Os Gigantes: sindicatos rurais usam prefeitos para revisar zoneamento e ampliar soja

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Prefeitos de São Félix do Araguaia e Cocalinho e organizações patronais tentam mudar projeto do governo mato-grossense de restringir cultivo de soja em campos úmidos; dossiê “Os Gigantes” aponta influência do agronegócio na gestão dos cem maiores municípios

Por Carolina Bataier e Bruno Stankevicius Bassi

“O zoneamento da forma proposta irá acabar com nosso município, trazendo transtornos tanto na área da agricultura, da pecuária, nossos calcários, de forma que Cocalinho será devastada”. A fala em tom apocalíptico foi proferida por Marcio Conceição Nunes de Aguiar, o Baco, prefeito de Cocalinho (MT) e candidato à reeleição pelo União Brasil, em vídeo publicado em 2022 no Facebook.

Dossiê aponta influência do agronegócio sobre prefeituras.

Baco convocava a população para “unir forças” com o sindicato rural do município e questionar o Zoneamento Socioeconômico e Ecológico do Mato Grosso (ZSEE-MT), apresentado em 2020 pelo governo estadual. Entre as normas propostas está a restrição para o cultivo de lavouras tecnificadas, como a soja, na região do Vale do Araguaia, onde Cocalinho está inserida.

O município aparece em 73° lugar entre os cem maiores do Brasil, tema do dossiê “Os Gigantes“, publicado em 5 de setembro pelo De Olho nos Ruralistas. Resultado de quatro meses de pesquisa, o relatório analisa as políticas ambientais nesses municípios que compõem 37% do território brasileiro.

Na vizinha São Félix do Araguaia, a soja ocupa 2,5 mil km², colocando-a em nono lugar entre os Gigantes sojicultores. Em 2021, a prefeita Janailza Taveira Leite, também do União, encaminhou ao governo estadual um ofício pedindo a revisão do ZSEE-MT e solicitando a liberação de áreas para agroindústria, silvicultura, agricultura e pecuária tecnificadas.

“A proposta de Zoneamento apresentada pelo Governo do Estado penalizará de maneira brutal a Região do Vale do Araguaia”, diz o ofício. “Condenando-a ao fracasso, empobrecimento, desemprego e subdesenvolvimento, na medida em que impede a prática da agropecuária tecnológica”.

O ofício contestando as regras estabelecidas pelo ZSEE-MT conta com dois pareceres técnicos, ambos encomendados pelo Sindicato Rural de São Félix do Araguaia. Um dos estudos foi elaborado pelo engenheiro agrônomo Xico Graziano, ex-deputado pelo PSDB e um dos principais ideólogos do ruralismo contemporâneo, conhecido por sua postura radical contra os movimentos de luta pela terra.

Prefeita Dra. Janailza posa em plantação de soja no Araguaia. (Foto: Reprodução)

PROPOSTA VISA PROTEGER ÁREAS ÚMIDAS NO VALE DO ARAGUAIA

Os prefeitos de Cocalinho e São Félix do Araguaia não são grandes proprietários de terras. Candidato à reeleição, Baco declarou 257 cabeças de gado. Dra. Janaílza, como é conhecida, possui terrenos urbanos e um rancho em Mato Grosso e uma fazenda pequena no Rio Grande do Norte. A relação de ambos com o setor se dá por meio dos sindicatos rurais.

Em Cocalinho, Baco aprovou uma lei autorizando o município a repassar R$ 390 mil para o sindicato local organizar um rodeio. Em São Félix do Araguaia, a prefeita possui relação próxima com a presidente Daniela Caetano de Brito, que participa com ela de diversas agendas oficiais: de reuniões no Palácio do Governo a audiências públicas na Assembleia Legislativa e na Câmara dos Deputados, onde tentam paralisar o processo de demarcação da Terra Indígena Kapôt Nhinore. Nos dois casos, os sindicatos são interessados diretos na revisão das regras do Zoneamento Socioeconômico e Ecológico.

Prefeita de São Félix do Araguaia e presidente do Sindicato Rural tentam intervir em zoneamento ecológico estadual. (Foto: Reprodução)

Desenvolvido pela Secretaria de Planejamento e Gestão de Mato Grosso (Seplag), o ZSEE divide o estado em zonas, estabelecendo os melhores usos para cada uma, de acordo com características socioambientais. O documento é um instrumento técnico e político de planejamento previsto na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei Federal nº 6.938/1981), que estabelece diretrizes de ordenamento e gestão do território, considerando suas características ambientais e dinâmica socioeconômica.

De acordo com o Caderno de Estudo Ambiental, que compõe o ZSEE-MT, o documento deve estabelecer limitações à ocupação das chamadas áreas úmidas do Vale do Araguaia, visando a preservação das ipucas — pequenas ilhas que conservam fragmentos de floresta, com espécies amazônicas e da Mata Atlântica. Nesses espaços, ficam permitidas atividades de turismo, pesca e pecuária extensiva.

Em 2023, o ZSEE-MT passou por uma alteração na equipe responsável pela revisão técnica e elaboração da proposta de adequação. “O Governo do Estado contratou a Universidade Federal de Viçosa (UFV), reconhecida por sua competência técnica e científica, para elaborar as revisões científicas necessárias nesse projeto estratégico”, informou a Seplag, em resposta ao De Olho nos Ruralistas. De acordo com a secretaria, a elaboração do novo documento está em desenvolvimento, com previsão de conclusão para o fim do segundo semestre.

“Todas as contribuições recebidas durante a consulta pública estão sendo cuidadosamente avaliadas pela Universidade Federal de Viçosa, responsável pela coordenação técnica da revisão do projeto”, informou a Seplag, quando questionada sobre a influência das prefeituras na elaboração do documento.

CONFIRA VÍDEO SOBRE “OS GIGANTES” EM NOSSO CANAL NO YOUTUBE

O território brasileiro comporta quase todo o continente europeu. Um quinto das Américas. É a maior área continental do hemisfério sul. O Oiapoque, no Amapá, está mais próximo do Canadá do que de Chuí, no extremo sul do país. Entre o litoral paraibano, onde se inicia a Rodovia Transamazônica, e Mâncio Lima, na divisa com o Peru, são 4.326 quilômetros — quase a mesma distância entre Lisboa e Moscou.

Entre esses extremos existem 5.568 municípios. Entre eles, desponta um time seleto cujas proporções são comparáveis a países inteiros: os cem maiores municípios do país. O maior deles, Altamira (PA), é maior que a Grécia. Bem maior que Portugal.

“É uma fatia decisiva e esquecida do Brasil”, aponta o diretor do De Olho nos Ruralistas, Alceu Luís Castilho. “Esses municípios costumam ficar fora da cobertura eleitoral, diante da ênfase nos grandes centros urbanos, mas a importância ambiental deles é gigantesca. O impacto deles é planetário”.

Além do dossiê “Os Gigantes”, o observatório publica uma série de vídeos e reportagens detalhando os principais achados do estudo, que mapeia as políticas ambientais dos cem municípios e conta casos emblemáticos de conflitos de interesses envolvendo prefeitos-fazendeiros e a influência de empresas e sindicatos rurais.

O primeiro episódio está disponível em nosso canal no YouTube. Confira abaixo:

| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de pesquisa do De Olho nos Ruralistas. |

|| Carolina Bataier é repórter do Brasil de Fato e integrou o time de pesquisa do dossiê Os Gigantes. ||

Foto principal (AGR Agronegócio): Cocalinho tem uma das maiores áreas de soja do estado, ao lado da vizinha São Félix do Araguaia

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