Empresas como Shoppe vendem compostos como o que matou enfermeira em SP; empresa mineira tem CNPJ suspenso desde 2015, com apreensões que vêm desde 2007; segundo CGU, fabricante participou de venda fraudulenta de máscara durante a pandemia, no MS
Por Nanci Pittelkow
Deu no Fantástico: a enfermeira Edmara Silva de Abreu morreu por uma hepatite fulminante após consumir o composto “50 ervas emagrecedor”. Onde esse tipo de produto é vendido? Apenas por esquemas escorregadios na internet? Não. De Olho nos Ruralistas apurou que produtos como esse foram vendidos, nos últimos anos, pelas grandes redes de varejo digital. Nos sites da Americanas, Shopee e Mercado Livre ainda é possível comprar itens da Pró-ervas proibidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2020: Castanha Da Índia, Valeriana, Super Chá Sb e Unha De Gato Com Uxi Amarelo.
Como o CNPJ da empresa não está ativo desde 2015, os demais produtos da marca que estão à venda são clandestinos. O composto que vitimou Edmara, em São Paulo, não é mais localizado nas buscas (as empresas retiraram os anúncios após as notícias da última semana), mas imagens de anúncios recentes associados às lojas confirmam — ou as páginas mantidas “em cache” — que o produto “50 ervas” era vendido desde 2020, mesmo proibido.
O caso da enfermeira se tornou ainda mais notório após reportagem publicada pelo Fantástico, da Rede Globo, no domingo. O programa incluiu instruções do médico Drauzio Varella para que a população não faça uso de produtos como esses, apesar da roupagem de “naturais”. “Estricnina também é natural”, lembrou o infectologista. As mercadorias prometem emagrecimento rápido, observou a emissora, “mas podem custar a sua vida”.
Ironicamente, o site do G1 — que fala em charlatanismo na venda das ervas — traz publicidade da Americanas: “Entrega rápida? Variedade? Relaxa. Na Americanas você acha”. O anúncio aparece no miolo da notícia sobre o risco dos produtos, como se vê na imagem abaixo:
FABRICANTE DAS ERVAS É UM VELHO CONHECIDO DAS NOTÍCIAS POLICIAIS
Pró-ervas é um dos nomes fantasia usados pela empresa Sebastião Rocha de Souza, que foi aberta em 25 de março de 1995 em Ipatinga (MG) e acumula um histórico de apreensões e proibições de produtos pelos órgãos de Vigilância Sanitária antes e depois de ser encerrada em 4 de setembro de 2015. Com o nome fantasia Brotinho Ervas, ela foi interditada e proibida de manipular e comercializar medicamentos fitoterápicos pela Vigilância Sanitária de Ipatinga em 2007 e 2008.
A Anvisa determinou em 2012 a apreensão e suspensão de todos os produtos sujeitos a fiscalização sanitária fabricados pela empresa por ela não possuir autorização de funcionamento. Em 2017, sob o nome fantasia Mil Hervas, houve nova proibição de venda de produtos pela empresa, considerados clandestinos.
Embora a empresa não exista legalmente, itens com a marca Pró-ervas são encontrados livremente para venda nas grandes redes de varejo. Na Americanas, conforme apuração deste observatório, ainda são vendidos “Canela de velho c/ sucupira” e “Unha de gato e uxi amarelo”. A empresa é controlada pela 3G Capital, do trio de investidores Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, os mesmos donos da cervejaria Ambev.
MERCADO LIVRE DIZ TRABALHAR ‘DE FORMA INCANSÁVEL’ CONTRA MAU USO DA PLATAFORMA
Na singapurense Shopee a lista é extensa e inclui os proibidos “Unha de gato e uxi amarelo”, “Valeriana”, “Castanha da Índia” e “Super chá”. A empresa que controla a marca Shoppe, a Sea, foi a mais valorizada do mundo em 2020, segundo o Estadão, e cresceu durante a pandemia. Outra gigante do comércio eletrônico a vender ervas proibidas é a argentina Mercado Livre, que já vendeu correntões para desmatar, conforme apuração deste observatório.
Em mensagem enviada para a redação do De Olho nos Ruralistas, o Mercado Livre — empresa fundada e comandada por Marcos Galperin — afirma que exclui anúncios e notifica os vendedores assim que produtos ilegais são identificados. Segue íntegra do comunicado:
“O Mercado Livre esclarece que, conforme preveem os seus Termos de Condições e Uso, é proibida a venda de produtos em desacordo com a legislação em vigor. Diante disso, assim que identificados, tais anúncios são excluídos e o vendedor notificado. A empresa informa que trabalha de forma incansável para combater o mau uso da sua plataforma, a partir da adoção de tecnologia e de equipes que também realizam buscas manuais. Além disso, a plataforma atua rapidamente diante de denúncias, que podem ser feitas por qualquer usuário, por meio do botão “denunciar” presente em todos os anúncios, ou por empresas que integram o programa de proteção à propriedade intelectual da plataforma. Ressalta ainda que, apesar de não ser responsável pelo conteúdo gerado por terceiros, conforme prevê o Marco Civil da Internet e a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para plataformas de intermediação, investe e atua no combate à pirataria, falsificação e fraude, a fim de garantir o cumprimento das suas políticas e da legislação, auxiliar as autoridades na investigação de irregularidades e para oferecer a melhor experiência aos usuários.”
A Americanas respondeu após a publicação da reportagem. Segue a íntegra da nota:
“O marketplace da Americanas S.A. é uma plataforma na qual os lojistas parceiros vendem diretamente seus produtos em várias categorias. Se e quando identificada qualquer desconformidade, a companhia adota as providências necessárias, seja de retirada de itens e até o descredenciamento dos parceiros.
A Americanas S.A. informa que o item em questão já foi retirado de todas as plataformas de vendas da companhia.”
A Shopee ainda não respondeu à reportagem.
GOVERNO DO MS COMPROU 20 MIL MÁSCARAS COM ÁGIO, DIZ CGU
O fabricante do composto “50 ervas emagrecedor” pode estar envolvido com uma venda de máscaras fraudulenta para o governo do Mato Grosso do Sul em abril de 2020, no início da pandemia de Covid-19. Segundo relatório da Controladoria Geral da União (CGU), 20 mil máscaras modelo N95 com válvula de exalação foram compradas a R$ 29,99 cada, somando R$ 599.800,00. Em uma busca pela internet é possível encontrar esse mesmo modelo com valores aproximados entre R$ 5,00 e R$ 19,00.
As máscaras foram entregues, sem a válvula exigida, pela Mega Comércio de Produtos Hospitalares, constando na embalagem que as peças foram fabricadas pela empresa Biolux, com CNPJ nº 00.572.309/0001-56. O número pertence de fato à razão social de Sebastiao Rocha de Souza, empresa de Ipatinga, fabricante do composto “50 ervas emagrecedor” e que tem como atividade principal a fabricação de produtos para infusão (chás, mate etc.).
A Controladoria-Geral da União (CGU) tem verificado a regularidade na aplicação de recursos repassados pelo Fundo Nacional de Saúde (FNS) aos estados para o combate à Covid-19. Nesse caso, o relatório aponta que os indícios de fraude põem em dúvida a efetividade de proteção da máscara.
| Nanci Pittelkow é jornalista. |
|| Colaborou Alceu Luís Castilho, diretor de redação do De Olho nos Ruralistas ||
Imagem principal (Reprodução/De Olho nos Ruralistas): Google mantém imagens dos produtos vendidos nas grandes redes