Paralisação de titulações por Bolsonaro dificulta combate à Covid-19 nos quilombos

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Abertura de novos processos caiu ao menor índice dos últimos dezessete anos sob Bolsonaro, comparando-se com governos Temer e petistas; Conaq relaciona falta de regularização à maior vulnerabilidade das comunidades diante da pandemia

Por Márcia Maria Cruz

O avanço da Covid-19 pelo interior do país está longe de ser a única ameaça enfrentada pelas comunidades remanescentes de quilombos no Brasil. Sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, a regularização fundiária de territórios quilombolas estagnou, aumentando o medo de invasões e despejos durante a pandemia. 

“A falta de titulação deixa as comunidades quilombolas vulneráveis”, explica o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), presidente da Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Quilombolas. “Em vez de combater a Covid-19, eles têm que se preocupar em defender o território. É uma questão grave para os quilombolas no Brasil”.

Em 2019, foram expedidos apenas dois títulos: para os quilombos Invernada dos Negros, em Campos Novos (SC), e Invernada Paiol de Telha, em Reserva do Iguaçu (PR). Em 2020, não foi expedido nenhum. Além disso, o número de processos de titulação para territórios quilombolas abertos pelo no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) despencou para o menor índice dos últimos dezessete anos.

Dados da Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas mostram que foram abertos 16 processos de titulação de quilombos em 2019. Entre janeiro e maio de 2020, apenas um. Os números são bem inferiores à média de 77 novas análises territoriais entre 2016 e 2018, durante o governo Temer, e apenas uma fração dos 148 processos anuais abertos pelo Incra entre 2004 e 2009, durante o governo Lula.

Segundo levantamento da Terra de Direitos, no atual ritmo, o país levaria 1.170 anos até que todos os processos abertos no Incra fossem concluídos. O cálculo não levava em conta a pandemia, que atrasou ainda mais o cronograma.

De acordo com o boletim epidemiológico publicado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), até segunda-feira (13), os quilombos somavam 133 mortes por Covid-19 e 3.465 casos confirmados da doença: “Pará, Rio, Maranhão e Amapá concentram 77% das mortes por Covid-19 em quilombos“.

CHEGADA DE SERGIO CAMARGO À PALMARES PAROU PROCESSOS

A titulação é a consolidação do processo de regularização dos territórios reconhecidos como remanescentes de quilombos. Mas o caminho para alcançar a regularização da terra passa é longo e burocrático. Depois da abertura, que requer a certificação pela Fundação Cultural Palmares, o processo segue para a fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território (RTID).

Sergio Camargo: o comandante de um retrocesso histórico. (Foto: Arquivo Pessoal)

O documento é composto por relatório antropológico, levantamento fundiário, planta e memorial descritivo, cadastro da população quilombola, levantamento de sobreposições e pareceres técnico e jurídico. Após o RTID, a fase seguinte é a emissão de portaria de reconhecimento. Se a área for pública, o processo passa para a titulação. Se a área for particular, entra na fila de análise para o decreto presidencial. Depois, o processo segue para ajuizamento de ação, imissão de posse, homologação de sentença, pagamento de eventuais indenizações e, por fim, a titulação.

Com a chegada de Sérgio Camargo à presidência da Fundação Palmares as certificações foram suspensas. Givânia Maria da Silva, coordenadora da Conaq, analisa o quadro atual:

— Sérgio significa um atraso para política de identificação das comunidades quilombolas. Na campanha eleitoral, Bolsonaro já dizia que não reconheceria terra indígena e não regularizaria terras quilombolas. Mesmo que autorizasse todas as certificações, o Incra está esvaziado. Há um descomprometimento de todo o governo federal com a regularização das terras quilombolas.

SEM TÍTULOS, QUILOMBOLAS FAZEM A PRÓPRIA DEMARCAÇÃO

O apagão de titulações sob o governo Bolsonaro reforça um quadro histórico. Das 1.794 comunidades quilombolas sob análise no Incra de 2003 a 2020, apenas 46 foram tituladas, alcançando a garantia jurídica do território. Destas, 23 receberam títulos parciais. Outras centenas aguardam a retomada dos processos.

Manifestação por titulação em frente do STF: (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

É o caso do Quilombo do Açude, em Jaboticatubas (MG), onde a pandemia suspendeu a execução das etapas previstas para titulação, deixando a comunidade vulnerável, como destaca Flávio José dos Santos, o Cuta, presidente da Associação Quilombola dos Moradores do Açude.

— Com a titulação do Incra, a gente espera a indenização de posse territorial. A gente tem aqui o usucapião. Temos documento do terreno. Brigamos muito para conseguir a posse dele, mas a comunidade quilombola tem que ter a indenização territorial. Não é só o reconhecimento dado pela Fundação Palmares. O mais importante é ter a indenização territorial, que dê para todo quilombo sobreviver da terra. Ter seus filhos e eles se manterem ali sem precisar ir embora, porque a extensão territorial é pouca. Isso é um dever do Incra!

A incerteza sobre a posse dos territórios tradicionais também é vivenciada pelos Kalunga, no nordeste goiano. No início de junho, De Olho nos Ruralistas denunciou o desmatamento ilegal de quase mil hectares dentro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, que rendeu R$ 5 milhões em multas ambientais para fazendeiros da região: “Com correntões, fazendeiros desmatam mil hectares dentro de área quilombola em Goiás“.

Com a demora, os Kalunga se anteciparam ao Incra e realizaram uma ação inédita de autodemarcação, com o georreferenciamento próprio de mais de 262 mil hectares em 39 comunidades nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás.

‘TEMOS DE LIDAR COM UM GOVERNO GENOCIDA’, AFIRMA CONAQ

Sem garantia dos territórios, os quilombolas sofrem com o assédio não apenas do setor privado, mas também do setor público, como no Maranhão, onde mais de duzentas comunidades enfrentam um conflito de décadas com o Estado em decorrência da instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), que ganhou novos contornos após o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) firmado com os Estados Unidos em março de 2019.

No início da pandemia, em março, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República publicou a Resolução nº 11, que estabelece as competências e responsabilidades no âmbito dos órgãos federais para a remoção das comunidades de Alcântara, conforme destaca Danilo Serejo, líder da comunidade Canelatiua:

— Esse conflito se arrasta por longos quarenta anos e a conjuntura atual tem agravado muito a situação, porque o governo federal tem colocado em prática as ameaças de expulsão de mais oitocentas famílias quilombolas do litoral do município para atender os interesses dos Estados Unidos. E isso ocorreu durante a pandemia.  O conflito não só atrapalha no combate à Covid-19, como expõe as comunidades ao risco de morte, uma vez que se pretende expulsá-las no meio de uma pandemia.

A falta de titulação também intensifica problemas estruturais da população quilombola, como a ausência em boa parte dos territórios de serviços de saúde e educação. O acesso ao crédito é outro entrave para o desenvolvimento de atividades de geração de renda nesses territórios. As dificuldades são agravadas pela falta ou acesso precário à internet. Isso impede, por exemplo, o cadastro no auxílio emergencial do governo federal.

Na tentativa de minimizar os efeitos da pandemia, foi aprovado no Congresso o Projeto de Lei (PL) nº 1.142/2020 que estabeleceu medidas de apoio para povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais durante a pandemia. O PL, no entanto, recebeu dezesseis vetos de Jair Bolsonaro, impedindo a inclusão de quilombolas no Programa Nacional de Reforma Agrária (PRNA) e dificultando seu acesso ao auxílio emergencial: “Veto de Bolsonaro obriga povos do campo a se arriscar nas cidades por auxílio emergencial“.

“Nós temos feito o enfrentamento muito difícil, porque temos que lidar com um governo genocida”, afirma Givânia, da Conaq. “Temos que lidar com o abandono do Brasil pelo governo, lidar com ausência de ações para grupos específicos e que têm características diferentes e com o coronavírus, de letalidade alta. Então, você tem, ao mesmo tempo, um conjunto de enfrentamentos para poder sobreviver”.

| Márcia Maria Cruz é jornalista. |

Foto principal (Ruraltins): distribuição de alimentos em quilombo na região do Jalapão, no Tocantins

|| A cobertura do De Olho nos Ruralistas sobre o impacto da pandemia nas comunidades quilombolas tem o apoio da Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo da Google News Initiative ||

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