Desaparecimento de jornalista e de indigenista no Vale do Javari mostra necessidade de apoio a quem defende os povos originários na Amazônia Legal; desmatamento e ameaças em territórios aumentaram no governo Bolsonaro
Por Luma Prado e Mariana Franco Ramos
É de emergência a situação dos povos originários que decidiram adentrar as florestas para se refugiar dos colonizadores. Tema da edição desta semana do programa De Olho na Resistência, o assunto ganhou repercussão após o desaparecimento, no domingo (05), do jornalista britânico Dom Phillips, do The Guardian, e do indigenista Bruno da Cunha de Araújo Pereira, servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Os dois se deslocavam de barco pelo Rio Itaquaí, após uma visita à Terra Indígena (TI) do Vale do Javari, no Amazonas, região habitada por isolados e que vem sofrendo com invasões do agronegócio e do garimpo ilegal.
O Brasil é o país com maior número de povos isolados conhecidos no planeta. A Funai contabiliza 114 deles, sendo 28 confirmados. Entre esses grupos, apenas um, os Avá-Canoeiro, vive fora da Amazônia Legal, em porções do Tocantins e de Goiás. A maioria se concentra em áreas de fronteira com outros países da bacia amazônica.
O caso de Phillips e de Pereira mostra a necessidade de apoio a quem defende essas populações. Segundo a Associação Indígena do Vale do Javari (Unijava) e o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), a dupla recebeu “ameaças em campo” recentemente. Os relatos foram comunicados à Polícia Federal (PF), ao Ministério Público Federal (MPF) em Tabatinga, ao Conselho Nacional de Direitos Humanos e ao Indigenous Peoples Rights International.
A Unijava considera Pereira um experiente e profundo conhecedor do bioma, pois ele foi Coordenador Regional da Funai de Atalaia do Norte por anos. “Os desaparecidos viajavam com uma embarcação nova, 40 HP, 70 litros de gasolina, o suficiente para a viagem e 07 tambores vazios de combustível”, informou.
Conforme o jornal Brasil de Fato, em 2019 o indigenista denunciou o desmonte da Funai sob a gestão de Jair Bolsonaro (PL-RJ). “Os servidores estão silenciados”, afirmou, à época. “Servidores de carreira são retirados de cargos estratégicos. A Funai está sendo tomada por interesses que não são dos índios”. No Brasil há mais de uma década, Dom Philips vive na Bahia e é conhecido pela admiração à Amazônia, para onde foi com a intenção de expor o impacto da atuação de criminosos ambientais.
Também chamados de “refugiados” por terem se fragmentado em meio à floresta para escapar do genocídio, hoje os isolados têm seus territórios ameaçados por desmatadores, madeireiros, criadores de gado, grileiros, caçadores, garimpeiros, proselitistas religiosos e ainda por estradas e linhas de transmissão, como mostramos neste vídeo:
DESMATAMENTO NESSAS ÁREAS CRESCEU ACIMA DE 700% EM 2021
Os indigenistas da Funai são alocados em doze Frentes de Proteção Etnoambiental, sob a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados. Mas, embora a legislação nacional seja considerada avançada e uma referência nas ações de localização, monitoramento e proteção dos povos isolados e de seus territórios, as intimidações – de várias ordens – aumentaram consideravelmente no governo Bolsonaro.
Em 2021, mais de 3 mil hectares foram desmatados em terras indígenas com povos isolados. No primeiro semestre, o desmatamento ilegal nessas áreas cresceu acima de 700%. Já nos primeiros dois meses deste ano, 116 hectares foram desmatados e 91 alertas foram emitidos em 20 TIs com isolados, de acordo com o Boletim Técnico Bimestral Sirad-Isolados, produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA).
No Maranhão, na TI Alto Turiaçu, 12 hectares foram destruídos no primeiro bimestre de 2022. A retirada ilegal de madeira ameaça os Tenetehara e os Awá-Guajá. Os dois povos já perderam 44.326 hectares de floresta em razão dessa prática ilegal, o equivalente a 8,35% da área.
Os Tenetehara, mais conhecidos como Guajajara, se levantam contra os invasores articulados no grupo “Guardiões da Floresta”. Já falamos deles no terceiro episódio do De Olho na História, que homenageia a luta do líder Paulo Paulino Guajajara.
Outros povos indígenas também atuam na defesa de seus parentes isolados. Em novembro de 2021, a Hutukara Associação Yanomami, por exemplo, denunciou o conflito de garimpeiros com os Moxihatëtëmaseria. E, diante do perigo de extermínio do grupo, exigiu que o órgão responsável tomasse providências.
PRESSÃO É MAIOR NO ENTORNO DE TERRAS SEM DEMARCAÇÃO CONCLUÍDA
A pressão sobre os isolados é ainda maior no entorno das terras sem demarcação concluída e com portarias de restrição de uso vencidas ou prestes a vencer. Tais documentos deveriam servir para suspender todas as atividades econômicas e evitar o contato com não indígenas, práticas que têm potencial de dizimar as populações isoladas.
Sob Bolsonaro, contudo, a Funai vem atrasando a renovação dessas portarias ou concedendo apenas seis meses de proteção, tempo que, conforme líderes e organizações, é insuficiente para qualquer cuidado efetivo.
Um caso emblemático é o dos Piripikura. Os únicos sobreviventes conhecidos do massacre sofrido pelo povo Baita e Tamanduá se isolaram nos anos 70 no Mato Grosso. O processo de demarcação de seu território se arrasta há mais de quarenta anos e a proteção da TI é feita a partir de uma portaria de restrição de uso, renovada a cada seis meses.
Enquanto a situação não se resolve, esses moradores são pressionados por fazendeiros e madeireiros, que cercam o território e criam barreiras na floresta para impedi-los de caçar. E, ainda, pelos garimpeiros: de 2019 a 2021, a área solicitada para o garimpo no entorno do território dos Piripkura aumentou mais de 820%.
A TI Jacareúba-Katawixi, no sul do Amazonas e com presença confirmada de isolados, está há quase seis meses sem a renovação da portaria de restrição de uso.
Outro problema enfrentado em diferentes comunidades é a sobreposição de cadastros ambientais rurais, como o observatório contou em 2020: “Terras em 297 áreas indígenas estão cadastradas em nome de milhares de fazendeiros“.
FUNAI IGNOROU VULNERABILIDADE DE POVOS NA PANDEMIA
A extrema vulnerabilidade a epidemias é outra ameaça aos isolados. Em fevereiro, foi confirmada a existência de um grupo – até então desconhecido – no Rio Mamoriá, no sul do Amazonas. De acordo com organizações que atuam na região, a Funai não tomou nenhuma medida protetiva: nem cordão sanitário, nem portaria de restrição de uso. Com a cobertura vacinal contra a Covid-19 abaixo de 30% e incidência de malária, a saúde do grupo preocupa o Movimento Indígena do Médio Purus, o OPI e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Advogados e ativistas, indígenas e não-indígenas, denunciam o desmonte e o enfraquecimento da política pública para proteção dos direitos desses povos. Representantes da Coiab levaram o caso ao 21º Fórum Permanente da ONU sobre questões indígenas, que aconteceu em 25 de abril. Eles também se uniram à Survival em agosto de 2021 na campanha “Isolados ou Dizimados”, que aponta a associação da Funai com interesses de ruralistas, madeireiros e garimpeiros. O objetivo é pressionar o órgão para que ele cumpra sua missão institucional: garantir a integridade dos territórios.
Outra iniciativa de defesa dos isolados é o primeiro curso para Mulheres Indígenas Expedicionárias, oferecido pelo Instituto Federal do Amazonas, em Lábrea, no sul do estado. Quinze mulheres das etnias Jamamadi, Juma, Apurinã, Paumari e Jarawara estão agora preparadas para compor as expedições e, assim, localizar e proteger esses povos.
Em sala de aula, elas debateram sobre Direito, Geografia, História e gênero. E, em campo, tanto ensinaram quanto aprenderam, já que sabem bem como andar na mata e são acostumadas a identificar os vestígios deixados na floresta.
PF APURA DESAPARECIMENTO; GOVERNO, FUNAI E EXÉRCITO LAVAM AS MÃOS
A Polícia Federal (PF) informou, nesta segunda-feira (6), que está acompanhando e trabalhando no caso do desaparecimento do jornalista e do indigenista. “As diligências estão sendo empreendidas e serão divulgadas oportunamente”, diz nota da instituição, publicada na Agência Brasil.
Dom Phillips e Bruno Araújo Pereira chegaram na sexta-feira ao Lago do Jaburu, nas proximidades do rio Ituí, para que o jornalista visitasse o local e fizesse entrevistas com indígenas. Segundo a Unijava, no domingo (5) os dois deveriam retornar para Atalaia do Norte por volta de 9h da manhã, depois de uma parada na comunidade São Rafael. No início da tarde, uma primeira equipe de busca da Unijava saiu de Atalaia em busca dos desaparecidos, mas não os encontrou.
A Funai informou que acompanha o caso, está em contato com as forças de segurança que atuam na região e que colabora com as buscas. A instituição comentou que, embora Pereira integre o quadro de servidores da fundação, não estava na região em missão institucional, pois se encontrava de licença para tratar de interesses particulares.
O Comando Militar da Amazônia (CAM) também “lavou as mãos”. Em nota conjunta com o Ministério da Defesa e o Exército, alegou que estaria em condições de cumprir a missão humanitária de busca e salvamento, mas que as ações só seriam iniciadas “mediante acionamento do Escalão Superior”. No momento da publicação da nota, já se passavam mais de trinta horas do anúncio do sumiço.
A Marinha do Brasil, por sua vez, disse que tomou conhecimento, no fim da manhã desta segunda, do desaparecimento de uma embarcação de pequeno porte perto da comunidade São Rafael. Conforme o órgão, uma equipe de Busca e Salvamento (SAR), subordinada à Capitania Fluvial de Tabatinga, foi direcionada ao local da ocorrência.
A Univaja, em conjunto com a Defensoria Pública da União (DPU), recorreu à Justiça Federal na noite de ontem (06), pedindo: que a União viabilize o uso de helicópteros à Polícia Federal; a ampliação das equipes de buscas; e a ampliação do número de barcos. De acordo com a organização, as medidas adotadas até então seriam insuficientes, uma vez que a área em questão é gigantesca, com 8.544.000 hectares, o que requer não somente o aumento do efetivo, mas o uso de serviços de inteligência investigativa.
A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) manifestou sua preocupação com o caso. “É necessário que o jornalista e o indigenista sejam encontrados o mais rápido possível e que se apure com urgência o ocorrido”, diz nota da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos. A Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, coordenada pela deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), enviou ofícios ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e à PF cobrando providências.
| Luma Prado é historiadora, roteirista e apresentadora do De Olho na História |
|| Mariana Franco Ramos é jornalista. ||
Foto principal (Funai): Maloca na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas
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