Memórias da Pandemia — O adeus de Tia Uia, matriarca do Quilombo da Rasa, no Rio

In De Olho nos Conflitos, Em destaque, Principal, Quilombolas, Últimas

Uma das principais líderes quilombolas do país, morta por Covid-19 no dia 10, ela lutou pela regularização de terras e contra a especulação imobiliária; era conhecida como Griot, termo para quem tem vocação de transmitir histórias e conhecimentos de seu povo

Por Sarah Fernandes

Aos 72 anos, Tia Uia participava ativamente da vida do Quilombo da Rasa. (Foto: Reprodução)

Aguerrida, sorridente, persistente e atuante. É assim que os amigos, familiares e companheiros de luta se recordam de Carivaldina Oliveira da Costa, a Tia Uia.  Uma das principais líderes quilombolas do país e matriarca do Quilombo da Rasa, em Búzios (RJ), ela travou uma luta permanente pela regularização do território, pelo acesso da comunidade a direitos sociais e pela manutenção da cultura e da tradição quilombolas. No último dia 10, vítima do novo coronavírus, deixou um exemplo de resistência.

Aos 78 anos, Tia Uia carregava com orgulho a alcunha de Griot, termo utilizado na África Ocidental para designar aqueles que têm por vocação transmitir as histórias e conhecimentos de seu povo. Foi essa missão que ela abraçou ao longo da vida, difundindo os festejos populares, as técnicas agrícolas sustentáveis e a medicina tradicional quilombola — que na região faz uso intenso das sementes da aroeira, conhecidas na culinária como pimenta rosa.

Em nota, a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), organização que Tia Uia ajudou a fundar, lamenta a perda de uma das mais importantes matriarcas do Brasil:

— Sua luta não foi e nunca será em vão, pois assim como sua vida foi uma inspiração para todos e todas que a conheciam, assim será também após sua morte. Seguiremos firmes, incansavelmente como ela nos ensinou, pois para sempre ela estará presente em nossas vidas.

LUTOU CONTRA O RACISMO E POR EDUCAÇÃO E SAÚDE

Localizado na Região dos Lagos fluminense, uma área cobiçada pelo setor imobiliário para construção de condomínios e resorts de luxo, o Quilombo da Rasa foi reconhecido oficialmente pela Fundação Palmares em 2005. A delimitação do território pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no entanto, levou doze anos: o relatório foi emitido em 2017 e enfrentou resistência de empresários do setor.

À pressão territorial se soma ainda a econômica: junto à agricultura familiar, pesca e artesanato, o turismo constitui uma das principais fontes de renda das 422 famílias que vivem no território. Essa dependência era uma das grandes preocupações de Tia Uia, que temia que a juventude abandonasse os conhecimentos sobre o plantio e uso de produtos da natureza para garantir sua subsistência e renda, a partir do cultivo tradicional de aipim, banana, abacate, acerola, manga, carambola e hortaliças, comumente cultivadas pelos quilombolas da região.

Quilombolas da Rasa venceram batalha de anos para demarcação do território tradicional. (Foto: Reprodução)

Para a matriarca, isso equivaleria à tirar dos jovens o direito de pertencer à terra, enquanto espaço de vida, de memória e de ancestralidade. Uma preocupação que refletia sua própria história.

Tia Uia era filha de agricultores e neta de uma ex-escravizada, nascida na senzala da antiga Fazenda Campos Novos. Aos 14 anos, Uia se mudou para a capital fluminense em busca de emprego para ajudar a família, que na época enfrentava grandes dificuldades financeiras. Alguns anos depois retornou à comunidade, onde se casou e teve sete filhos.

No Quilombo da Rasa, ela se reencontrou com a causa quilombola, herança da mãe, Vó Eva, hoje com 110 anos. Juntas, as duas matriarcas formaram uma geração de mulheres atuantes na defesa dos quilombolas e de sua memória.

Nas comunidades, tradicionalmente, as mulheres ocupam posições importantes, assumindo o trabalho na roça, o cuidado da família e a educação dos filhos. Tia Uia fez história ao incentivar a participação feminina em movimentos políticos contra o racismo e por reconhecimento do território, conduzindo a formação de associações e cooperativas e lutando pelo acesso à educação e saúde.

Hoje, as mulheres já são maioria nas entidades representativas da Rasa, conduzindo boa parte das ações, enquanto os maridos trabalham nas zonas urbanas. Em geral, no turismo.

10% DAS PESSOAS NO QUILOMBO PODEM ESTAR INFECTADAS

O grande fluxo de turistas na Região dos Lagos, mesmo em meio à pandemia do coronavírus, vem tirando o sono dos quilombolas da Rasa. Até o dia 16 o quilombo tinha, oficialmente, três mortos pela Covid-19, com catorze pessoas infectadas e quarenta com sintomas da doença, em quarentena. A Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Aquisidor) estima que ao menos 10% dos quilombolas da Rasa podem estar infectados.

Segundo a plataforma Observatório da Covid-19 nos Quilombos, a taxa de letalidade da doença entre os quilombolas é o dobro da média nacional. Nos últimos 72 dias, foram 86 óbitos confirmados em todo país: mais de uma morte por dia. Como a doença é particularmente agressiva entre idosos, comunidades temem a perda de seus anciões, elos com todo o arcabouço da cultura e da tradição quilombola.

Atualmente, o Brasil reúne pelo menos 3 mil comunidades remanescentes de quilombos em diferentes etapas de reconhecimento. Destas, 48 se localizam no Rio de Janeiro.

| Sarah Fernandes é repórter do De Olho nos Ruralistas |

Foto principal (Reprodução/YouTube): Tia Uia, símbolo de resistência na luta quilombola

LEIA MAIS:
Memórias da Pandemia — Em um mês, Covid-19 mata cinco guerreiros Munduruku
Memórias da Pandemia — Messias Kokama: um cacique de muitos povos
Memórias da Pandemia — Feliciano Lana, o artista indígena do Alto Rio Negro
Memórias da Pandemia — Aldevan Baniwa, a vítima da Covid-19 que ensinava pesquisadores a ver

You may also read!

Proprietária que reivindica terras em Jericoacoara é sobrinha de governadores da ditadura

Tios de Iracema Correia São Tiago governaram o Ceará e o Piauí durante os anos de chumbo; os três

Read More...

Clã que se diz dono de Jericoacoara foi condenado por fraude milionária em banco cearense

Ex-marido de Iracema São Tiago dirigiu o Bancesa, liquidado por desviar R$ 134 milhões da União e do INSS

Read More...

Prefeitura de SP nega superfaturamento e diz que obra de R$ 129 milhões segue “ritos legais”

Investigada por irregularidades, Ercan Construtora foi contratada para obra emergencial em talude na comunidade Morro da Lua, no Campo

Read More...

Leave a reply:

Your email address will not be published.

Mobile Sliding Menu