Eles dizem que tática de William Lopes é difamar órgãos públicos, ONGs e sindicatos, enquanto cobra dinheiro para criar documentos ilegais; comunidades extrativistas do PAE Lago Grande se mobilizam para impedir destruição do assentamento, um dos maiores do país
Por Julia Dolce
Várias comunidades do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande, um dos maiores assentamentos do Brasil, estão sendo assediadas pelo advogado e grileiro William Martins Lopes, um representante do agronegócio que, segundo eles, tenta extorquir os assentados com documentos falsos e mentiras, adotando um discurso bolsonarista de calúnias contra ONGs e sindicatos.
Em Lago Grande, em Santarém (PA), 144 comunidades de agricultores, extrativistas, indígenas e quilombolas resistem nos últimos anos a diferentes tentativas de dissolução do assentamento para que grande parte de seus 253 mil hectares seja utilizada por mineradoras e para a produção de soja.
Nem a pandemia intimida os especuladores. Em março, Lopes, vestindo uma camiseta com a bandeira do Brasil, esteve em Vila de Curuai, onde seu anfitrião foi o pastor Jó Lima, bolsonarista e seguidor do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus. Lima foi candidato a vereador de Santarém nas últimas eleições pelo Cidadania, o antigo PPS (antes Partido Comunista Brasileiro), mas não foi eleito.
A região está na mira do governo federal. No dia 07 de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, visitou a região para vistoriar os 204 mil metros cúbicos, ou 13,6 mil caminhões de madeira ilegal apreendidos pela Polícia Federal em dezembro. O ministro relativizou a apreensão, dando sinais de que será possível liberar parte da madeira. O PSOL notificou a Procuradoria Geral da República sobre a investida de Salles.
A cópia de um contrato firmado entre William Martins Lopes e um assentado mostra o modus operandi da extorsão. Na documentação obtida pela Federação das Associações de Moradores e Comunidades do Assentamento Agroextrativista da Gleba Lago Grande (Feagle), o advogado estabelece o valor de R$ 2.400, que podem ser pagos em até doze parcelas mensais, para prestação de serviços como estes: “deixar a condição de assentado do Incra, deixar a condição de sindicalizado do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR), promover a titularização de sua posse, todas as medida (sic), deverão ser tomadas, extrajudicial e judicialmente”. Em outras palavras, acabar com a condição de assentados.
Além disso, o advogado, segundo os camponeses, pratica grilagem, apresentando documentos com nomes de supostos assentados que não existem ou nunca tomaram posse. A promessa de titularização da posse no contrato do advogado envolve a inscrição dos assentados individualmente no Cadastro Ambiental Rural (CAR), de acordo com as fontes entrevistadas. Especificamente para esse serviço, Lopes cobra um valor de R$ 1.000, diz o presidente do STTR, Manoel Edivaldo Santos Matos. Outros camponeses confirmam.
O registro oferecido é ilegal, ferindo o artigo nº 53 do Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012), que garante o registro de pequena propriedade ou posse rural familiar, incluindo assentamentos e projetos de reforma agrária, cabendo apenas aos órgãos integrantes do Sisnama, o Sistema Nacional do Meio Ambiente. O PAE Lago Grande já é registrado no cadastro como assentamento coletivo e, portanto, qualquer inscrição particular dentro dele é irregular.
“Eles apresentam documentos de terra e visam expulsar as famílias para estabelecer suas fazendas”, revela o advogado Pedro Martins, que acompanha o caso. “Isso já aconteceu em várias comunidades como Vila Brasil, Jacarezinho e Urucurea”.
Sandrielem Vieira, de 20 anos, da comunidade de Coroca do Rio Arapiuns, revelou que os assentados estão preocupados com as recentes investidas. “Chamamos a militância para o cuidado com a casa comum, em defesa do nosso território e dessa tentativa de venda ilegal de terra que tem nos deixado muito preocupados nos últimos dias”, afirma.
O STTR denunciou a conduta do advogado William Martins Lopes ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Público do Pará, acusando-o de extorsão dos assentados, além de abrir uma representação contra ele na OAB de Santarém por violação de dispositivos éticos disciplinares. Em 10 de março, o MPF enviou um comunicado aos assentados alertando que é proibido negociar terras de assentamento.
Em audiência virtual realizada no dia 05, a promotora agrária Ione Nakamura prometeu investigar as denúncias apresentadas. Ela contou à reportagem que pretende articular suas investigações com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Na mesma audiência, esteve presente também o superintendente regional do Incra no oeste do Pará, Francisco de Sousa, que alegou limitações orçamentárias para concluir a demarcação do PAE e preservar o assentamento de intrusões.
A assessoria de imprensa do Incra afirmou ao observatório que é dever do órgão promover a supervisão ocupacional para atualizar o cadastro dos beneficiários do PAE e identificar ocupantes irregulares “a fim de adotar as medidas visando a regularização ou a retomada das ocupações”. O órgão reiterou que a execução das ações no PAE foi impactada pela disponibilidade orçamentária e pela pandemia do novo coronavírus.
ASSENTADOS QUEREM PRESERVAR MATAS, MAS SOJA AVANÇA NA REGIÃO
O PAE Lago Grande foi criado em 2005, décadas após a aquisição pela União da gleba que pertencia ao governo do estado do Pará, nos anos 70. Ele foi criado como assentamento coletivo, o que caracteriza a irregularidade de qualquer inscrição particular dentro dele.
O argumento principal de Lopes para a dissolução do PAE é que ele atrasaria o desenvolvimento econômico das famílias. Segundo Rosenilce Vitor, agricultura familiar e integrante da diretoria da Feagle, o advogado não esclarece que o desenvolvimento pretendido não alcançaria os trabalhadores da agricultura familiar. “O desenvolvimento deles não é bom para nós”, opina. “Para trabalhador rural, que trabalha na roça com terçado, com enxada, não vem emprego nesses grandes empreendimentos rurais”.
A liderança Sandrielem Vieira, cuja família trabalha principalmente com o turismo comunitário ecológico, afirma que, com a criação do PAE, os assentados têm a garantia de que empreendimentos já observados em territórios vizinhos não vão entrar no assentamento. “Com o território coletivo é mais difícil de entrarem e destruírem tanto a floresta como o modo de vida dos moradores”, acrescenta. “O território coletivo garante a qualidade de vida dos povos tradicionais”.
Darlon Neres dos Santos, morador da comunidade Cabeceira do Marco, reitera que o desenvolvimento dentro do PAE é de outra ordem, um “desenvolvimento sustentável e não o que eles pregam nas reuniões”.
Para o advogado Pedro Martins, o empobrecimento das comunidades do PAE Lago Grande é uma realidade, mas é fruto de elas não estarem sendo beneficiadas por políticas públicas do governo federal na atual conjuntura. “Não significa que acabando com o PAE os assentados melhorariam de vida, pelo contrário, muitos seriam expulsos pela soja”.
O advogado acredita que sem a criação do PAE, a realidade daquele território seria semelhante à de outras regiões no município de Santarém, atualmente tomadas por campos de soja, com igarapés contaminados por agrotóxicos e famílias sendo expulsas ou tendo de vender suas terras para irem morar na periferia da cidade.
Para Gilson Rego, da CPT, tal discurso é o “mais baixo” que pode ser utilizado: “É o conceito da modernização conservadora. Você cria um discurso ideológico de desenvolvimento, progresso, de que o que vem de fora é bom, como a soja, e que o que tá aqui é o velho, mas por outro lado, conserva toda a lógica de conservação fundiária. O latifúndio continua se ampliando na lógica conservadora de outros momentos”.
Ele diz que o potencial econômico do PAE é impressionante e as possibilidades de sustento a partir dele também: “Seja a partir das florestas, das roças ou do lago”.
EM ÁUDIO, ADVOGADO COMPARA ASSENTADOS A GADO
Um áudio compartilhado nos grupos de WhatsApp dos assentados mostra William Martins Lopes comparando os assentados a gado, em uma reunião gravada:
— Não explicaram que vocês perderiam sua terra, que sua terra não seria mais sua, que seria nossa, de todos, que a Feagle poderia dizer que tamanho você poderia plantar, o que vocês deveriam plantar, quem você deveria receber na sua casa. Nesse processo de criação do PAE Lago Grande vocês se tornaram gado, escravos do Incra.
No mesmo áudio, ele ataca todo tipo de instituição e órgão público, como o MPF, o MP do Pará, o Incra, a Feagle, o STTR e a organização não-governamental Projeto Saúde e Alegria. Segundo ele, todos estão “por trás de todo o sofrimento que permeia” os assentados, e o PSA causa “um câncer generalizado em todo o oeste do Pará”.
O PSA foi uma das organizações que sofreram criminalização durante as queimadas que tomaram conta da vila de Alter do Chão, em novembro de 2019. Integrantes da Brigada de Alter do Chão foram presos, acusados injustamente de terem provocado o fogo — em processo arquivado em março. A sede do PSA foi invadida pela Polícia Civil, que apreendeu documentos e computadores da organização. Isso porque um dos integrantes da Brigada havia integrado a equipe da ONG.
O episódio é mais um capítulo do processo de difamação e criminalização de ONGs na Amazônia movido pelo governo Jair Bolsonaro e por seus apoiadores. Fábio Pena, um dos coordenadores do PSA, afirma que a ONG tem atuação histórica na região que hoje compõe o PAE há pelo menos trinta anos, priorizando ações de saúde e “trabalhando sempre em parceria com as organizações comunitárias”.
Em 2019, Lopes esteve em Alenquer, a 50 quilômetros de Santarém. Segundo a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alenquer, Aldemara Ferreira de Jesus, ele foi chamado pelo Sindicato dos Produtores Rurais do município e apareceu em um programa da TV Montes Carlos, replicadora do canal SBT na região, desqualificando o trabalho de sindicalistas e líderes de assentamentos. Aldemara conta que ele chamou os assentados do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Paraíso de invasores e bandidos:
— A atuação do William aqui foi de difamação, ameaça, promessas infundadas e mentiras. Ele chegou a orientar as pessoas que são contra o PDS a pegarem o presidente da associação local, amarrarem e baterem nele. Também mentiu dizendo que nós lideranças sindicais pegamos recursos de créditos que seriam destinados aos assentados.
As teses de Lopes são corroboradas por Edward Luz, conhecido como o “antropólogo dos ruralistas”; Luz chegou a ser detido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em fevereiro de 2020, por entrar na Terra Indígena Ituna Itatá durante operação do órgão e por ter se recusado a deixar o território. No dia 25 de março, Luz publicou um artigo no Portal Santarém, alegando que o PAE é ilegal.
ADVOGADO INVADE REUNIÃO DOS MUNDURUKU E AGRIDE AGENTE DA CPT
A figura de William Martins Lopes já é conhecida no oeste do Pará e sua imagem está envolta em polêmicas relacionadas aos conflitos de terra. O advogado frequentemente é convidado ou faz serviços para os sindicatos patronais da região.
Gilson Rego, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Santarém, conta que chegou a ser agredido fisicamente pelo advogado. Ele foi empurrado durante uma reunião com líderes Munduruku na aldeia do Planalto Santareno, invadida por Lopes e por um grupo de produtores de soja organizados no Sindicato Rural de Santarém (Sirsan).
“Solicitamos a reunião com o MP, mas antes de ela começar chegou uma dúzia de carros com dezenas de pessoas ligadas à soja, além do William”, recorda. “Começaram discussões porque a reunião não tinha a ver com eles, era dentro de um barracão da aldeia, mas eles exigiram participar”. Segundo Rego, o advogado agiu com violência física, acertando-o.
“Eles criam uma convulsão social local” detalha o advogado. “Tentam identificar pessoas internamente nas próprias comunidades para, fazendo um discurso interno para as comunidades se destruírem. Onde tem maior resistência, eles fazem violência psicológica, criminalizadora contra comunidades”.
A CPT, a Terra de Direitos e o STTR denunciam que há outros assentamentos, terras indígenas e Unidades de Conservação passando pelo mesmo tipo de investida por parte do agronegócio. “Com movimentos das oligarquias locais querendo desfazer os processos de reforma agrária para disponibilizar as terras para forasteiros que chegam para produzir soja”, explica Rego. Ele destaca que esses produtores rurais estão dominando a política, alinhando-se com os prefeitos do oeste paraense.
PLANO DIRETOR PERMITIU SOJA DENTRO DO ASSENTAMENTO
Os interesses do agronegócio dentro do PAE Lago Grande e de outros assentamentos nos municípios do oeste do Pará vêm crescendo nos últimos anos com o avanço da soja na região. A BR-163, popularmente conhecida como “estrada da soja”, escoa produção desde o Mato Grosso nos portos de Santarém, para onde o produto é comercializado internacionalmente.
Em 2018, com mudanças no Plano Diretor do Município de Santarém (2019-2029), a área do PAE Lago Grande, mesmo sendo oficialmente destinada à agricultura camponesa e ao extrativismo, foi destacada para a expansão de monocultura de soja e milho.
O plano diretor estabeleceu duas mudanças. A primeira foi a zona portuária na região da Boca do Maicá, no próprio município. A segunda é ter colocado a Gleba Lago Grande como área destinada para a expansão de soja. Isso é possível dentro do Plano Diretor, mesmo desvirtuando e entrando em choque com a principal destinação da área. Pedro Martins adverte, no entanto, que a comunidade de Lago Grande não foi ouvida.
Mesmo no caso da definição do Lago do Maicá como zona portuária, a decisão gerou protestos por se tratar de uma área de preservação ambiental e lar de 1.500 famílias, das quais 30% sobrevivem da pesca artesanal.
A organização Terra de Direitos questionou na época que a decisão desrespeita a Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ela explicita que povos tradicionais e indígenas devem opinar sobre empreendimentos realizados em seus territórios.
ASSENTADOS JÁ ENFRENTARAM INVESTIDAS DA MINERADORA ALCOA
Embora o agronegócio seja preocupação crescente para a sobrevivência das comunidades no Tapajós, ele não é a única atividade que as ameaça. Até 2019, a principal pressão que as comunidades do PAE Lago Grande sofriam vinha da empresa estadunidense Alcoa, uma das três maiores mineradoras de alumínio no mundo, e de sua subsidiária Matapu Sociedade de Mineração. Na região, as empresas pretendem extrair bauxita.
Em 2018, as empresas tentavam negociar atuação no PAE apenas por meio do Incra, sem consultar a organização das comunidades. Após organização dos assentados, o MPF barrou a atuação da empresa no assentamento. Na época, a empresa também foi investigada pelo órgão por aliciar comunidades, prometendo melhorias estruturais e sanitárias caso passasse a atuar dentro do PAE.
Coordenador na Pastoral da Juventude, Osmarc dos Santos Sousa, 24 anos, morador da comunidade Vila Gorete, conta que a Alcoa está instalada no município vizinho de Juruti, onde também realiza o que chama de “assédio das lideranças”. “Levam projeto social como se fosse competência deles e não do governo”, afirma. “Por isso nossa luta também é para que o governo faça seu papel com políticas públicas que atendam as demandas da região e não uma mineradora com segundas intenções no território”.
Osmarc faz parte de uma família de agricultores cuja subsistência depende da plantação da mandioca, do milho, do arroz e do feijão. Ele acredita que as investidas da mineração fazem parte de um “projeto consorciado” com o agronegócio e com madeireiras que querem adentrar cada vez mais o PAE, alegando maior desenvolvimento do território.
LOPES, UM DOS ACUSADOS, DIZ QUE NÃO PRATICA EXTORSÃO
William Lopes conversou com a reportagem e negou ter extorquido os assentados. Ele diz que a acusação lhe causa espanto: “Extorsão é uma conduta criminosa e não a pratico, pratiquei ou praticarei”. O advogado acrescenta que já proferiu palestras em boa parte dos municípios do oeste paraense a convite de associações de produtores rurais e de comunidades em assentamentos.
Ele reitera que acredita na ilegalidade da constituição de todos os assentamentos citados na reportagem e “mais outros 58”, Lopes menciona um processo do MPF que, em 2007, pediu a interdição de 99 projetos de assentamentos na região. O órgão alegou que seriam fantasmas e, em outros casos, pediu o avanço de processos de reforma agrária parados. Desde então, o Incra já vistoriou parte desses assentamentos, constatando a existência de agricultura familiar. Entre os assentamentos que foram liberados da interdição está o PDS Paraíso. O PAE Lago Grande nunca fez parte da lista de assentamentos interditados.
“Eles praticam uma agricultura medieval”, diz advogado
Lopes defende que a área do PAE Lago Grande não foi originalmente destinada para ser um assentamento, na década de 80, e que por isso a criação do PAE seria válida apenas no papel. Ele argumenta que a população tradicional da região não foi ouvida para a criação do assentamento e que isso já seria motivo para anular a criação do PAE.
Segundo o advogado, existem 6 mil processos de produtores rurais que pedem a titulação individual de suas posses, além de 150 produtores rurais que já possuem matrícula dentro do assentamento. O STTR e a Terra de Direitos reconhecem a existência de propriedades que devem ser regulamentadas e excluídas dentro do assentamento, e cobra do Incra a regularização dessas propriedades.
Lopes diz que a população tradicional da região vive em “completo abandono” pelos atores que defendem os assentamentos e que praticam uma “agricultura medieval, sem implementos agrícolas e sem apoio financeiro pois não têm acesso ao crédito rural”.
Contatado por email, o Sindicato Rural de Santarém não se pronunciou.
| Julia Dolce é jornalista investigativa, com atuação na área socioambiental. |
Imagem principal (Pastoral da Juventude): romaria no Assentamento Lago Grande, em Santarém (PA)