Em nota, Comissão Pastoral da Terra afirma que cadeias produtivas não se prepararam para seguir as recomendações da OMS, fator de expansão da Covid-19 junto com as “políticas equivocadas em nível nacional, estadual e municipal”
Por Poliana Dallabrida
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou uma nota nesta quinta-feira (13) em que denuncia a contaminação em massa de trabalhadores do setor agroindustrial, entre outros no meio rural, por Covid-19. A organização responsabiliza as empresas pelas falhas em protocolos de segurança: “Frigoríficos, construtoras e mineradoras, principalmente, têm contribuído para a interiorização da tragédia sanitária e social que atinge a população brasileira”.
Empresas responsáveis pela produção, distribuição, comercialização e entrega de alimentos não se prepararam adequadamente para seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para prevenção e enfrentamento da pandemia, avalia a CPT. A falta de planejamento é comprovada pelos números da doença.
Confira um trecho da nota:
— A irresponsabilidade com os protocolos de segurança por parte de empresas desses setores, aliada às políticas equivocadas em nível nacional, estadual e municipal no combate à pandemia, influenciam determinantemente no aumento das infecções e dos óbitos por todo o país. Daí resulta que passamos de 104.500 mil mortos em decorrência da pandemia do novo coronavírus e assumimos a vanguarda macabra mundial.
A Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac) estima que ao menos 200 mil trabalhadores foram infectados — o equivalente a 25% do total da mão de obra. Entre 25% e 50% dos trabalhadores contaminados atuam nas cadeias produtivas de aves, suínos e bovinos.
De Olho nos Ruralistas mostrou em junho que o Ministério Público do Trabalho (MPT) possuía 213 investigações abertas por surtos entre funcionários de frigoríficos em 22 estados: “Agronegócio pode ter infectado 400 mil trabalhadores no Brasil por Covid-19“. Conforme o levantamento, feito a pedido da reportagem, 87 plantas já firmaram Termos de Ajustamento de Conduta (TACs); em outras 11 houve solicitação de fechamento. A maioria delas fica na região Sul. O MPT também propôs dezesseis ações civis públicas.
Se a oferta de condições seguras aos trabalhadores não foi suficiente para que o setor se preparasse, talvez a pressão de compradores estrangeiros seja. O governo chinês afirmou nesta quinta-feira ter identificado amostras de asa de frango importadas do Brasil infectadas pelo novo coronavírus. O produto tinha como origem um frigorífico do sul de Santa Catarina. Até 2017, o Brasil era o maior fornecedor de frango ao país asiático.
MINERADORAS FORAM OUTRO VETOR DE CONTAMINAÇÃO
A construção civil e a mineração são outros dois setores destacados na nota da CPT. Trabalhadores de canteiros de obras Andrade Gutierrez foram contaminados pelo novo coronavírus na Bahia. A empresa atua na construção de linhas de transmissão de energia no estado. No município baiano de Campo Alegre de Lourdes, a empreiteira enviou trabalhadores para hotéis e pousadas: “Trabalhadores da Andrade Gutierrez com Covid-19 fizeram quarentena na boleia de um caminhão“.
Em Minas Gerais, trabalhadores foram contaminados na construção de linhas de transmissão para a empreiteira Cobra Brasil. A empresa pertence ao Consórcio Mantiqueira Transmissora de Energia S/A, do grupo Brookfield. A companhia está envolvida em conflitos fundiários e na contaminação de moradores de territórios tradicionais da comunidade geraizeira em Vale das Cancelas, no norte do estado. O observatório contou o caso em junho: “Empresa do grupo Brookfield coloca geraizeiros em risco de contágio por Covid-19”.
A pandemia expõe o descaso com a atendimento de saúde aos povos do campo. “A infecção comunitária é um problema em vários estados, e vem se agravando principalmente em pequenas comunidades e nos povos originários e tradicionais”, diz trecho da nota da CPT.
Segundo levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 667 indígenas morreram e 24,5 mil foram contaminados pela Covid-19 até o momento. Entre os quilombolas, conforme dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), foram registrados 152 mortes e 4,1 mil casos.
“Constatamos também que os impactos e efeitos da Covid-19 têm diferenças de classe, de etnia e de modos de vida”, afirma a CPT. “A forma com que o vírus vem se espalhando na sociedade brasileira evidencia os problemas estruturais oriundos da exploração secular do capitalismo agrário, neocolonial, agroindustrial, financeiro”.
O texto da Comissão Pastoral da Terra termina com um elogio a “postura corajosa e profética da Carta ao Povo de Deus assinada por 152 bispos da Igreja Católica”. Na carta, apoiada por 1,5 mil sacerdotes no começo de agosto, os religiosos destacaram a omissão e inércia do governo federal com o momento que consideram “um dos mais difíceis da história do país” por se tratar de uma “combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança”.
Em abril, as pastorais sociais do campo já tinham se posicionado contra as ações do governo frente à pandemia: “Pastorais do campo falam em genocídio e pedem afastamento urgente de Bolsonaro“.
Em todo o país, 3,1 milhões de pessoas estão contaminadas e 104,2 mil já perderam a vida em decorrência do novo coronavírus.
CONFIRA A NOTA DA CPT, NA ÍNTEGRA
“A Diretoria e a Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra – CPT vêm a público denunciar o aumento exponencial dos casos de Covid-19 registrados entre trabalhadoras e trabalhadores do setor agroindustrial e de outros que utilizam mão-de-obra no campo, afetando também comunidades camponesas e povos tradicionais. Frigoríficos, construtoras e mineradoras, principalmente, têm contribuído para a interiorização da tragédia sanitária e social que atinge a população brasileira.
A irresponsabilidade com os protocolos de segurança por parte de empresas desses setores, aliada às políticas equivocadas em nível nacional, estadual e municipal no combate à pandemia, influenciam determinantemente no aumento das infecções e dos óbitos por todo o país. Daí resulta que passamos de 104.500 mil mortos em decorrência da pandemia do novo coronavírus e assumimos a vanguarda macabra mundial.
Os conflitos e violências no campo brasileiro continuam mesmo durante a pandemia. Fazendeiros, grileiros de terra, escravagistas, madeireiros, mineradoras, empresas de energia considerada “limpa” etc. não fazem quarentena! A situação tem piorado também em consequência das medidas do Governo Federal que incentivam o uso de agrotóxicos e o desmatamento, restringem os direitos territoriais e ambientais e desautorizam as instâncias de fiscalização trabalhista e ambiental. Estas medidas favorecem a dinâmica predatória da produção de grãos, de minérios, de madeira e de energia, jogando na invisibilidade os mais graves crimes contra a pessoa e contra o meio ambiente. Por conta da vigilância da sociedade civil organizada e da louvável teimosia de agentes públicos, casos graves de trabalho escravo continuaram sendo flagrados, por último em Santa Catarina, vitimizando trabalhadores aliciados no Maranhão e no Ceará, entre outros.
“Fazendeiros e grileiros não fazem quarentena”
A produção, distribuição, comercialização e entrega de alimentos são atividades consideradas essenciais, não podendo ser interrompidas durante a pandemia. A necessidade de alimentação da população, no entanto, não veio acompanhada dos cuidados com a vida daqueles que a garantem. Os números mostram que o setor não se preparou para seguir as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) no enfrentamento da pandemia. Comprovam também que isso contribuiu para espalhar o vírus em comunidades e municípios do interior do país onde atuam. A Portaria Conjunta 19/2020 dos Ministérios da Agricultura, Saúde e Economia, que dispõe sobre as normas de prevenção para a indústria frigorífica, mostrou-se pouco efetiva: os casos de contaminação não cessam no setor.
A Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac) estima que foram infectados pelo menos 200 mil dos aproximadamente 800 mil funcionários e funcionárias do setor. Segundo a entidade, entre 25% e 50% desses trabalhadores e trabalhadoras foram infectados em decorrência das atividades nas cadeias produtivas de aves, suínos e bovinos. Denúncias vêm sendo feitas desde junho, sem resultar em medidas de prevenção à altura da gravidade do problema.
Até 07 de julho, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tinha aberto processos na Justiça para interdição de 11 frigoríficos em seis estados, após as denúncias de contaminação de funcionários. Seis deles chegaram a ser fechados, depois reabertos, mediante Termos de Ajustamento de Conduta – TACs. Outras 213 investigações estavam em curso em 22 estados para apurar denúncias semelhantes no setor.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) abriu 213 investigações em 22 estados para apurar denúncias neste setor, após o surto da contaminação entre funcionários. Destas, o Rio Grande do Sul concentra o maior número de investigações em frigoríficos: em 23 municípios do estado, empresas apresentaram trabalhadores infectados, desde o início da pandemia. A JBS, maior empresa do ramo e também a de maior contaminação, veio a agir paliativamente, depois de intervenções do MPT, e desencadeou intensa propaganda de suas ações. Em Passo Fundo – RS, entre 400 empregados testados, 180 tinham a doença; mesma situação em outras duas unidades neste estado. Em Goiás, foram em torno de 700 contaminados na unidade de Rio Verde. Em todo o município, um ícone do agronegócio, somam 9.751 casos, com 140 óbitos, até 06/08/2020. Em Rondônia, 60% dos casos de Covid-19 em São Miguel do Guaporé são de funcionários da JBS; entre eles, dois quilombolas, que levaram a doença para sua comunidade.
A infecção comunitária é um problema em vários Estados, e vem se agravando principalmente em pequenas comunidades e nos povos originários e tradicionais. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirma que até o dia 13 de agosto foram registrados 667 óbitos entre os 146 povos afetados. Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), foram registrados até 11 de agosto 151 óbitos de quilombolas em 15 estados.
As comunidades do campo têm sido contaminadas também pela atuação do setor da construção civil. Na Bahia, trabalhadores foram contaminados em canteiros de obras da Andrade Gutierrez, que ali constrói linhas de transmissão de energia: 34 em Nova Holanda, no município de Pilão Arcado, e 28 em Angico, município de Campo Alegre de Lourdes; neste, o alojamento dos trabalhadores contaminados foi incendiado por moradores. Empresas construtoras de parques eólicos são focos principais de contaminação dos mais de 100 casos ocorridos em Pindaí e Palmas de Monte Alto, também na Bahia. Em Minas Gerais, trabalhadores da empreiteira Cobra Brasil, em Jaboticatubas, a 60 km de Belo Horizonte, estavam contaminados. A empresa que pertencente ao Consórcio Mantiqueira Transmissora de Energia S/A, do grupo Brookfield, instala linhas de transmissão por vários municípios do estado, inclusive o Vale das Cancelas, distrito de Grão Mogol, no norte do estado, local em que os direitos territoriais tradicionais da comunidade geraizeira não estão sendo respeitados.
Na mineração, o quadro não é diferente. Números oficiais falam em 20.362 casos confirmados e 152 mortes por Covid-19 em Parauapebas – PA até 05/08/2020, números superiores aos de muitas capitais. A cidade, que se formou e cresceu em função da mineradora Vale, enfrenta um colapso no sistema de saúde que torna ainda pior o quadro. A Vale, uma das três maiores mineradoras do mundo, campeã de doações para combate à Covid-19 no Brasil, em competentes ações de marketing, não dispõe de outra forma de apoio aos municípios que perderam valores da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais – CFEM. Num protesto de rua, em maio, na cidade de Brumadinho – MG, local da tragédia criminosa do rompimento da barragem de rejeitos da empresa, em janeiro de 2019, que levou à morte 259 moradores e 11 desaparecidos, dizia-se: “A Covid-19 mata e Vale também, lutem contra esses males”. No final daquele mês, o complexo minerador da Vale em Itabira – MG, a 105 km de Belo Horizonte, foi interditado após fiscais do trabalho terem identificado 200 trabalhadores infectados – 10% do total de funcionários que atuam na empresa.
“A Covid-19 mata e a Vale também”
Constatamos também que os impactos e efeitos da Covid-19 têm diferenças de classe, de etnia e de modos de vida. A forma com que o vírus vem se espalhando na sociedade brasileira evidencia os problemas estruturais oriundos da exploração secular do capitalismo agrário, neocolonial, agroindustrial, financeiro.
Diante disso, a CPT vem alertar a sociedade brasileira para a gravidade dessa situação que atinge trabalhadores, trabalhadoras e as comunidades onde vivem, de responsabilidade das empresas e com omissão ou conivência das autoridades.
Para a CPT essa situação alarmante deve ser denunciada aos órgãos nacionais e internacionais de Direitos Humanos. Juntamo-nos às denúncias em curso no âmbito nacional e internacional sobre o assunto e, de modo especial, saudamos a postura corajosa e profética da Carta ao Povo de Deus assinada por 152 bispos da Igreja Católica, divulgada no dia 26/07/2020 e apoiada por 1.543 sacerdotes em 05/08/2020. A carta afirma que o Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, fruto da “combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.” Completam os bispos que “não cabe omissão, inércia e nem conivência diante dos desmandos do Governo Federal”.
No momento atual, até por razões humanitárias, os esforços do Estado, das empresas e de toda a sociedade devem priorizar a solidariedade concreta com os cidadãos e cidadãs, famílias, comunidades e povos em situação de vulnerabilidade social, alimentar e sanitária. Ao cabo, porém, impõe-se inexorável a questão: até quando nossa sociedade vai suportar a tragédia em andamento sem agir à altura exigida para uma mudança real?”
Goiânia, 13 de agosto de 2020.
Diretoria e Coordenação Nacional Executiva da CPT.
| Poliana Dallabrida é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Reprodução): frigorífico Avenorte teve 190 funcionários diagnosticados com Covid-19