Uma das principais líderes quilombolas do país, morta por Covid-19 no dia 10, ela lutou pela regularização de terras e contra a especulação imobiliária; era conhecida como Griot, termo para quem tem vocação de transmitir histórias e conhecimentos de seu povo
Por Sarah Fernandes
Aguerrida, sorridente, persistente e atuante. É assim que os amigos, familiares e companheiros de luta se recordam de Carivaldina Oliveira da Costa, a Tia Uia. Uma das principais líderes quilombolas do país e matriarca do Quilombo da Rasa, em Búzios (RJ), ela travou uma luta permanente pela regularização do território, pelo acesso da comunidade a direitos sociais e pela manutenção da cultura e da tradição quilombolas. No último dia 10, vítima do novo coronavírus, deixou um exemplo de resistência.
Aos 78 anos, Tia Uia carregava com orgulho a alcunha de Griot, termo utilizado na África Ocidental para designar aqueles que têm por vocação transmitir as histórias e conhecimentos de seu povo. Foi essa missão que ela abraçou ao longo da vida, difundindo os festejos populares, as técnicas agrícolas sustentáveis e a medicina tradicional quilombola — que na região faz uso intenso das sementes da aroeira, conhecidas na culinária como pimenta rosa.
Em nota, a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), organização que Tia Uia ajudou a fundar, lamenta a perda de uma das mais importantes matriarcas do Brasil:
— Sua luta não foi e nunca será em vão, pois assim como sua vida foi uma inspiração para todos e todas que a conheciam, assim será também após sua morte. Seguiremos firmes, incansavelmente como ela nos ensinou, pois para sempre ela estará presente em nossas vidas.
LUTOU CONTRA O RACISMO E POR EDUCAÇÃO E SAÚDE
Localizado na Região dos Lagos fluminense, uma área cobiçada pelo setor imobiliário para construção de condomínios e resorts de luxo, o Quilombo da Rasa foi reconhecido oficialmente pela Fundação Palmares em 2005. A delimitação do território pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no entanto, levou doze anos: o relatório foi emitido em 2017 e enfrentou resistência de empresários do setor.
À pressão territorial se soma ainda a econômica: junto à agricultura familiar, pesca e artesanato, o turismo constitui uma das principais fontes de renda das 422 famílias que vivem no território. Essa dependência era uma das grandes preocupações de Tia Uia, que temia que a juventude abandonasse os conhecimentos sobre o plantio e uso de produtos da natureza para garantir sua subsistência e renda, a partir do cultivo tradicional de aipim, banana, abacate, acerola, manga, carambola e hortaliças, comumente cultivadas pelos quilombolas da região.
Para a matriarca, isso equivaleria à tirar dos jovens o direito de pertencer à terra, enquanto espaço de vida, de memória e de ancestralidade. Uma preocupação que refletia sua própria história.
Tia Uia era filha de agricultores e neta de uma ex-escravizada, nascida na senzala da antiga Fazenda Campos Novos. Aos 14 anos, Uia se mudou para a capital fluminense em busca de emprego para ajudar a família, que na época enfrentava grandes dificuldades financeiras. Alguns anos depois retornou à comunidade, onde se casou e teve sete filhos.
No Quilombo da Rasa, ela se reencontrou com a causa quilombola, herança da mãe, Vó Eva, hoje com 110 anos. Juntas, as duas matriarcas formaram uma geração de mulheres atuantes na defesa dos quilombolas e de sua memória.
Nas comunidades, tradicionalmente, as mulheres ocupam posições importantes, assumindo o trabalho na roça, o cuidado da família e a educação dos filhos. Tia Uia fez história ao incentivar a participação feminina em movimentos políticos contra o racismo e por reconhecimento do território, conduzindo a formação de associações e cooperativas e lutando pelo acesso à educação e saúde.
Hoje, as mulheres já são maioria nas entidades representativas da Rasa, conduzindo boa parte das ações, enquanto os maridos trabalham nas zonas urbanas. Em geral, no turismo.
10% DAS PESSOAS NO QUILOMBO PODEM ESTAR INFECTADAS
O grande fluxo de turistas na Região dos Lagos, mesmo em meio à pandemia do coronavírus, vem tirando o sono dos quilombolas da Rasa. Até o dia 16 o quilombo tinha, oficialmente, três mortos pela Covid-19, com catorze pessoas infectadas e quarenta com sintomas da doença, em quarentena. A Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Aquisidor) estima que ao menos 10% dos quilombolas da Rasa podem estar infectados.
Segundo a plataforma Observatório da Covid-19 nos Quilombos, a taxa de letalidade da doença entre os quilombolas é o dobro da média nacional. Nos últimos 72 dias, foram 86 óbitos confirmados em todo país: mais de uma morte por dia. Como a doença é particularmente agressiva entre idosos, comunidades temem a perda de seus anciões, elos com todo o arcabouço da cultura e da tradição quilombola.
Atualmente, o Brasil reúne pelo menos 3 mil comunidades remanescentes de quilombos em diferentes etapas de reconhecimento. Destas, 48 se localizam no Rio de Janeiro.
| Sarah Fernandes é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Reprodução/YouTube): Tia Uia, símbolo de resistência na luta quilombola
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