranhão, do Piauí e da Bahia. Para piorar, a crise sanitária e política empacou de vez sua titulação. As dificuldades se multiplicam em um momento delicado: o quilombo foi o mais desmatado no Brasil em 2019.
Segundo levantamento da plataforma MapBiomas, os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) identificaram, entre janeiro e dezembro, o desmatamento de pouco mais de 602 hectares em Barra da Aroeira. A devastação ocorre enquanto pecuaristas e sojeiros avançam sobre o quilombo. Políticos tocantinenses, alguns deles com propriedades incidentes no território tradicional, trabalham a favor dos fazendeiros nos bastidores.
“Não temos condição de plantar tudo que precisamos, os fazendeiros sempre querem mais terra e nós passamos muita dificuldade”, diz Maria de Fátima Rodrigues, líder da Associação Comunitária dos Quilombos de Barra da Aroeira. Nascida e criada na comunidade, ela afirma que os quilombolas estão em apuros durante a pandemia, sem dinheiro e com suas terras comprometidas.
Ela conta que eles ainda vivem encurralados, sob constante cerco e ameaças:
— No ano passado construímos um galpão para reunir a comunidade, para debater e decidir nossas atividades juntos. Mas ele acabou incendiado, queimou tudo que tinha dentro. Ninguém foi preso, até hoje não sabemos quem tacou fogo ali.
MULTADO POR DESMATAMENTO, GOVERNADOR JOGA CONTRA
Barra da Aroeira é cercado por riachos e afluentes do Rio das Balsas, um dos principais da região. Maria de Fátima conta que os quilombolas veem, “de mãos atadas”, córregos e nascentes secarem graças ao desmatamento. Durante a pandemia da Covid-19, o acesso a este recurso natural torna-se ainda mais importante, seja para irrigar lavouras ou para manter hábitos de higiene e desinfecção nas comunidades. Mas, no campo, a água frequentemente tem outros donos.
Dados reunidos pela Agência Nacional de Águas (ANA) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que a agropecuária, como a que cerca o quilombo, respondia em 2017 por mais de 97% do consumo total de água no Brasil. “Já tivemos muita água por aqui”, diz a líder comunitária. “Hoje dependemos de poços artesianos”.
O quilombo foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares em 2006, mas sua titulação está empacada desde 2011. Sem o título, os quilombolas dependem do governo estadual, que lhes concede o uso de parte da área. As vitórias de Jair Bolsonaro e Mauro Carlesse (DEM) frearam de vez o processo.
Em fevereiro, a série De Olho nos Desmatadores mostrou que Carlesse é o único governador na lista de multas milionárias aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Ele foi autuado em R$ 1,8 milhão por desmatamento em Lagoa da Confusão (TO): “Carlesse (DEM-TO) é único governador com mandato na lista de multados por desmatamento do Ibama“.
O município fica em uma área estratégica para a conservação do Cerrado no Tocantins, próximo da Ilha do Bananal e do Parque Nacional do Araguaia. A maior ilha fluvial do mundo foi um dos principais alvos da devastação do bioma em 2019: “Destruição do Cerrado em 2019 foi mais rápida que na Amazônia e avançou sobre áreas protegidas“.
MPF DIZ QUE DEPUTADOS PROTEGEM OS PROPRIETÁRIOS
O Ministério Público Federal (MPF) acompanha os conflitos no quilombo Barra da Aroeira. O procurador da República Álvaro Manzano, responsável pelo caso, diz que a influência de pecuaristas e sojeiros atrasa a titulação:
— Existem interesses políticos e econômicos em Barra da Aroeira. Grande parte dos deputados estaduais e federais do Tocantins são ruralistas, então há uma ‘proteção’ para aqueles que terão de sair do território, ao fim da demarcação.
De acordo com o relatório de identificação e delimitação do quilombo, publicado em novembro de 2011, pelo menos 280 imóveis incidiam na área, estimada em pouco mais de 62 mil hectares. “A maioria são propriedades menores, mas há também latifúndios para pecuária e plantio de soja”, descreve Manzano.
O levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) revela que há políticos tocantinenses com propriedades ali. O vice-prefeito de Novo Acordo, Leto Moura Leitão (PR), é um deles. Barra da Aroeira se situa entre Lagoa do Tocantins, Novo Acordo e Santa Tereza do Tocantins, a 80 quilômetros da capital, Palmas.
Conhecido pelo apelido de Letim, Leitão possui 1,9 mil hectares registrados em seu nome ou em sociedade dentro do quilombo. Ele protagonizou um episódio policial em 2019: foi quando a Polícia Civil o acusou de encomendar o assassinato do prefeito de Novo Acordo, Elson Lino Aguiar (MDB).
O prefeito Dotozim — eles têm em comum apelidos rimados — foi alvejado com três tiros na sala de sua casa, em janeiro de 2019. Um dos envolvidos acusou Letim de ter planejado o crime, supostamente por rusgas na divisão de R$ 800 mil em propinas. Em setembro, a Justiça determinou a prisão domiciliar de Leitão.
Outro político com interesses no quilombo é Antônio Jorge Godinho. Ele é presidente do PSL no Tocantins e concorreu ao Senado em 2018, quando foi derrotado. Sua declaração de bens à Justiça Eleitoral mostra que ele é dono das Fazendas Terra Preta e São Carlos, no loteamento Caracol, em Santa Tereza do Tocantins. O loteamento invade os 62 mil hectares de Barra da Aroeira: no total, Godinho é dono de mais de 1,9 mil hectares em terras quilombolas.
‘ESTÁ DIFÍCIL ESCOAR O POUCO QUE COLHEMOS’
A resistência em Barra da Aroeira tem rosto de mulher. Além de trabalharem coletivamente no plantio e na colheita de abóbora, feijão e mandioca, as quilombolas protegem o que resta de Cerrado na área. Maria de Fátima conta que a comunidade habita a região desde o século 19, quando teriam recebido as terras como recompensa pela participação de seus antepassados na Guerra do Paraguai.
As quilombolas mantêm a produção agroecológica de espécies nativas, como o açafrão da terra, o baru, o pequi e a pimenta de macaco. A venda desses produtos típicos complementa a renda de toda a comunidade. “Produzimos paçoca de baru e também medicamentos, como óleo essencial de pequi”, conta Maria de Fátima. “Mas está difícil escoar o pouco que colhemos, nosso Cerrado está desaparecendo”.
O isolamento social traz consigo outros dilemas. O quilombo enfrenta dificuldades para a venda de seus produtos. Hoje, anunciam a venda de farinha de mandioca, baru torrado e óleo de pequi pelas mídias sociais, mas há limitações para a entrega.
Em 2019, a produção agroecológica das quilombolas de Barra da Aroeira foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), que usou a experiência como tema da campanha “Mulheres Rurais, Mulheres com Direitos“, em parceria com a Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério da Agricultura.
PARA O MPF, LOBBY DO AGRONEGÓCIO ATRASA TITULAÇÃO
A pandemia do novo coronavírus enfraqueceu pequenos agricultores em todo o país, mas há aqueles que ao menos têm acesso ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). As 97 famílias de Barra da Aroeira poderiam se beneficiar, mas a paralisia do Incra e do governo do Tocantins impede sua participação. “Criamos uma cooperativa, com CNPJ e tudo o que exigem da gente, mas, sem um documento ou registro da terra, não temos direito aos benefícios”, diz Maria de Fátima.
Em dezembro, os quilombolas tiveram um relance de dias melhores. Reuniram-se com representantes do Instituto de Terras do Tocantins (Itertins) e do MPF para a regularização de pelo menos mil hectares no loteamento Caracol, do governo estadual. O presidente do Itertins, Divino José Ribeiro, comprometeu-se a iniciar, em fevereiro, os trabalhos de campo. Quatro meses depois, nada mudou.
“O estado não faz nada, dependemos dele pra pelo menos titular esses mil hectares onde estamos”, afirma a líder comunitária. “Não temos nenhum documento ou título, só uma autorização de uso, que não basta”.
“Advogados dos fazendeiros trabalham sem parar”
Em novembro, servidores federais reuniram-se com a comunidade e o com o MPF. Um antropólogo do Incra em Brasília disse que faltava dinheiro — e vontade — para concluir a regularização fundiária. O mesmo servidor informou que, em 2019, o órgão tinha “menos de R$ 1 milhão para indenizações, e somente o território de Barra da Aroeira está avaliado em torno de R$ 300 milhões”.
Os quilombolas ficaram contra a parede: ou aceitavam a redução da área original em ao menos 20 mil hectares, ou o processo seguiria empacado. Não cederam até aqui. “Os fazendeiros só pressionam a gente, já criaram associações e têm advogados trabalhando sem parar pra continuarem ocupando nosso território, mas nós não desistimos”, diz a líder comunitária de Barra da Aroeira.
O Incra reconhece que tenta redefinir a área do quilombo e que “está recorrendo para que o prazo para a regularização seja estendido”. Ao De Olho nos Ruralistas, a assessoria da instituição sustenta que o cronograma “ainda não foi finalizado, tendo em vista a complexidade e a dimensão do território”. O Itertins não se manifestou.
| Caio de Freitas Paes é repórter. Escreve para De Olho nos Ruralistas e The Intercept Brasil, entre outros veículos |
Foto principal (FAO): avanço do agronegócio ameaça agricultura e extrativismo sustentáveis em Barra da Aroeira