Série sobre Bolsonaro detalha interferência direta em órgãos ambientais de líderes da bancada ruralista e empresas com autuações por desmatamento; De Olho nos Ruralistas mapeou a agenda de autoridades e identificou a influência direta de atores privados em decisões da pasta
Por Alceu Luís Castilho e Luis Indriunas
Os ministros do Meio Ambiente, os presidentes do Ibama e do ICMBio e da Diretoria de Licenciamento Ambiental fizeram desde o início do governo Bolsonaro pelo menos 709 reuniões com membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), representantes de empresas privadas e de organizações do agronegócio. A média é de uma reunião a cada dois dias, de janeiro de 2019 a agosto de 2022.
Quase dois terços dessas reuniões (65,7%) foram com empresas, ocorrendo em 466 ocasiões; outras 144 reuniões ocorreram com organizações de representação do agronegócio, da mineração e de outros setores privados (20,3%). No mesmo período, os atuais membros da FPA — a principal expressão da bancada ruralista no Congresso — foram recebidos 99 vezes, ou seja, em 14% das reuniões. Por outro lado, organizações não-governamentais e movimentos sociais tiveram menos de dez reuniões nas dependências do Ministério do Meio Ambiente.
Essa relação estreita e cheia de benefícios dos órgãos ambientais com desmatadores e seus apoiadores é tema do relatório “Ambiente S/A“, terceiro da série Dossiê Bolsonaro, do De Olho nos Ruralistas. O primeiro relatório foi sobre os conflitos de interesses envolvendo a família Bolsonaro no Vale do Ribeira, em São Paulo: “O Presidente das Bananas“. O segundo foi o estudo “Incra vira Máquina de Votos“, detalhando o uso indiscriminado do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) por políticos bolsonaristas por meio do programa Titula Brasil.
O novo dossiê relata ainda a influência desses atores no desmonte da fiscalização ambiental, as interferências do ex-ministro Ricardo Salles em benefício de empresários, os apadrinhamentos políticos regionais e as relações do Ministério do Meio Ambiente com as grandes multinacionais do agronegócio e da mineração.
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VALE É A CAMPEÃ EM MULTAS E VISITAS AO IBAMA
As empresas são as mais frequentes em visitas ao Ibama, com 292 encontros. Apesar do evidente interesse público nesses temas, apenas em poucos casos a pauta das reuniões é descrita nas agendas oficiais. Entre as empresas mais assíduas no órgão ambiental estão: Vale, Shell, Neoenergia, Volkswagen e Rumo S.A, que juntas contabilizam 109 encontros — 23,4% do total de encontros entre empresas e governo durante a gestão do presidente do órgão, Eduardo Bim.
O que há de comum entre as empresas mais recebidas pelo MMA é seu descompromisso com as florestas do país: grande parte delas é responsável por cometer crimes contra a flora — incluindo desmatamento — ou devedora de multas milionárias para o Estado brasileiro.
A Vale S.A — incluindo Samarco, Fundação Renova, Salobo Metais e CSP — é a empresa campeã de multas e de visitas ao MMA durante o governo Bolsonaro. A empresa é protagonista dos dois maiores crimes ambientais relacionados à mineração no Brasil: a implosão das barragens em Mariana, em novembro de 2015, e Brumadinho, em janeiro de 2019, ambos em Minas Gerais.
Outra relação peculiar é aquela com o banco espanhol Santander. Entre março e maio de 2022, representantes e investidores do Santander Brasil S/A reuniram-se quatro vezes com o atual ministro do Meio Ambiente. Embora o banco não esteja na lista de autos de infrações do Ibama no período do governo Bolsonaro, em 2022 a instituição foi beneficiada em suas multas pregressas pelo Despacho n. 11996516/2022-GABIN do Ibama, que considera inválida a notificação de infratores por edital para a apresentação de alegações finais. A regra traz morosidade para o processo das multas e embargos e deve representar uma perda de R$ 3,6 bilhões em multas por infrações ambientais, segundo reportagem da Agência Pública.
No caso do agronegócio, o destaque vai para a atuação da Agro Santa Bárbara (AgroSB): a empresa se reuniu cinco vezes com Eduardo Bim entre 2019 e 2022. Uma das empresas geridas pelo banqueiro Daniel Dantas e controlada pelo fundo de investimento Opportunity, a AgroSB atua em mercados agrícolas e pecuários a partir de fazendas localizadas no sul do estado do Pará, além da sua sede em Palmas. A empresa acumula acusações de desmatamento, uso de agrotóxicos como arma química, trabalho análogo à escravidão e criação de milícia armada.
FISCALIZAÇÃO NA AMAZÔNIA É A MENOR EM 21 ANOS COM BOLSONARO
“Não vou mais admitir o Ibama sair multando a torto e a direito por aí, bem como o ICMBio. Essa festa vai acabar”. A declaração dada por Bolsonaro um mês de assumir a Presidência da República foi feita durante solenidade de formatura de cadetes aspirantes a oficiais do Exército na Academia Militar das Agulhas Negras em Resende (RJ), onde ele estudou nos anos 70.
O ódio do presidente contra os órgãos ambientais é pessoal. Em março de 2019, o servidor do Ibama José Augusto Morelli – que, em 2012, autuou o político em R$ 10 mil por prática de pesca irregular na Estação Ecológica de Tamoios, no Rio de Janeiro – foi exonerado do cargo de chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental, a mando do presidente. “Sou uma prova viva do descaso, da parcialidade e do péssimo trabalho prestado por alguns fiscais do Ibama e ICMBio”, reclamou Bolsonaro. “Isso vai acabar”.
E, de fato, o trabalho do Ibama e do ICMBio foi, em grande parte, destruído durante seu governo. Em 2020, o Ministério do Meio Ambiente registrou 385 embargos ou apreensões na Amazônia, um número sete vezes menor em 2018, quando foram 2.589, segundo o Observatório do Clima. Outro estudo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aponta que houve uma redução vertiginosa dos autos lavrados por infração contra a flora nos anos de 2019 e 2020, chegando aos menores já registrados nos últimos 21 anos nos nove estados da Amazônia Legal.
No período de 2012 a 2018 foram lavrados na Amazônia Legal em média 4.620 autos anuais por infração contra a flora e no período 2019-2020 apenas 2.610, uma redução de 43,5%. Isto apesar da elevação das taxas de desmatamento, que bateram recordes. Em 2019, foram 10,1 mil km2 e, em 2020, 10,9 mil km2.
O descaso está explicito no orçamento da União. No Plano Plurianual 2020-2023 (PPA), um dos principais instrumentos de planejamento da política pública do governo federal, foi destinado à proteção ambiental apenas 0,03% do orçamento total de R$ 6,8 trilhões.
COM SALLES E LEITE, BOIADA PASSA SOBRE PARECERES TÉCNICOS DAS SUPERINTENDÊNCIAS
Aliado de primeira ordem do presidente Jair Bolsonaro, o ex-ministro do Meio Ambiente e atual candidato a deputado federal Ricardo Salles (PL-SP) ganhou maior notoriedade ao sugerir “passar a boiada” nas leis e normas ambientais enquanto a mídia e o país se preocupavam com a pandemia, que iniciava há pouco mais de um mês.
O apoio de Bolsonaro não foi suficiente para segurar Salles na linha de frente do governo após o escândalo com os madeireiros no Pará, em junho de 2021, no qual o então ministro foi acusado de facilitar, por meio de despacho, a “regularização” de mais de 8 mil cargas de madeira exportadas ilegalmente entre os anos de 2019 e 2020 para os EUA e Europa, segundo a investigação da Operação Akuanduba, da Polícia Federal. Mesmo afastado, porém, os grupos de interesse que apoiaram Salles continuaram com as portas livres no governo de Bolsonaro, após a nomeação do ministro Joaquim Leite que, durante 23 anos, foi conselheiro da Sociedade Rural Brasileira (SRB), uma das financiadoras do Instituto Pensar Agro, braço ideológico da FPA.
Mesmo sendo mais discreto que seu antecessor, Leite não deixa de comparecer a eventos com Bolsonaro e organizados pelo agronegócio. Segundo o levantamento do observatório, o novo ministro se reuniu 15 vezes com integrantes da FPA, sendo uma delas na sede da frente parlamentar — a mesma do IPA —, no Lago Sul de Brasília.
Indicado por Ricardo Salles, o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, que já foi assessor jurídico da Fiesp, outra organização que financia a bancada do agronegócio, aceitou abertamente a influência de líderes ruralistas na nomeação dos superintendentes regionais do órgão. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a superintendente Claudia Pereira da Costa, foi elevada ao cargo por influência do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), ex-presidente da FPA, a quem costuma acompanhar em eventos partidários.
Em sete meses de gestão, ela reduziu em 64% a fiscalização ambiental no estado e, sob o mesmo modus operandi de Bim, atropelou decisões técnicas de seus funcionários. Em fevereiro de 2021, Claudia suspendeu os autos de infração para três embarcações que pertencem ao presidente do Sindicato de Armadores da Pesca do Rio Grande do Sul, Sérgio Daniel Maio Lourenço, e seus familiares. Em dezembro de 2020, os agentes haviam multado em R$ 211,5 mil as empresas por falta de rastreamento obrigatório e autorização vencida.
Confira outros casos de indicação política no órgão no relatório Ambiente S/A. Clique aqui para baixar o documento na íntegra.
Imagem principal (Renato Aroeira/De Olho nos Ruralistas): dossiê mostra tomada dos órgãos ambientais por empresas e organizações do agronegócio e da mineração
| Alceu Luís Castilho é diretor de redação do De Olho nos Ruralistas. |
|| Luís Indriunas é editor do observatório. ||
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