Despejo da comunidade Taboca, no Tocantins, viola resolução de direitos humanos

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Justiça não se preocupou com destino de camponeses. (Foto: Bruno Alface)

Camponeses foram retirados sem a presença de assistentes sociais e do Conselho Tutelar; segundo o Incra, trio de fazendeiros reivindicou propriedade uma década após área ser reconhecida como terra pública, da União

Por Maurício Hashizume, em Palmas

– Não temos para onde ir. E a gente não quer sair. Lá é muito bom. Nasceu criança e tudo. E ainda não recebemos garantia nenhuma. Não sabemos nem onde as crianças vão estudar.

Moradora da Comunidade Taboca, no município de Babaçulândia, Luzimária Fonseca dos Santos expressa assim, num misto de desamparo e perplexidade, a situação vivida por ela e pelas 70 famílias que ocupam e produzem na área há sete anos. Diante do despejo ordenado pela juíza Wanessa Lorena Martins de Sousa Motta, da Comarca de Wanderlândia (TO), um amplo efetivo do 2º Batalhão da Polícia Militar de Araguaína iniciou o processo de reintegração de posse da área nesta quarta-feira (20).

Mesmo sem a garantia mínima da oferta de condições de abrigo e acolhimento de desalojados. Pelo número de pessoas envolvidos e por se tratar de uma área de difícil acesso em período chuvoso, o despejo deverá se prolongar pelos próximos dias. O local possui um projeto de agroecologia, em parceria com a Universidade Federal do Tocantins (UFT).

Por telefone, a assessoria da juíza afirmou que o processo é público e que não se manifestaria sobre a reintegração de posse.

Segundo relatos da Comissão Pastoral da Terra (CPT Araguaia-Tocantins), não foi destacado sequer um ônibus para o transporte das pessoas e nem meios para a retirada dos animais. Assistentes sociais e membros do Conselho Tutelar local também não estiveram presentes para o auxílio a mulheres, homens e crianças. A preocupação com o destino e o alojamento minimamente adequado das famílias despejadas, segundo relatos, é praticamente inexistente.

PROPRIETÁRIOS SE DIZEM DEFENSORES DO CERRADO

Pousada Ecos do Silêncio, de Patrick Wirth. (Foto: Reprodução)

A decisão favorece empresários que jamais viveram no local: Markus Max Wirth e seus dois filhos, Markus Wirth e Patrick Wirth. Os documentos de titulação, que formaram a base para a decisão do despejo, estão sendo investigados por suspeita de fraude em inquérito instaurado pelo Ministério Público Federal (MPF). Trata-se de área arrecadada e matriculada pela União, na qual o próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) manifestara intenção de instalar projeto de assentamento.

Markus Max Wirth tem uma empresa de importação e exportação em São Paulo e sociedade na empresa Spe Baia do Pontal Empreendimentos Imobiliários Ltda, em Ilhéus, esta com um capital social de R$ 2,61 milhões. Em sua página no Facebook, Wirth – que fez faculdade na Suíça – faz posts sobre reflorestamento, agricultura orgânica e até destruição do Cerrado.

Patrick Wirth possui uma pousada em Cavalcante (GO), ao lado da Chapada dos Veadeiros. Markus, um resort, na mesma região da Chapadinha. “Direto das ecotendas, certamente terão a inédita experiência de observar as estrelas diretamente de sua cama”, diz Patrick em anúncio de sua pousada, “apreciando nossa caipirinha de cajuí do Cerrado e se deliciando com nossa culinária”. Ele também tem uma fazenda em Salmourão (SP).

Markus Wirth estudou arquitetura em Berlim. Entre seus amigos no Facebook está Collin Butterfield, ex-executivo da Radar – empresa que gere as propriedades rurais da gigante sucroalcooleira Cosan, em parceria com um fundo de pensão dos Estados Unidos – e um dos líderes do movimento Vem pra Rua, ativo nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff.

TENTATIVA ANTERIOR NÃO TINHA MANDADO

Oficial ignorou suspensão de decisão em dezembro. (Foto: CPT)

Em dezembro já havia ocorrido uma tentativa de despejo, mesmo com o mandado de reintegração de posse suspenso pelo Tribunal de Justiça. “Uma casa que estava trancada e sem o proprietário presente foi invadida e os objetos retirados com toda anuência do Oficial de Justiça”, relatou na época a Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Cadeiras, mesas, camas, brinquedos, fogão entre outros itens foram jogados nas caçambas dos veículos, inclusive uma caçamba a serviço do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. Um dos representantes da parte requerente ameaçou os moradores de queimar os barracos e destruir as roças das famílias”.

Como último recurso antes da última ação de despejo, a Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO) havia protocolado na segunda-feira um mandado de segurança contra o comando geral da PM no Estado e o próprio governador Mauro Carlesse (PHS) pedindo a suspensão da retirada das famílias pela ausência completa de “medidas e proteção mínimas que devem ser destinadas aos desalojados” por parte das autoridades.

O desembargador Eurípedes Lamounier, do Tribunal de Justiça do Tocantins (TJ-TO), negou a suspensão e deu aval à continuidade do despejo, mesmo diante de resoluções e protocolos nacionais e internacionais a serem seguidos para casos de reintegração de posse, com o argumento de que “não há comprovação de qualquer ato violador de direito líquido e certo”.

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) chegou a enviar ofício para a Comarca de Wanderlândia, realçando a necessidade de cumprimento das bases de sua Resolução nº 10, de 17 de outubro de 2018, que dispõe sobre “soluções garantidoras de direitos humanos e medidas preventivas em situações de conflitos fundiários coletivos rurais e urbanos”.

Para o coordenador da ONG Terra de Direitos, Darci Frigo, que atuou na elaboração da resolução, “o despejo é uma grande violação de um conjunto de direitos econômicos, sociais e culturais dessas pessoas”. “E o fato de não se garantir sequer um alojamento, um local, de não haver nenhuma medida nesse sentido viola claramente as resoluções do próprio conselho”, afirma. Ele diz que, sendo comunicado, o CNDH poderá instaurar os procedimentos de apuração.

“Se a gente fizer um apanhado das reintegrações de posse na região, há um mesmo modus operandi, relata Lorrany Lourenço, advogada da CPT que acompanha esse e outros conflitos similares envolvendo famílias camponesas no Norte do Tocantins. “Elas acontecem do mesmo jeito, com as mesmas violações”.

Ela conta que, no caso da Comunidade Taboca, a juíza considerou em sua decisão não apenas os títulos sob suspeita como também documentos onde os supostos proprietários dizem que pretendem implantar no local o projeto Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (Redd) e que sempre mantiveram uma pessoa cuidando de sua posse, embora não residam no imóvel.

Os camponeses cultivam mandioca, arroz, feijão e milho nas terras da comunidade, entre outras variedades, e mantêm pequenas criações de galinhas e porco. Eles negam que houvesse alguém na área cumprindo esse papel de vigilância.

O deputado federal Célio Moura (PT-TO), que é da região, denunciou o prejuízo do despejo para as dezenas de famílias em sessão da Comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural. Ele conta que as reintegrações de posse têm se multiplicado a favor de grandes produtores e empresas rurais:

– O Poder Judiciário não está dando oportunidade para que se discuta mais. Pessoas que estão há sete anos produzindo em cima da área, devoluta, uma área da União, agora são surpreendidas com essa decisão. O Poder Judiciário, de certa forma, não está preocupado com a paz no campo, com a produção, com a vida das pessoas, num país sem emprego e sem moradia.

O deputado sugeriu que a comissão enviasse uma comunicação para a juíza responsável pedindo que o caso só fosse decidido mediante manifestação de todas as partes envolvidas. O presidente reeleito da comissão, deputado Fausto Pinato (PP-SP), que faz parte da bancada ruralista, ficou de analisar a proposta. “Naquela região o agronegócio é muito forte e, com o Incra inoperante e essa posição do governo federal de perseguir os trabalhadores rurais, nós estamos sentindo que há casos em que a própria polícia está sendo usada”, reforça Moura.

INCRA CONFIRMA: TERRAS SÃO DA UNIÃO

Por meio de sua assessoria de imprensa, o Incra confirma que existe uma sobreposição de fazendas reclamadas pelos autores da ação judicial com áreas públicas arrecadadas e matriculadas em nome da União em meados da década de 1980. Cerca de uma década, portanto, antes da data dos títulos apresentados pelo trio favorecido pelo despejo.

Em 2014, a superintendência do órgão no Tocantins manifestou interesse na criação de projetos de assentamentos no local. Um processo administrativo para analisar a viabilidade do empreendimento foi instalado, mas a Justiça Federal acabou direcionando os trâmites para a competência estadual, o que teria impossibilitado a continuidade dos procedimentos.

Até a jurisdição da Comunidade Taboca é alvo de controvérsia: apesar de estar situada em Babaçulândia (pertencente à comarca de Filadélfia), segundo mapa do Incra, o processo foi julgado como se pertencesse a Wanderlândia, município em que se deu o registro dos documentos sob análise do Ministério Público Federal.

O Incra informa que mantém uma superintendente substituta em Palmas (desde a exoneração do ex-deputado estadual Carlão da Saneatins, em dezembro, após sua prisão por envolvimento em corrupção na Operação Nudae) e que “adotou todas as providências necessárias em relação ao caso”, prestando apoio à DPE-TO na tentativa de preservação de direitos das famílias.

“No processo principal, de reintegração de posse, já existe apelação da CPT e agravo interno no Tribunal de Justiça, confirma a defensora Téssia Carneiro Gomes, que faz parte do Núcleo Aplicado das Minorias e Ação Coletivas (Nuamac) de Araguaína. “Tais recursos estão sendo acompanhados pela DPE, como parte interessada”.

Além da resolução do Conselho Nacional de Direitos Humanos e de posicionamentos do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU), também foi descumprido um manual de conduta sobre casos de despejo, elaborado pela Ouvidoria Agrária Nacional.

Darci Frigo presidiu o CNDH acumula larga experiência no acompanhamento de questões relacionadas aos direitos humanos no campo. Ele avalia que, em conjunturas de bloqueio ao processo de reforma agrária, a tendência é de aumento dos conflitos:

– O conflito social está colocado: são 13 milhões de desempregados e, nesses momentos, há o retorno ao campo de muitos trabalhadores que tinham ido para as cidades ocupar postos com menor exigência de qualificação profissional. À medida que você tem uma orientação em âmbito nacional de não só não dialogar com os movimentos sociais, mas criminalizá-los e persegui-los, a tendência é que os despejos aumentem muito no país. (Colaborou Alceu Luís Castilho)

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