Senador Jaime Bagattoli admite possuir fazenda em terra indígena em Rondônia

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Dossiê “Os Invasores II” mostra que ele é dono da Fazenda São José, imóvel titulado em 2007 sobre 2,6 mil hectares da TI Rio Omerê, de povos de recente contato; registro foi feito menos de um ano após decreto de homologação; vice-presidente da CPI das ONGs declarou ser alvo de perseguição

Por Tonsk Fialho e Bruno Stankevicius Bassi

Na última semana, durante sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Organizações Não-Governamentais (ONGs), o senador Jaime Bagattoli (PL-RO) aproveitou o espaço na mesa diretora para prestar o primeiro esclarecimento público sobre a sobreposição irregular de uma de suas propriedades sobre a Terra Indígena (TI) Rio Omerê, em Corumbiara (RO). Ele foi um dos 42 políticos identificados pelo De Olho nos Ruralistas com fazendas incidentes em TIs. Os dados integram o dossiê “Os Invasores: parlamentares e seus financiadores possuem fazendas sobrepostas a terras indígenas“, lançado no dia 14.

Dossiê mostra sobreposição de fazendas de políticos em terras indígenas.

“Olha a matéria maldosa que o UOL soltou para cima da minha pessoa, do Grupo Bagattoli, do qual eu fui presidente, só não sou presidente hoje”, afirmou, referindo-se à reportagem publicada pela coluna do jornalista Carlos Madeiro, sobre os dados levantados pelo observatório. “Soltou a matéria dizendo que eu havia invadido áreas indígenas”. “Isso pega mal”, considerou. Apesar disso, o senador rondoniense não respondeu às sucessivas tentativas de contato do De Olho nos Ruralistas — tampouco às do UOL.

De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Transportadora Giomila, parte do grupo empresarial fundado por Jaime e seu irmão Orlando Bagattoli, é titular da Fazenda São José, um imóvel de 1.118,25 hectares dedicado à pecuária bovina. A área foi adquirida pelos irmãos em 2011, por meio da penhora de uma dívida contraída pelos antigos proprietários, com 0,26 hectares — isto é, 2.600 metros quadrados — sobrepostos à TI Rio Omerê, um território de indígenas de recente contato, homologado desde 2006.

A empresa é dona de outro registro maior, detectado no Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SCNI), que invade 2.591,76 hectares da terra indígena. Trata-se da mesma fazenda.

Em seu discurso, Bagattoli minimizou a invasão: “Ora, qual produtor rural que vai querer invadir meio hectare? Eu não quero invadir nada”. Ele aproveitou o momento para reforçar o viés de criminalização da CPI das ONGs, propagado pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que comanda a comissão:

— A licitação das terras em Rondônia foi entre 1975 e 1985, ainda então dentro do regime militar. E o que aconteceu? Pegaram e, na Gleba Corumbiara, disseram que acharam sete índios e removeram esses índios. As ONGs fizeram isso! E aí o que aconteceu? Fizeram um interdito, senador Hiran, de vinte e dois mil e poucos hectares. E os vinte e dois mil e poucos hectares foram homologados para a Funai no ano de 2020.

A data mencionada por Bagattoli está errada. A TI Rio Omerê foi homologada em abril de 2006. Poucos meses depois, a área reivindicada pelo senador foi alvo de grilagem.

SENADOR NÃO EXPLICA GRILAGEM NA TERRA INDÍGENA RIO OMERÊ

Aliado de Bolsonaro, Jaime Bagattoli é dono de fazenda grilada em Rondônia. (Foto: Divulgação)

Em novembro de 2007, a empresa São José Jacuri Agropecuária, então titular da área, pertencente à família Junqueira Cleto, protocolou um novo registro do imóvel, anteriormente denominado “Lote 91 e 92 da Gleba Corumbiara”, com 3.716,03 hectares, dos quais 70% — 2.591,76 ha — incidem sobre a TI Rio Omerê.

Natural de Campinas (SP), a família Junqueira Cleto está em Rondônia desde os anos 80, mesmo período em que compraram áreas na antiga Gleba Corumbiara. Eles já protagonizavam conflitos com indígenas: em 1986, Maria Emy Andrade Junqueira Cleto ingressou na Justiça, junto a outros latifundiários, para impedir que fosse declarada a restrição de uso da Rio Omerê, alegando que não havia presença indígena na área. Em 1995, em entrevista ao Estadão, o advogado dos fazendeiros disse que os indígenas foram “plantados” na região — argumento replicado por Bagattoli na CPI das ONGs.

Em seu discurso, o senador reconheceu o registro irregular. “Inclusive na propriedade, são dois lotes, que dão 3.716 hectares, e eu tive que desmembrar 1.118 hectares, só a parte aberta, e a parte toda da reserva foi homologada junto, mais 2 mil e poucos hectares, toda a mata foi homologada como reserva indígena”, afirmou. Ele provocou: “E digo mais assim, quero falar inclusive para as ONGs, que peçam um perito, pode ser até um perito judicial”.

A Fazenda São José não foi declarada pelo senador ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ao todo, o catarinense nascido em José Boiteux acumula um patrimônio de mais de R$ 55 milhões. Com sede em Vilhena (RO), o Grupo Bagattoli reúne a Transportadora Giomila, a Rede Catarinense de postos de combustíveis e diversas fazendas voltadas para o plantio de soja e criação de gado.

Confira abaixo o mapa apontando a sobreposição do senador rondoniense na TI Rio Omerê:

Mapa aponta grilagem de antigos proprietários da Fazenda São José.

REGIÃO FOI PALCO DE GENOCÍDIO DE POVOS DE CONTATO RECENTE

Localizada no sul de Rondônia, a TI Rio Omerê abriga os últimos sobreviventes dos povos Akuntsu e Kanoê, duas etnias de recente — e catastrófico — contato. Durante os anos 70, aldeias inteiras foram dizimadas pela truculência dos invasores e por doenças para as quais não tinham anticorpos. Como se não bastasse, enormes porções de terra foram roubadas deles por fazendeiros, com a conivência de órgãos estatais.

Em 1985, o indigenista Marcelo Santos, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), encontrou resíduos de cabanas destruídas e flechas quebradas na região, e obteve uma ordem de proteção para um pedaço de terra chamado Omerê, nas margens do igarapé de mesmo nome, um dos afluentes do Rio Corumbiara. Dez anos depois, em 1995, ele comandou uma expedição que contatou cinco remanescentes dos Kanoê e identificou, pela primeira vez, os Akuntsu. O povo era desconhecido dos indigenistas e, naquele momento, contava com apenas sete sobreviventes.

Povo Akuntsu, de contato recente, foi alvo de genocídio nos anos 1980. (Foto: Survival International)

Em entrevista ao De Olho nos Ruralistas, a professora indígena Eva Kanoé relata o sofrimento de seus antepassados causado pela cisão da etnia, que se dividiu em dois grupos durante o período das invasões — a vertente que ficou no território Omerê foi praticamente dizimada.

“A avó foi transferida compulsoriamente do antigo território para a TI Ricardo Franco, no Rio Guaporé”, recorda. “Nesse processo de deslocamento forçado, as famílias Kanoê foram separadas e muitas mulheres foram para não se sabe onde. A avó foi separada do marido e, como punição por ‘mau comportamento’, foi levada para outra TI, a Ribeirão”. Ela conta que a anciã não gostava de falar sobre o passado e, por temer novas perseguições, não lhes ensinou a língua materna, hoje extinta. “Lá ela trabalhou como costureira e foi constrangida a trabalhar como prostituta. Sofreu tanta violência que, depois disso, ela negou a sua história”.

Depois do contato inicial, nos anos 90, o território foi interditado pelo Ministério da Justiça. Mas fazendeiros da região reagiram imediatamente: difundiram a mentira de que o contato anunciado pela Funai era uma farsa, montada com “índios atores”. A Polícia Federal em Rondônia abriu inquérito para investigar tentativa de genocídio contra os Kanoê e Akuntsu. Depois, um acampamento da Funai foi erguido na entrada de uma das reservas de florestas, às margens de um igarapé afluente do Omerê, para exercer a vigilância territorial e assistir os sobreviventes dos dois povos.

Em 2011, um fazendeiro que ocupava irregularmente a área da TI obteve da Secretaria Estadual do Meio Ambiente de Rondônia a autorização para retirar 17 mil m³ de madeira nativa.  O argumento do governo estadual para aprovar a exploração madeireira era o atraso no recebimento de indenização pelas “benfeitorias de boa-fé” no interior do território, Mas a autorização foi cancelada pela Procuradoria Federal Especializada junto à Funai no município de Cacoal.

ATUAÇÃO DE SENADOR EXPÕE CONFLITOS DE INTERESSES

Jaime Maximino Bagattoli foi eleito senador de Rondônia em 2022 pelo Partido Liberal, o mesmo de Bolsonaro. Com patrimônio declarado de mais de R$ 55 milhões, o catarinense nascido em José Boiteux é dono do Grupo Bagattoli, com sede em Vilhena (RO). A empresa reúne a Transportadora Giomila, a Rede Catarinense de postos de combustíveis e diversas fazendas voltadas para o plantio de soja e criação de gado.36 Ao assumir o mandato, Bagattoli imediatamente se tornou membro da Frente Parlamentar da Agropecuária.

Bagattoli é dono de império agropecuário em Rondônia. (Foto: Divulgação)

Em 19 de abril de 2023, Dia dos Povos Indígenas, Bagattoli propôs dois projetos de lei, os PLs 2009/2023 e 1988/2023: o primeiro pretende garantir ao fazendeiro o direito de “solicitar diretamente o uso de força policial para a retirada dos invasores, independentemente de ordem judicial”; o segundo altera o Código Penal para incluir na seção de crimes contra o patrimônio a invasão de propriedades rurais.

Jaime Bagattoli enfrenta hoje denúncia de abuso de poder econômico na Justiça Eleitoral, por indícios de adulteração de valores para burlar o limite de gastos de campanha. Entre as contas reprovadas, o senador afirma ter gasto apenas R$ 300 com o aluguel de seis carros por 43 dias. Caso ele seja condenado, a ação pode levar à perda do mandato.

Os primeiros meses de sua atividade legislativa no Senado evidenciam suas prioridades na vida pública. Entre os compromissos de campanha, Bagatolli prometeu regularizar todos os garimpos de Rondônia, inclusive aqueles localizados dentro de territórios indígenas. Em abril,  subiu à tribuna para cobrar do governo a entrega de títulos de terras no estado, atribuindo a essa demora — e aos camponeses — a culpa pelo desmatamento.“Precisamos acertar essa regularização fundiária para que os pequenos produtores não continuem desmatando áreas que pertencem à União”, declarou, sem citar seu interesse privado nas terras.

Em março, o senador foi autor de um requerimento de informação destinado ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, pedindo providência diante do que descreve como escalada da “violência no campo contra propriedades privadas agrícolas”. No mesmo mês, Bagattoli requereu uma audiência pública na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) sobre os desafios do manejo florestal no bioma amazônico.

CLÃ BAGATTOLI RESPONDE POR CRIME AMBIENTAL

A família Bagattoli é ligada ao ramo madeireiro desde que migrou para Rondônia. O início da atividade na Amazônia foi com a venda de madeira nativa do bioma em José Boiteux (SC), onde alguns parentes ainda atuam no ramo. O clã acumula denúncias de crimes ambientais.

A Indústria Madeireira Selva Norte Ltda. foi multada em 2004 por armazenar madeira ilegal. Ela está registrada em nome de outros dois irmãos do senador, Gilmar e Valdemar Bagatolli. No mesmo ano, Jaime foi multado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por quatro infrações contra a flora, totalizando R$ 34 mil em multas. Em 2003, Orlando Bagatolli, irmão, sócio e principal financiador de campanha do senador, teve uma área de 100 hectares embargada na Gleba Corumbiara, região das propriedades sobrepostas à TI Rio Omerê, por desmatamento com uso de fogo.

O atual senador foi preso em 2020, ao lado de Orlando Bagattoli, por dano ao patrimônio público. Ambos foram flagrados quebrando um meio-fio com marretas: argumentavam que a construção atrapalhava o fluxo de veículos em uma das filiais do Posto Catarinense, do Grupo Bagattoli. Na ocasião, Orlando empurrou e agrediu verbalmente um técnico do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), órgão responsável pela instalação do meio-fio. Os empresários pagaram fiança e respondem em liberdade.

Recibo de embargo do Ibama à Orlando Bagattoli, irmão do senador. (Imagem: TJSC)

BAGATTOLI TEM BANCADA PRÓPRIA EM RONDÔNIA

Senador foi cabo eleitoral de Thiago Flores, para quem doou R$ 50 mil. (Foto: Divulgação)

Entre os membros da Frente Parlamentar da Agropecuária, o senador Jaime Bagattoli foi o principal beneficiário de verbas de campanha de fazendeiros com sobreposições em terras indígenas. Eleito em 2022 para seu primeiro cargo público, ele recebeu R$ 2,89 milhões do irmão Orlando, seu sócio na Transportadora Giomila Ltda, parte do Grupo Bagattoli. É em nome dessa empresa que está a Fazenda São José, que se sobrepõe em 2.591,76 hectares da TI Rio Omerê, em Corumbiara (RO). O imóvel possui um histórico suspeito, com dois pedidos de registro em sequência, logo após a homologação da TI. Além do apoio financeiro do irmão, o próprio Jaime injetou R$ 300 mil em sua campanha.

O senador foi também o maior doador privado de seu estado: ele apoiou a campanha de trinta candidatos à Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia (Alero), com valores entre R$ 4 mil e R$ 182,8 mil. A cifra mais alta foi repassada ao radialista e ex-deputado Edvaldo Rodrigues Soares (PTB), que não se elegeu. Ao todo, cinco deputados estaduais foram eleitos com o dinheiro de Bagattoli: Affonso Candido (PL), Dra. Taíssa Sousa (PSC), Nim Barroso (PSD), Pedro Fernandes (PTB) e Ribeiro do Sinpol (Patri). Juntos, eles receberam R$ 282.060,00 do senador — quase a mesma quantia aplicada pelo senador na própria candidatura.

O empresário apoiou outros dezessete candidatos à Câmara em 2022, mas elegeu apenas um: o delegado de polícia Thiago Flores (MDB-RO), ex-prefeito de Ariquemes (RO), recebeu R$ 50 mil de Bagattoli — que também atuou como cabo eleitoral durante sua campanha. Assim como seu principal financiador, Flores se filiou à FPA logo após assumir o mandato.

Foto principal (Reprodução/TV Senado): senador Jaime Bagattoli acusa indígenas de serem “plantados”

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