Relatório da Apib e da Amazon Watch com pesquisa do observatório esmiúça o processo de pilhagem dos territórios; levantamento inédito abrange registros do CAR sobrepostos a áreas indígenas em estudo, delimitadas, declaradas, regularizadas e homologadas
Por Bruno Stankevicius Bassi e Poliana Dallabrida
Sob a presidência de Jair Bolsonaro, os povos indígenas do Brasil vivem um período de medo e incertezas. O número de invasões em terras indígenas (TI) em 2019 mais que dobrou em relação ao ano anterior, saltando de 109 casos para 256, um aumento de 134,9%. Aparelhada por políticos ruralistas e missionários, a Fundação Nacional do Índio (Funai), travou processos de demarcação e autorizou o registro de fazendas em terras não homologadas, levando a um número recorde de conflitos no campo, que afetaram 49.750 famílias indígenas. Destas, 1.050 foram efetivamente expulsas de suas casas em ações de despejo determinadas pela justiça ou realizadas ilegalmente por invasores.
Mas quem lucra com a violência crônica contra os indígenas e seus territórios? Para responder a esta pergunta, De Olho nos Ruralistas realizou o maior projeto de pesquisa de sua história, envolvendo uma equipe multidisciplinar de pesquisadores, cartógrafos e jornalistas, reunidos para contar a história de como o capital – brasileiro e internacional – se beneficia da exploração ilegal de terras indígenas.
A primeira parte do levantamento integra o relatório “Cumplicidade na Destruição III: como corporações globais contribuem para violações de direitos dos povos indígenas da Amazônia brasileira“, lançado hoje (27/10) pela Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pela Amazon Watch, que reúne onze casos de empresas brasileiras envolvidas direta ou indiretamente em conflitos territoriais e suas respectivas cadeias de compradores e financiadores estrangeiros.
Cada caso será analisado em detalhes em uma série de reportagens, começando pela distribuidora de commodities agrícolas Cargill. Além do grupo estadunidense, compõem o relatório as mineradoras Vale, Anglo American e Belo Sun; as empresas do agronegócio JBS e Cosan/Raízen; e as companhias de energia Energisa Mato Grosso, Bom Futuro Energia, Equatorial Energia Maranhão e Eletronorte.
Além do relatório, o observatório estreia hoje a série Fúria Cadastral, que explora como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), originalmente idealizado para identificar o passivo ambiental de imóveis rurais, vem sendo utilizado para a apropriação de áreas em terras indígenas (TI) em estudo, delimitadas, declaradas, regularizadas e homologadas. Essas informações estão agora disponíveis em um mapa de fácil acesso, disponível também em inglês, que reúne os pedidos ativos e em análise no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar).
Confira a reportagem sobre o tema: “Terras em 297 áreas indígenas estão cadastradas em nome de milhares de fazendeiros“.
PROJETO MULTIDISCIPLINAR MOSTRA PANORAMA DE AMEAÇAS A TI’S
A pesquisa para o relatório Cumplicidade na Destruição teve início em fevereiro, com a compilação pela pesquisadora Maria Luiza Camargo, mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), de 797 casos de judicialização envolvendo processo demarcatório de terras indígenas, abarcando relatórios de intrusão, extrusão e sobreposição da Funai, resoluções da Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias (CPAB), ações civis públicas movidas pelo Ministério Público Federal (MPF) e processos em curso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Paralelamente, o biólogo e graduando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Eriki Miller Lima Luiz Paiva, membro do Conselho do Povo Terena e do Conselho da Juventude Terena, realizou entrevistas junto a 26 líderes e coordenadores de associações indígenas da Amazônia, colhendo depoimentos relacionados a ameaças territoriais.
Destas listas, foram extraídos quarenta casos que envolviam diretamente empresas brasileiras ou multinacionais dos setores de agronegócio, mineração e energia, compilados pela jornalista Poliana Dallabrida. O relatório foi então submetido à consultoria Profundo, que identificou compradores e investidores internacionais para onze empresas, então selecionadas para a versão final do relatório da Apib, que contou ainda com o apoio do Observatório da Mineração.
Entre esses investidores, destacam-se seis grandes instituições financeiras sediadas nos Estados Unidos: BlackRock, Citigroup, J.P. Morgan Chase, Vanguard, Bank of America e Dimensional Fund Advisors. Eles injetaram nas empresas, entre 2017 e 2020, mais de US$ 18 bilhões.
OBSERVATÓRIO ANALISA SOBREPOSIÇÃO DE IMÓVEIS RURAIS EM TIs
Na série Fúria Cadastral, De Olho nos Ruralistas relata um lado menos conhecido da pressão territorial sobre os povos indígenas: a invasão cartorial. Utilizando o mecanismo do CAR, fazendeiros registram a autodeclaração de áreas indígenas como particulares, o que facilita grilagens e incentiva a expulsão dos povos originários.
Com pesquisa da geógrafa Taísa Tavares Baldassa e projeto cartográfico assinado por Hugo Nicolau Barbosa de Gusmão, o mapa interativo mostra 297 terras indígenas que têm parte do seu território legal registrado no CAR. Entre as dez com maior número de registros sobrepostos ao seu território, cinco estão no Amazonas, duas no Mato Grosso do Sul, uma no Mato Grosso, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. São 83 imóveis rurais sobrepostos às dez terras indígenas mais atingidas.
A TI Fortaleza do Patauá, localizada no município amazonense de Manacapuru, foi homologada em 2004. Segundo o levantamento, sete imóveis rurais estão totalmente sobrepostos ao território indígena. Isso também ocorre na TI Jarara, em Juti, no Mato Grosso do Sul. Homologada desde 2003, a área contém um imóvel rural sobreposto inteiramente ao território. Em Água Santa, no Rio Grande do Sul, treze cadastros estão em 99% sobrepostos ao TI Carreteiro. E a situação se repete em territórios por todo o país: “Confira no mapa quais Terras Indígenas possuem sobreposição de CAR“.
“O desmatamento numa terra indígena não é passível do recebimento do licenciamento ambiental e todo o desmatamento sem licença é ilegal”, aponta Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA). “É um desvirtuamento de um instrumento que foi criado para garantir uma regularidade ambiental da área”.
Para a advogada do ISA, o CAR não é um instrumento ineficaz, mas a demora na validação dos cadastros autodeclarados por parte dos órgãos ambientais compromete o objetivo final do dispositivo. “O CAR é um instrumento importante previsto na legislação brasileira”, afirma. Ela diz que o problema são os usos ilegais e irregulares que particulares fazem do CAR. “É preciso ter um controle por parte dos órgãos ambientais, mais agilidade para validar esses cadastros, para tirá-los do sistema, para que o interessado não fique por aí com um papel na mão que não comprova absolutamente nada porque é declaratório e ainda não foi validado no órgão ambiental”.
| Bruno Stankevicius Bassi é repórter e coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |
|| Poliana Dallabrida é repórter do De Olho nos Ruralistas.||
Foto principal (Reprodução): relatório da Apib e Amazon Watch traz detalhes sobre a pilhagem de terras indígenas