Municípios onde Vale atua têm mais trabalhadores infectados por Covid-19 em Minas

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Atingidos pela mineração denunciam descaso de governo e empresas durante a pandemia; atividade definida como “essencial” expandiu contágio no Quadrilátero Ferrífero; segundo sindicato, CSN e Ferro Vale nem fazem testes

Por Ísis Medeiros

A pandemia do novo coronavírus atinge os territórios de forma distinta. Fatores como vulnerabilidade social, dependência em um número limitado de atividades econômicas e desigualdade racial tornam mais difícil o combate à Covid-19, impedindo que famílias e comunidades retomem suas vidas.  Na região mineira do Quadrilátero Ferrífero, um dos principais polos minerais e siderúrgicos do país, a pandemia segue a rota da mineração.

Pela mineração, região de Itabira tornou-se foco de surto de Covid-19. (Imagem: MAM)

Segundo levantamento realizado em junho pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) com base em boletins epidemiológicos da Secretaria de Estado de Saúde, a continuidade das atividades da mineradora Vale durante o pico da curva de contágio potencializou a propagação do coronavírus na região.

Ao todo, os 45 municípios abarcados pelo estudo — que concentram 7,4% da população mineira — respondiam, em 22 de junho, por 11,6% de todos os casos confirmados no estado. Em números: 3.362 dos 28.918 casos de Covid-19 em Minas. Dois meses depois, em 26 de agosto, o total de casos nos municípios do Quadrilátero chegou a 17.300 infectados, com 243 óbitos e evidências de subnotificação.

Berço da Vale, Itabira registrou uma explosão de casos após uma testagem em massa da mineradora identificar 188 trabalhadores com Covid-19 — mais da metade dos 361 casos confirmados até então no município. Uma auditoria no complexo revelou que a empresa não cumpria os protocolos de segurança, o que levou à intervenção do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª região (TRT-3), que determinou a paralisação das operações nas minas de Conceição, Cauê e Periquito por doze dias. Desde sua fundação, este foi o maior tempo em que o complexo ficou paralisado.

“Nós já vínhamos apontando como a mineração poderia ser um vetor de propagação do coronavírus devido à forma como ela aglomera os trabalhadores”, afirma Luiz Paulo Siqueira, coordenador estadual do MAM. “Há aglomeração nos pontos de ônibus, nas vans, dentro das minas, nos refeitórios. Os trabalhadores utilizam os mesmos maquinários, ficam em cabines fechadas. Isso proporciona um ambiente favorável para a disseminação do vírus”.

OBRAS DA RENOVA SÃO VETOR DE CONTÁGIO EM MARIANA

Itabira é apenas a ponta do iceberg. Em Congonhas, um dos epicentros do surto em Minas, o número de infectados saltou de 140 para 560 no último mês, segundo dados da prefeitura. Assim como grande parte da região, cuja economia depende quase que exclusivamente da mineração, o município de Aleijadinho não estendeu a quarentena para o setor.

“A previsão do contágio que tínhamos lá atrás está se materializando”, lamenta Rafael Ávila, presidente do Sindicato Metabase Inconfidentes, que atua em Ouro Preto, Congonhas, Belo Vale e Mariana. “Os maiores índices a que tivemos acesso são da Vale, a única que vem fazendo a testagem dos funcionários. A CSN e a Ferro Minas não estão testando”.

Segundo Ávila, tanto estado como municípios tinham ciência do surto, mas evitaram confrontar as mineradoras: “As secretarias de Saúde dos municípios e do estado detêm as informações, mas não fizeram nada para impedir que a doença se alastre, pois estão aparelhadas pelas mineradoras. Estamos fazendo pressão porque isso vai explodir e as cidades não têm um sistema de saúde suficiente para absorver a demanda”.

Agentes fazem desinfecção de ruas históricas de Ouro Preto (MG). (Foto: Ane Souza/Prefeitura de Ouro Preto)

Outro fator que coloca a população em risco é a continuidade das obras de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, e da barragem B1, em Brumadinho. Em maio, a prefeitura de Mariana chegou a interditar as obras da Renova, fundação criada pela Vale para gerir as ações de compensação pelos crimes ambientais, devido à grande movimentação de trabalhadores vindo de fora.

“Mariana, Brumadinho, Ouro Preto, Santa Bárbara, Barão de Cocais, diversas cidades tiveram um grande aumento de casos depois que as mineradoras começam a testar seus trabalhadores”, relata Letícia Oliveira, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). “Em Mariana, o número de casos triplicou”.

De acordo com o boletim informativo mantido pela prefeitura de Mariana, dos 167 casos confirmados no município até 28 de maio, 99 eram de trabalhadores da Vale, da Renova ou de terceirizadas. A informação sobre o local de trabalho, no entanto, foi removida do site ainda em junho.

VALE TRANSFERE DOENTES DO PARÁ PARA MINAS

A difusão da Covid-19 pelo Quadrilátero Ferrífero não era, de modo algum, inesperada. Ainda em abril, mais de cem organizações assinaram um manifesto pedindo a paralisação das mineradoras durante pandemia. O documento criticava ainda a promulgação da Portaria nº 135/GM, de 28 de março de 2020, do Ministério das Minas e Energia, que considerou as atividades ligadas ao setor da mineração como essenciais.

“Se o Estado não tomar logo medidas enérgicas, assim como as realizadas em Itabira, teremos um cenário devastador de colapso do sistema de saúde e um número ainda maior de vidas perdidas”, diz Luiz Paulo, do MAM.

Este colapso já acontece em outras partes do país. Lar da maior jazida de minério de ferro do planeta, o município de Parauapebas, no sudoeste do Pará, tornou-se um símbolo de como as condições insalubres do trabalho nas minas — que favorecem o surgimento de doenças respiratórias — podem servir de gatilho para novos surtos do coronavírus.

Kalil: “Minas é o cemitério preferido da Vale”

Em 10 de abril, duas semanas após a mineração ser reconhecida como atividade essencial, um funcionário da Vale morreu com sintomas de Covid-19. Hoje, o número de mortes em Parauapebas chega a 166, com 24 mil casos confirmados (ou 11,7% da população), segundo última atualização da prefeitura. O número é superior ao de capitais como Belo Horizonte, Florianópolis, Curitiba e Porto Alegre.

Mas o surto não ficou restrito ao município paraense. Com a estrutura hospitalar colapsada, a Vale começou a transferir funcionários de Parauapebas para Belo Horizonte, para receber tratamento médico. A ação gerou revolta na capital mineira. “A Vale decidiu que realmente Minas Gerais é o cemitério preferido dela”, afirmou, em coletiva, o prefeito Alexandre Kalil, em referência aos crimes de Mariana e Brumadinho.

Ao jornal Estado de Minas, a empresa se recusou a especificar quantas pessoas teriam sido transportadas.

CAMPONESES SOFREM EM MUNICÍPIOS AMEAÇADOS POR BARRAGENS 

A circulação de centenas de trabalhadores nas minas deixou de ser a única preocupação nos territórios afetados pela mineração. Em Ouro Preto, Itabirito e Nova Lima, comunidades foram surpreendidas com ações de evacuação devido ao risco de novos rompimento de barragens. Cada um desses municípios possui ao menos uma barragem em alerta máximo.

Segundo as comissões e assessorias de atingidos ouvidas pela reportagem, a população evacuada já soma 1.660 pessoas retiradas a força de suas casas devido ao risco de deslizamentos. As vítimas são, em sua maioria, camponeses, pescadores e membros de comunidades tradicionais, que convivem historicamente com o abandono e o descaso do Estado.

Famílias evacuadas deixam suas casas em Barão de Cocais (MG). (Foto: Ísis Medeiros/De Olho nos Ruralistas)

Em Ouro Preto, 73 famílias dos distritos de Antônio Pereira e Vila Residencial Antônio Pereira (antiga Vila Samarco) foram removidas durante a pandemia. As evacuações aconteceram após a Barragem Doutor, da Mina de Timbopeba, subir para o nível 2, com risco iminente de rompimento.

“No dia da primeira evacuação houve apavoramento das famílias, umas saíram e outras não quiseram sair”, lembra Tacimira Fabiana, moradora de uma das comunidades afetadas. “A Vale não dá informação se elas vão voltar ou não, ela tirou o povo de casa quando a situação estava mais crítica, causando pânico em meio à pandemia”.

Nicólson Pedro, da Comissão de Evacuados em Barão de Cocais, cidade ameaçada desde 2019 pela Barragem Sul Superior, da Mina de Gongo Soco, afirma que a mineradora não está dando nenhuma segurança às populações, duplamente prejudicadas pela mineração e pelo vírus. Ele denuncia que famílias estão sendo forçadas pela Vale a sair das casas alugadas, colocando sua vida em risco:

— A Vale não está se importando com as comunidades evacuadas. O que mais nos irritou nesse momento é que a mineradora tem consciência de que foi a maior responsável pela difusão do vírus aqui nas cidades onde ela atua, a maior parte das pessoas contaminadas são funcionários dela e transmitiram pra outras pessoas. E mesmo assim ela forçou as pessoas a saírem de casa em meio à pandemia.

Segundo boletim da prefeitura de Barão de Cocais, o município contabilizava 353 casos confirmados até o dia 24 de agosto. Destes, 80% teriam sido oriundos de testes rápidos realizados pelas mineradoras da região.

Procurada, a Vale enviou um informativo sobre as atividades realizadas junto às comunidades atingidas, mas não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem. A empresa comunica em suas redes que realiza medidas de enfrentamento à Covid-19, como a testagem rápida, distribuição de máscaras, aferição de temperatura dos empregados, desinfecção e higienização permanente dos postos de trabalho.

A Vale também informou que oferece aos funcionários a oportunidade de transferência temporária para as suas bases de origem durante a pandemia do novo coronavírus e o afastamento dos postos de trabalhos os empregados com doença detectada.

| Ísis Medeiros é repórter e fotógrafa |

Foto principal (Ísis Medeiros/De Olho nos Ruralistas): funcionário caminha em meio à lama de minério, em Itatiaiuçu (MG)

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