Dez produtores de grãos e gado ligados ao Sindicato Rural de Santarém (Sirsan) possuem fazendas nos limites ou dentro da TI Munduruku do Planalto Santareno; indígenas aguardam conclusão do estudo de identificação do território desde 2008
Por Poliana Dallabrida
Indígenas do povo Munduruku do Planalto Santareno, no Pará, vivem espremidos em meio a fazendas de pecuária e monocultivo de soja e milho enquanto aguardam pela identificação e delimitação da área que reivindicam desde 2008. A área nunca saiu do status de “reivindicada” porque a Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma não ter condições financeiras de dar prosseguimento ao processo administrativo de demarcação.
Em meio a pressões do Ministério Público Federal (MPF) para que a Funai retomasse os estudos para delimitação da TI, dez fazendeiros de Santarém acionaram a Justiça, em setembro de 2018, para serem considerados “litisconsortes passivos necessários” na ação movida pelo MPF. Sob a alegação de que possuem propriedades na área reivindicada pelos Munduruku, o grupo de fazendeiros se considerava diretamente afetado pelos resultados futuros da ação.
Os dez proprietários de fazendas nos limites ou dentro da terra indígena são filiados ou próximos do Sindicato Rural de Santarém (Sirsan), que representa proprietários dos municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, na região conhecida como Baixo Amazonas, no Pará. A região oeste do Pará é a terceira mais importante área de produção agrícola do estado.
Segundo Adriano Maraschin, presidente do Sirsan em 2018 e 2019, todos os produtores de soja de Santarém, Belterra e Mojuí estavam autorizados a fornecer para a multinacional Cargill. Só em Santarém são 235 famílias produtoras, com propriedades de, em média, 300 hectares. “Todos os produtores aqui da nossa região são cadastrados na Cargill, que só compra a soja se você não tiver desmatamentos”, afirmou Maraschin em outubro de 2018 em entrevista à a um jornal local, O Impacto.
Dados da plataforma Trase confirmam que toda a produção de soja de Santarém e Mojuí dos Campos em 2017 e 2018 foi vendida e exportada pela Cargill. A multinacional embarcou as 54 mil toneladas produzidas por Santarém e as 70,5 mil de Mojuí dos Campos para China, Espanha, Reino Unido, Holanda, México e França. O município de Belterra produziu 41 mil toneladas, com toda a produção destinada ao consumo doméstico no Brasil.
A atuação da Cargill na região é apontada como um fator decisivo para a migração de fazendeiros de outros estados para o oeste do Pará e o crescimento da produção de soja, conforme apontado em relatório divulgado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pela Amazon Watch, a partir de pesquisa feita pelo De Olho nos Ruralistas e pela Profundo: “Cumplicidade na Destruição III: como corporações globais contribuem para violações de direitos dos povos indígenas da Amazônia Brasileira“.
A multinacional inaugurou um porto graneleiro em Santarém em 2003, acirrando as disputas por terra, grilagem e expansão da soja na região. A área de cultivo de soja no oeste do Pará passou de 85,4 mil hectares, em 2010, para 500,4 mil hectares em 2017, o equivalente a 30% do total da área de lavouras do estado.
FUNAI ATRASA HÁ DOZE ANOS IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TI
Os Munduruku do Planalto Santareno, no oeste do Pará, aguardam desde 2008 pela identificação e delimitação de seu território ancestral. Esta é a primeira etapa do processo de demarcação. Nessa área vivem 607 indígenas, divididos em quatro aldeias: São Francisco da Cavada, Amparador, Ipaupixuna e Açaizal.
Sete anos depois, em novembro de 2015, o Ministério Público Federal (MPF) expediu uma recomendação à Funai para a criação de um grupo técnico responsável por estudos de identificação e delimitação da TI. Em resposta, a autarquia afirmou que não acataria a recomendação pois não possuía corpo técnico ou capacidade de contratação de profissionais para iniciar os estudos de demarcação.
Dez anos depois da solicitação inicial dos Munduruku do Planalto Santareno, em maio de 2018, o MPF pediu que a Justiça declarasse a omissão no atendimento aos indígenas da região por parte da União e Funai, e que a autarquia fosse obrigada a dar início aos estudos de identificação e delimitação da TI.
“A falta de providências por parte da União e da Funai transformou o território no epicentro de uma série de violações de direitos, em grande parte associadas à expansão do monocultivo da soja”, diz trecho da ação do MPF. “Desmatamento, destruição de sítios arqueológicos, assoreamento de igarapés, contaminação do ar, da fauna e da flora por agrotóxicos — inclusive com a morte de animais —, tentativas de grilagem, ameaças e intimidações, entre outros problemas”.
Em outubro de 2018, a autarquia e o MPF homologaram um acordo em que a Funai se comprometia a publicar a portaria de constituição de um Grupo de Trabalho para elaborar um Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), documento necessário no processo de homologação, até 03 de dezembro daquele ano. Pelo acordo, o grupo técnico teria até dois anos para apresentar o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) do território reivindicado pelo povo Munduruku.
Vinte dias após o acordo com o MPF, a Funai publicou a portaria em que constituía o grupo técnico, em outubro de 2018. Após meses sem respostas da autarquia, o MPF recorreu à Justiça para que a Funai apresentasse os resultados preliminares do estudo de identificação e delimitação da TI e promovesse uma segunda a visita a campo solicitada pelos membros do grupo técnico. Entre setembro e dezembro de 2019, a Funai descumpriu três ordens judiciais para promover o estudo de campo, alegando falta de verba.
No último dia útil de 2019, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, alterou a composição do grupo técnico responsável pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID). A decisão foi considerada um entrave ao processo de reconhecimento da TI Munduruku do Planalto Santareno.
Em fevereiro de 2020, atendendo a uma ação movida pelo MPF, o juiz da 1ª Vara Federal Cível e Criminal de Santarém, Domingos Daniel Moutinho, anulou a portaria da Funai. Em abril, o MPF recorreu à Justiça novamente para que a Funai comprove que está dando prosseguimento ao trabalho do grupo técnico. Até o momento, os trabalhos estão suspensos por conta das restrições impostas pela crise da Covid-19 no país.
MEMBROS DO SINDICATO RURAL TENTAM BARRAR DEMARCAÇÃO
Em meio a pressões do MPF para que a Funai retomasse os estudos para delimitação da TI, dez fazendeiros de Santarém acionaram a Justiça, em setembro de 2018, para serem considerados “litisconsortes passivos necessários” na ação movida pelo MPF. Litisconsorte passivo necessário é aquele que tem um interesse em comum com o réu e que será afetado pelas decisões que resultarem da ação.
Ou seja, por possuírem propriedades na área reivindicada pelos Munduruku, o grupo de fazendeiros de Santarém se considerava diretamente afetado pelos resultados da ação. Os dez proprietários de fazendas nos limites ou dentro da TI Munduruku do Planalto Santareno que pediram para serem incluídos na ação são Ildo Valentin Borsatti, Rodrigo Borsatti, Adriano Gabriel Maraschin, Fábio Luis Maraschin, José Maraschin, Ignácio Maraschin, Germano Rene Durks, Francisco Alves de Aguiar e Ivo Luiz Ruaro.
Tanto o juiz da primeira instância, Domingos Daniel Moutinho, quanto o desembargador federal Jirair Aram Meguerian, que julgou o recurso do grupo, em março de 2019, indeferiram o pedido. Impedidos de interferir juridicamente no processo que exigia a condução de estudos da área reivindicada pelos Munduruku, o grupo passou a atuar politicamente para retardar a demarcação.
Ao menos três deles exercem ou já exerceram cargos no Sirsan, criado em junho de 1979. Adriano Gabriel Maraschin foi presidente do Sirsan até janeiro. Metri Nicolau Filho faz parte do conselho fiscal do Sindicato. Entre 2018 e 2019, Rodrigo Borsatti, filho de Ildo Valentin Borsatti, foi presidente da comissão do Sirsan nas áreas de Secretaria, São Francisco da Cavada e Açaizal — duas das quatro aldeias do povo Munduruku.
O produtor de Santarém Fábio Maraschin, associado ao Sirsan, foi homenageado pela prefeitura de Mojuí dos Campos em julho de 2018, pelo “trabalho prestado nos municípios de Santarém, Mojuí dos Campos e Belterra”. À época da premiação, o então diretor de agricultura do Sirsan, Sérgio Schwade, afirmou que Maraschin luta “para que a [sua] propriedade não seja engolida pela área indígena”.
DIRIGENTES POSSUEM FAZENDAS NO TERRITÓRIO MUNDURUKU
Fábio Maraschin é irmão de Adriano Maraschin, ex-presidente do sindicato. Ambos gaúchos, Fábio e Adriano chegaram em Santarém no início dos anos 2000 e adquiriram fazendas para a produção de soja. Adriano é filiado ao PSDB e se candidatou ao cargo de vereador de Santarém em 2012. Próximo do prefeito de Santarém, Nélio Aguiar (DEM), Maraschin é figura recorrente em eventos públicos e visitas de autoridades a Santarém.
A propriedade de Ildo Valentin Borsatti é a mais próxima da vila da TI Munduruku. As famílias Maraschin e Borsatti são apontadas por fontes da região como a mais envolvidas em conflitos com os Munduruku do Planalto Santareno. “A atuação deles dentro da aldeia é a mais violenta possível”, relata Gilson Rego, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Santarém. “Eles ofendem muito as famílias indígenas, chamando-os de preguiçosos, dizendo que eles estão atrapalhando o desenvolvimento e que não são índios”.
Rego afirma que proprietários de fazendas dentro ou próximas da TI costumam querer acompanhar as reuniões indígenas dentro das aldeias. “Eles intimidam as lideranças indígenas e há relatos de ameaças”, afirma. “Eles chegaram até a pedir para fazer parte das associações indígenas das aldeias”.
Procurado pela reportagem, o sindicato não deu retorno até o fechamento da reportagem. Em nota, a Cargill afirmou que não faz parte da ação movida pelo Sirsan e não consta em nenhum dos autos. A empresa informou ter sido um dos principais apoiadores da Moratória da Soja na Amazônia, em que se compromete a não comprar soja de terras desmatadas após 2008. Perguntada sobre a relação com os membros do Sirsan, a empresa não respondeu. Veja a nota da Cargill na íntegra.
EM BRASÍLIA, INTERESSADOS EM TERRAS FORAM RECEBIDOS NA FUNAI
Os produtores locais filiados aos Sirsan possuem acesso direto a autoridades políticas e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em outubro de 2019, Gustavo Hamoy, então Superintendente Regional do Incra no oeste do Pará, se reuniu com produtores rurais no sindicato para falar da regularização fundiária na região, certidões de quitação e das glebas em litígio. Hamoy assumiu a superintendência em julho daquele ano por indicação do deputado federal Júnior Ferrari (PSD).
No dia 05 de setembro de 2019, Ferrari recebeu os vereadores Alaércio Cardoso (Patri), Chiquinho (PSDB), Rogélio Cebuliski (PSB), o proprietário santareno Metri Nicolau Filho e Adriano Maraschin, então diretor do Sirsan, em uma reunião no gabinete do presidente da Funai em Brasília. O grupo se reuniu com a diretora de Proteção Territorial, Silmara Veiga de Souza Celestini Montemor, para falar da “proliferação de grupos e territórios étnicos no município de Santarém”.
De setembro a dezembro de 2019, a Funai descumpriu três acordos com o MPF para promover a etapa final do estudo de campo para homologação da TI Munduruku do Planalto Santareno. O argumento era a falta de verba para a retomada do trabalho do grupo técnico.
No último dia útil de 2019, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, assinou a portaria 1.536/2019 que alterou a composição do grupo técnico responsável pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID). Xavier é um dos personagens da série Esplanada da Morte, publicada pelo observatório para retratar o papel de figuras importantes do governo Bolsonaro no genocídio em curso.
O texto da portaria apresentava um novo cronograma de trabalho, destituindo a coordenadora do GT, Katiane Silva. Professora do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). com doutorado no Museu Nacional, Katiane foi substituída à época por uma servidora recém-empossada, sem experiência ou pós-graduação na área.
Em nota, o Conselho Indígena Munduruku e Apiaká do Planalto Santareno questionou os motivos da mudança: “A mudança da equipe nos parece uma manobra usada para atrapalhar o estudo do nosso território”.
ÁREA EM DISPUTA COM INDÍGENAS TÊM CADASTROS SOBREPOSTOS
Em janeiro de 2018, havia 101 Cadastros Ambientais Rurais (CARs) sobrepostos à área de 12,2 mil hectares reivindicada pelos Munduruku do Planalto Santareno. Para o MPF, essa centena de cadastros sobrepostos por quase toda a área da TI indicam possíveis pretensões de titulação ou grilagem de terras. O CAR é autodeclarado e precisa apenas ser validado em órgãos ambientais, sindicatos ou mesmo por escritórios especializados.
A área reivindicada pelos indígenas fica nas localidades Gleba Federal Ituqui e Antiga Concessão de Belterra. De acordo com o informações repassadas ao MPF pelo Incra, há dois imóveis dentro da terra indígena: Fazenda Campo Verde, com 49,5 hectares, e Sítio Vasconcelos, com 23,4 hectares. Há, ainda, oito imóveis rurais com pedido de regularização em aberto junto ao órgão.
O banco de dados do programa Terra Legal informa que há seis propriedades (Sítio Vasconcelos, Sítio São Benedito, Fazenda Ruaro, Fazenda Campo Verde, Fazenda Pica-Pau Amarelo, Fazenda Planalto Joia) e nove posses pendentes de titulação que incidem sob o território reivindicado.
A área demarcada também está sobreposta parcialmente a três comunidades quilombolas em processo de estudo: Murumuru, Murumurutuba e Tiningu. Não há impasse entre os grupos.
POVO MUNDURUKU DENUNCIA AMEAÇAS E PERSEGUIÇÕES
Cercados por propriedades de soja, milho, sorgo e fazendas de pecuária, os indígenas Munduruku do Planalto Santareno são alvo constante de ameaças por fazendeiros e grileiros da região. Além do desmatamento e assoreamento de igarapés, eles relatam que a pulverização aérea de agrotóxicos nos monocultivos vizinhos das comunidades contamina nascentes de água, cultivos tradicionais e os próprios moradores. Dores de cabeça e náusea são os sintomas mais comuns.
Em agosto de 2019, o MPF entrou com uma ação para investigar o assoreamento e a contaminação por pesticidas do Igarapé do Açaizal, principal corpo hídrico do território Munduruku do Planalto Santareno.
Em novembro de 2018, uma comitiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) foi à aldeia Açaizal, uma das mais afetadas pelo desmatamento e pelo avanço da soja. A comitiva foi ameaçada por fazendeiros da região, que queriam interromper a reunião com os indígenas.
Um dos líderes indígenas foi impedido de gravar o momento em que sojicultores cercaram a comissão. O homem que agride quem gravava a situação é o engenheiro agrônomo Sérgio Schwade, atual presidente do Sindicato e dono da Fazenda Horizonte. Em agosto de 2018, Schwade havia sido eleito “Agricultor do Ano” pelo sindicato.
As intimidações à comitiva também partiram de Edward Luz, conhecido como o “antropólogo dos ruralistas“. Luz ganhou repercussão nacional ao ser preso após tentar impedir uma fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) dentro da TI Ituna Itatá, próximo de Altamira, no Pará, em fevereiro de 2019.
Luz presta consultoria para o Sirsan e proprietários de fazendas que incidem na área reivindicada pelos Munduruku desde 2018. Sua função é contestar os laudos antropológicos do processo de demarcação e fabricar laudos que beneficiem a narrativa dos fazendeiros da região.
Expulso da Associação Brasileira de Antropologia em 2013, Luz é apoiador declarado do presidente Jair Bolsonaro e afirma que há uma “proliferação de grupos étnicos” em Santarém. Em 2019, chegou a ser cotado para ser o número dois no comando da Funai.
| Poliana Dallabrida é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Arthur Massuda/Cimi): desmatamento e soja avançam na TI Munduruku do Planalto Santareno