Enquanto movimento de camponeses ultrapassa 3.100 toneladas de alimentos entregues, madeireira, que fatura US$ 70 milhões por ano, faz marketing em cima da doação de apenas um ventilador pulmonar; instituições disputam território no Paraná
Por Mariana Franco Ramos
Esta notícia saiu na mídia: a madeireira Araupel, dona de um faturamento de mais de US$ 70 milhões em 2018 (R$ 392 milhões, na cotação atual), doou um ventilador pulmonar para o Hospital Cristo Rei, de Quedas do Iguaçu, no centro-oeste do Paraná. O gerente da planta do município, Itamar Antônio Signori, foi pessoalmente à unidade, no início de abril, entregar o aparelho.
Houve uma espécie de cerimônia, com direito a foto e divulgação da ação por parte da assessoria de imprensa da fábrica. O portal local Cantu publicou matéria a respeito. “Todos devemos fazer nossa parte para enfrentar esse desafio global”, destacou o diretor-executivo da empresa, Norton Fabris, em referência à pandemia de Covid-19. A parte da Araupel, publicizada, foi a doação do equipamento.
Esta outra notícia não saiu na mídia — ao menos, não na mídia comercial. No Dia Internacional do Agricultor e da Agricultora Familiar, 25 de julho, 5 mil famílias doaram 80 toneladas de alimentos, nas regiões central, norte e sudoeste do Paraná. Os camponeses vivem em vinte comunidades, espalhadas em sete municípios, que compõem o maior complexo de reforma agrária da América Latina, formado em cima de terras públicas griladas pela Araupel na década de 70.
O agricultor Jonas Nathã Fures, de 26 anos, do acampamento Dom Tomás Balduíno, em Quedas, conta que as famílias doaram parte do que produzem para comer: hortaliças, feijão, arroz, milho e mandioca. “Graças a Deus, comida a gente tem bastante na roça e consegue dividir”, afirma ele, que ajudou a coordenar a ação.
Fures destaca a parte humana das partilhas. “As pessoas que participam e se envolvem se tornam seres humanos melhores”, opina. “Esse é o resultado da luta pela terra. Não pode num país como o Brasil, que é auto-suficiente em tudo o que produz, ter gente passando fome”.
A ação do Paraná faz parte da campanha nacional de solidariedade do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que, desde o início de abril, entregou mais de 3.100 toneladas de comida sem agrotóxico em todo o país. A iniciativa do estado foi a maior realizada pelo movimento em um único dia. Só as famílias do complexo da madeireira partilharam 97 toneladas, sendo 80 toneladas na ação de julho e 17 toneladas em doações menores, nos meses anteriores.
TEMER LEVOU SÓ 6 TONELADAS DE ALIMENTO, MAS GANHOU ESPAÇO
Membro da coordenação nacional do movimento, Kelli Mafort critica a campanha Solidariedade S/A, veiculada diariamente no Jornal Nacional, da Rede Globo, exibindo doações de grandes empresas que doam parte irrisória do que possuem – o que sobra, mais precisamente:
— Os lucros dos bilionários brasileiros aumentaram, o que é um escândalo. A gente denuncia isso, enfatizando que nossa solidariedade é de classe, do povo ajudando o povo. E também denuncia o Estado, que não é só omisso, é genocida.
Ainda segundo ela, o discurso de criminalização do MST, amplamente repercutido por veículos da grande mídia, cai por terra quando as pessoas entendem a proposta pedagógica do movimento. “Na nossa cabeça nunca foi apenas doação de comida”, comenta. “É uma solidariedade que provoca e convoca as pessoas a se organizarem. Instigar as pessoas a enfrentarem esse privilégio de classe é nossa principal mensagem”.
Jonas Fures faz uma comparação também com a recente missão humanitária brasileira no Líbano, após a explosão no porto de Beirute, no início de agosto. Na ação, chefiada pelo ex-presidente Michel Temer, a convite do presidente Jair Bolsonaro, foram doadas 6 toneladas de alimentos. A viagem contou com ampla divulgação na imprensa.
“Fizeram um espetáculo, mas nós, só aqui em Quedas, cidadezinha pequena, doamos mais de 50 toneladas”, lembra. O município do oeste paranaense possui pouco mais de 33 mil habitantes. Conforme o camponês, ao contrário das empresas, para quem “R$ 1 milhão é o caixa do dia”, os trabalhadores doam algo que é fruto do próprio trabalho.
DISPUTA POR ÁREA SE ARRASTA POR MAIS DE DUAS DÉCADAS
Responsável por 15% da madeira industrializada exportada pelo Brasil, a Araupel trava há 24 anos uma disputa com o MST. Quando foi fundada, em 1972, ela adquiriu cerca de 80% de um latifúndio de aproximadamente 104 mil hectares dentro das Fazendas Rio das Cobras e Pinhal Ralo, originalmente pertencentes à União.
A história do confronto foi tema de reportagem do Brasil de Fato em 2016, ano em que a ocupação das terras pelo MST completou vinte anos. A marcha de 17 de abril de 1996 — Dia Internacional da Luta pela Reforma Agrária — foi eternizada pelo fotógrafo Sebastião Salgado, que registrou o momento em que uma multidão de camponeses cruzava as porteiras da fazenda, em Rio Bonito do Iguaçu.
Em agosto de 1997, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) formalizou o assentamento Ireno Alves dos Santos, o maior do Brasil até 2002, quando surgiu, também em Quedas do Iguaçu, o assentamento Celso Furtado, com 1.200 famílias. Nos anos seguintes, novos acampamentos e assentamentos foram criados na região.
Jonas Nathã Fures conta que os camponeses estão no aguardo da decisão final. “A gente sabe que, mesmo com a vitória na Justiça, leva um tempo, porque o Incra não tem dinheiro para fazer mais assentamentos”, afirma. “Faltam políticas públicas e orçamento destinado à reforma agrária”.
O agricultor relata ainda que, embora no momento não haja um confronto direto com a madeireira, o histórico do assentamento é de muita luta e resistência. “Já tivemos mortes de dois companheiros aqui no Dom Tomás, por causa da Araupel”, lamenta.
De acordo com a assessoria de imprensa do movimento no Paraná, atualmente 5.156 famílias estão acampadas ou assentadas no complexo. Com 83 mil hectares, as antigas terras da Araupel abrangem seis municípios: Quedas do Iguaçu, Laranjeiras do Sul, Nova Laranjeiras, Porto Barreiro, Espigão Alto e Rio Bonito do Iguaçu.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (MST-PR): Camponeses ocupam portão de acesso da empresa Araupel, em 2015
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