Cinco imóveis ligados a Dida Souza e seus irmãos têm irregularidades fundiárias; em um deles, Ministério Público apura desmatamento ilegal; disputa por espólio do pai deu início a guerra entre irmãos, que se acusam de invasão de terras e roubo de cacau
Por Tonsk Fialho
Ao lado dos irmãos, a coordenadora nacional do Movimento Invasão Zero, Renilda Maria Vitória de Souza — a Dida — é herdeira de 8.321,52 hectares em lavouras de cacau e fazendas de gado. Desse total, 88,72 hectares estão sobrepostos a assentamentos da reforma agrária. As irregularidades fundiárias foram identificadas em Wenceslau Guimarães (BA), onde a família mantém boa parte de seu patrimônio rural e onde o pai de Dida, Osvaldo José de Souza, foi prefeito.
O clã é dono de 4.450 hectares no município, sendo boa parte deles destinados à produção de cacau. Ali, as fazendas Monte Azul, Lagoa, Santa Luzia, Cachoeira Grande e Conjunto Jacarandá invadem os limites de quatro assentamentos criados pelo governo federal.
Os dados são fruto de levantamento realizado pelo observatório De Olho nos Ruralistas com base em dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e integram a série de reportagens sobre o grupo de latifundiários que promoveu, em 21 de janeiro, ataque a uma retomada Pataxó.
O ato resultou na morte da pajé Maria Fátima Muniz de Andrade — a Nega Pataxó. O primeiro texto da série aborda o histórico de violência de Dida Souza, ré por tentativa de homicídio contra um ex-funcionário.
No Projeto de Assentamento (PA) Resistente, dois imóveis registrados em nome da família Souza avançam sobre 75,4 hectares da área destinada a pequenos agricultores assentados pelo Incra. Também são invadidos por propriedades do clã os Assentamentos Chico Mendes (7,116 hectares), Candelária (6,157 hectares) e Fabio Henrique (0,027 hectares).
FAZENDAS DA FAMÍLIA FORAM AUTUADAS SEIS VEZES PELO IBAMA
Um desses imóveis, o Condomínio Agropecuário Conjunto Jacarandá, é alvo de investigação pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) por desmatamento de Mata Atlântica. A fazenda está registrada em nome de Osvaldo José de Souza Junior, o Dado. Ele estava ao lado da coordenadora do Invasão Zero durante a tentativa de homicídio, registrada em 200, e dirigia o veículo Mercedes, lançado contra o muro da casa de um ex-funcionário da empresa Osvaldo Souza Empreendimentos Patrimoniais Ltda. O homem sobreviveu ao atentado com ferimentos leves. Os filhos, de 9 e 12 anos, e a mulher saíram ilesos.
Entre 1998 e 2001, a família Souza foi autuada em pelo menos seis oportunidades por fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). As multas ocorreram nos municípios de Gandu e Itagi, relativas a desmatamento ilegal e falhas no controle ambiental. O valor total das autuações é de R$ 45 mil e foi integralmente quitado.
Em 2016, novas multas. Um dos filhos do segundo casamento do patriarca Osvaldo José de Souza, Rodrigo Martins de Souza, recebeu duas infrações administrativas por “violar as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”. O valor das autuações somava R$ 26 mil e também foi quitado.
“VAMOS VOLTAR SEMPRE QUE HOUVER CACAU”, AMEAÇAVAM IRMÃOS
Em 2012, morria Osvaldo José de Souza, pai de Dida Souza. O acontecimento deu início ao conflito pelo espólio do ex-deputado estadual. Além de Dida, seus irmãos Dado Souza e Ruy Carlos dos Santos Souza entraram na briga por uma fatia da herança. Do outro lado, estavam a viúva Isa Martins e Rodrigo Martins de Souza, filho do segundo casamento do político, acusado pelos irmãos mais velhos de forjar assinaturas a fim de controlar o espólio do pai.
À época, a guerra de versões tomou conta da mídia local. Ambos os lados afirmam ter sofrido ameaças de morte. No centro da disputa se encontravam as empresas da família, Osvaldo Souza Agropastoril e Osvaldo Souza Empreendimento Patrimonial, e as terras que se espalham pelos municípios baianos de Apuarema, Itamari, Ituberá, Gandu, Nilo Peçanha e Wenceslau Guimarães. Além da criação de gado, as propriedades têm como carro-chefe o plantio do cacau.
Ruy, irmão mais velho de Dida, já ocupou o cargo de presidente do Conselho Municipal do Cacau em Wenceslau Guimarães, enquanto o pai Osvaldo foi condecorado com o Diploma “Homem de Ouro do Cacau” em 1985. Com o falecimento do patriarca, seus filhos mais velhos passaram a promover invasões nas fazendas que teriam sido vendidas ou transferidas pelo pai antes da abertura do inventário.
Segundo relatos obtidos em processos judiciais movidos contra os irmãos, as invasões incluíam o apoio de homens armados, além do confisco de milhares de arrobas de cacau. Quando não conseguiam expulsar os ocupantes das propriedades, Dida, Dado e Ruy carregavam caminhões com toda a produção das fazendas, ameaçando voltar “sempre que houvesse cacau”. Os relatos são de 2013, um ano após a morte do patriarca.
O desentendimento entre os herdeiros teve início após a descoberta da existência de um testamento assinado pelo ex-deputado durante o tratamento contra o câncer. Segundo o documento, Osvaldo pretendia deixar seus bens mais valiosos para sua segunda esposa, Isa Martins, e o filho Rodrigo Martins de Souza. Para completar a insatisfação dos filhos do primeiro casamento, duas fazendas no município de Nilo Peçanha (BA), os conjuntos Óleos e Putumuju, seriam doados respectivamente a Eliana Gomes Peixoto, última companheira de Osvaldo — com quem não chegou a contrair matrimônio — e José Ferreira da Silva Filho, um amigo.
Revoltados com as intenções do pai, Dida Souza, Dado e Ruy deram início a uma batalha judicial contra os outros herdeiros, argumentando que as propriedades em questão pertenciam à empresa Osvaldo Souza Agropastoril, sociedade da qual faziam parte. Em contrapartida, Rodrigo Martins de Souza e Isa Martins afirmam que, antes de falecer, Osvaldo promoveu alterações contratuais na empresa, a fim de garantir seu desejo registrado em testamento.
LÍDER DO “INVASÃO ZERO” INVADIA FAZENDAS PARA ROUBAR CACAU, APONTA INQUÉRITO
Sem aguardar o desfecho judicial, a coordenadora nacional do Invasão Zero passou a reivindicar à força o controle das fazendas que pertenciam ao pai. No Conjunto Putumuju, José Ferreira da Silva Filho, conhecido como Ferreirinha, foi expulso pelos irmãos Dida e Ruy Souza, acompanhados de doze homens armados. Segundo relato da vítima, a dupla ordenou que seus jagunços saqueassem 21 sacas de cacau, de 60 quilos cada, prontas para comercialização.
O mesmo foi feito contra Eliana Peixoto, última companheira de Osvaldo Souza, no Conjunto Óleo, localizado em Nilo Peçanha (BA). À época, os irmãos invadiram a propriedade, acompanhados de homens armados, para confiscar sacas de cacau.
Em maio de 2013, o escritório da empresa Osvaldo Souza Empreendimento Patrimonial foi arrombado por Dida, Dado e Ruy Souza durante o feriado de Corpus Christi, quando foram subtraídas 216 sacas de amêndoas secas de cacau, além três computadores, impressoras, documentos fiscais e R$ 15 mil em espécie. Junto dos irmãos, participaram da invasão outros dez suspeitos, que destruíram o sistema de câmeras da empresa a fim de não deixar rastros.
Os casos se multiplicam: em junho do mesmo ano, Ruy Souza apareceu acompanhado de policiais militares, obrigando um funcionário da Fazenda Braço do Norte, em Gandu (BA), a entregar um caminhão carregado de cacau. Segundo o relato, os PMs disseram ao funcionário que era melhor ceder, ou fariam uso da força.
O processo de inventário corre em segredo de justiça. Em 2020, Ferreirinha, expulso do Conjunto Putumuju, ainda aguardava o desfecho da partilha dos bens para o julgamento de sua tentativa de reintegração de posse. Quanto às acusações criminais contra Dida e seus irmãos, os processos se encontram parados, sem conclusão dos inquéritos policiais.
Em nota enviada à reportagem, a presidente do Movimento Invasão Zero afirma desconhecer os processos. “Nunca fui intimada”, diz o texto. Renilda Souza também informa não ter relação com a ação que resultou no assassinato de Nega Pataxó: “Não tenho relação alguma com a morte dela, não tenho conhecimento de quem organizou os produtores rurais para essa retomada de uma propriedade rural invadida, não conheço a região onde ocorreu essa ação e estava em Salvador nesse dia”.
RELAÇÃO COM POLÍCIA MILITAR ANTECEDE ATAQUE AOS PATAXÓ
A relação dos irmãos com a Polícia Militar da Bahia é estreita. Na Fazenda Paramaribo, em Wenceslau Guimarães (BA), onde são acusados de tentativa de homicídio contra um antigo funcionário do pai, uma segunda denúncia de uso da força, para expulsar posseiros na localidade, incluiu a participação de policiais militares.
Uma moradora do local afirma que, a pedido de Ruy Souza, soldados conduziram dois membros de sua família até a casa do empresário, a fim de intimidá-los para que deixassem a fazenda.
Mais de dez anos depois dos relatos de pistolagem envolvendo Dida Souza e a disputa pela herança de seu pai, membros da Polícia Militar da Bahia vêm sendo investigados pela Polícia Federal por darem suporte ao ataque organizado pelo Movimento Invasão Zero, que há um mês vitimou a líder indígena Nega Pataxó, na Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu, no sudeste do estado.
Segundo o Intercept Brasil, depoimentos de sobreviventes indicam que a Polícia Militar chegou a abrir passagem para os fazendeiros. “Os integrantes do Invasão Zero são milicianos”, afirmou Cacique Naílton, irmão de Nega Pataxó e um dos sobreviventes do ataque. “Tem policial sem farda dentro do grupo. O que a gente não contava é que tinha policial fardado ajudando no trabalho de pistolagem também”.
Foto principal (Secretaria de Agricultura de Wenceslau Guimarães): Assentamento Fábio Henrique foi uma das áreas de reforma agrária com sobreposição de fazendas do grupo Souza
Atualização: o texto foi atualizado para incluir o posicionamento de Renilda Souza, enviado após a publicação da série de reportagens.
| Tonsk Fialho é pesquisador e repórter do De Olho nos Ruralistas. |
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