Grilagem, desmatamento e ameaças de morte avançam no sul do Piauí durante a pandemia

In Cerrado, De Olho nos Conflitos, Em destaque, Grilagem, Principal, Últimas

Desde março, região do Cerrado no estado registrou seis conflitos por terras; um dos casos está ligado a uma grande empresa cearense de distribuição de gás GLP, a Gás Butano; moradores denunciam atendimento precário em delegacias

Por Débora Lima

No sul do Piauí, o agronegócio avança juntamente com o descaso do governo. Abrigando as últimas áreas contínuas de Cerrado ainda preservadas, a região assiste a uma verdadeira corrida pela compra de terras por sojeiros e fundos de pensão, o que vem pressionando as comunidades tradicionais e gerando conflitos, mesmo durante a pandemia.

Do decreto de calamidade pública de 20 de março — quando camponeses, quilombolas e populações extrativistas passaram a adotar o auto-isolamento como medida de prevenção à Covid-19 — até o mês de agosto, foram registrados seis conflitos por terra no Cerrado piauiense, que impactaram mais de cem famílias. O número desses cinco meses corresponde à metade das ocorrências de 2019, quando a região concentrou onze dos dezoito conflitos fundiários registrados no estado, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Em Gilbués (PI), famílias do território tradicional de Melancias foram surpreendidas em maio com duas retroescavadeiras desmatando suas terras. Segundo ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Piauí, as máquinas pertencem a Francisco das Chagas Dias Rosal Júnior, secretário de Administração e Finanças do município vizinho de Monte Alegre do Piauí e irmão do prefeito Davinelson Soares Rosal.

Em 31 de agosto, a Justiça determinou a suspensão imediata das invasões e estabeleceu um prazo de 120 dias para que o Instituto de Terras do Piauí (Iterpi) conclua a regularização fundiária do território. Apesar da decisão, as ameaças continuaram: no dia 1º de setembro, líderes da comunidade denunciaram ter recebido ameaças de morte.

A luta dos camponeses para defender seu território foi retratada no documentário Melancias, realizado pela Descoloniza Filmes e pela CPT.

GRILAGEM BENEFICIA EMPRESAS E FAZENDEIROS

Em Brejo do Miguel, também em Gilbués, moradores denunciam o assédio constante de forasteiros, que vêm entrando no território tradicional brejeiro para desmarcar pontos do imóvel, pertencente à empresa Nacional Gás Butano. O conflito, que se arrasta desde 2016, foi denunciado ao Ministério Público Federal (MPF) em outubro do ano passado, quando jagunços destruíram com motosserras as cercas que delimitavam a comunidade.

Quarta maior distribuidora de gás GLP do país, a Gás Butano pertence ao grupo cearense Edson Queiroz, dono da emissora Verdes Mares, afiliada da Rede Globo no Ceará, e da Indaiá Minalba, maior engarrafadora de água do país. Em 2019, a empresa se juntou à Copagaz e à holding Itaúsa, dona do Banco Itaú, para arrematar a estatal Liquigás, por R$ 3,7 bi.No território ribeirinho Chupé e Barra da Lagoa, no município de Santa Filomena (PI), as famílias têm escutado tiros e rondas próximas de suas casas. O clima de terror começou em junho, após o fazendeiro gaúcho João Augusto Philippsen, dono da fazenda JAP, entrar na comunidade acompanhado de advogados e seguranças, ameaçando despejar os moradores.

Em 2016, o imóvel teve a matrícula bloqueada pela Vara Agrária da Comarca de Bom Jesus como parte da ação que anulou os títulos de 124 mil hectares invadidos pelo mega-grileiro Euclides de Carli. Falecido no ano passado, De Carli fez fortuna ocupando e desmatando áreas públicas e revendendo a fazendeiros como Philippsen, que se beneficiam da morosidade do Iterpi em atribuir títulos definitivos aos camponeses.

Outro território que sofre com invasões é a comunidade de Salto, em Bom Jesus (PI). Em julho, o Iterpi abriu uma ação discriminatória para delimitar as terras tradicionalmente ocupadas pelas famílias há mais de um século, atendendo uma reivindicação antiga da comunidade. Desde então, grileiros locais invadiram áreas dentro do território, buscando receber indenização pelas terras, uma operação que acontece com frequência na região.

No dia 27 de agosto, uma operação do Grupo Especial de Regularização Fundiária e Combate à Grilagem do Ministério Público do Piauí, em parceria com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e o Iterpi, desarticulou uma quadrilha de grileiros responsável pelo desmatamento de 2.400 hectares em terras públicas na Serra do Quilombo, em Bom Jesus. Além da apreensão de tratores e armas de fogo, dois membros do grupo foram presos.

CAMPONESES SE EXPÕEM À COVID PARA DENUNCIAR INVASÕES

Covid-19 atinge municípios da região sul do estado. (Imagem: Secretaria de Saúde do Piauí)

Com acesso precário a transporte e serviço de internet, as comunidades frequentemente são obrigadas a se deslocar até a zona urbana — ou até a municípios vizinhos — para o registro de boletins de ocorrência.

Nas delegacias, os líderes locais são muitas vezes impedidos de iniciar o processo sem o acompanhamento de advogados. À reportagem, moradores afirmam ser comum ouvir que o sistema está fora do ar, sendo obrigados a voltar sem abrir uma ocorrência. A delegacia mais próxima da comunidade de Salto, por exemplo, fica a 150 quilômetros de distância.

As idas e vindas aumentam o risco de contágio pela Covid-19. Dos vinte municípios piauienses com maior número de casos registrados da doença, cinco estão na região sul do estado. Juntos, Floriano, Uruçuí, Bom Jesus, São Raimundo Nonato e Baixa Grande do Ribeiro contabilizam 6.508 casos de Covid-19 e 72 óbitos, segundo painel da Secretaria Estadual de Saúde. Os 223 municípios do Piauí somam, até esta segunda-feira (07), 82.282 casos do novo coronavírus e 1.901 mortes.

Sem a homologação e reconhecimento de seus territórios, as comunidades tradicionais temem ser expulsas de suas terras, tornando-se ainda mais vulneráveis à pandemia.

| Débora Assumpção e Lima é doutora em Geografia pela Unicamp, com tese sobre avanço da soja no Matopiba |

|| Colaborou Bruno Stankevicius Bassi ||

Foto principal (Foto: Débora Lima/De Olho nos Ruralistas): derrubada de vegetação nativa de cerrado próxima a comunidades tradicionais

You may also read!

Proprietária que reivindica terras em Jericoacoara é sobrinha de governadores da ditadura

Tios de Iracema Correia São Tiago governaram o Ceará e o Piauí durante os anos de chumbo; os três

Read More...

Clã que se diz dono de Jericoacoara foi condenado por fraude milionária em banco cearense

Ex-marido de Iracema São Tiago dirigiu o Bancesa, liquidado por desviar R$ 134 milhões da União e do INSS

Read More...

Prefeitura de SP nega superfaturamento e diz que obra de R$ 129 milhões segue “ritos legais”

Investigada por irregularidades, Ercan Construtora foi contratada para obra emergencial em talude na comunidade Morro da Lua, no Campo

Read More...

Leave a reply:

Your email address will not be published.

Mobile Sliding Menu