STF recua e suspende decisão que inviabilizava demarcação de terra indígena no MS

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Em ação rescisória, ministros confirmam por unanimidade o direito da comunidade Guyraroká, em Caarapó, de se defender diretamente perante à Justiça, sem a necessidade de qualquer tutela da Funai; área foi declarada em 2009 e aguarda homologação

Por Leonardo Fuhrmann

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade, em uma ação rescisória, suspender os efeitos de uma decisão que inviabilizava a demarcação da Terra Indígena Guyraroká, em Caarapó (MS), onde vivem cerca de 500 Guarani Kaiowá. A área havia sido declarada território ancestral da comunidade em 2009, pelo Ministério da Justiça, durante a gestão de Tarso Genro, no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

A declaração é o passo posterior à conclusão do estudo antropológico feito pela Funai, depois de encerrada a possibilidade de contestação administrativa ao relatório feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Ainda é necessária a homologação do presidente da República para que o local seja oficialmente declarado terra indígena. O presidente Jair Bolsonaro afirmou reiteradas vezes que não fará nenhuma demarcação durante o seu mandato, “nem um centímetro a mais”.

A decisão que extinguia o processo de demarcação do território foi tomada em recurso de um mandado de segurança apresentado pelo fazendeiro Avelino Antonio Donatti, que ocupa a área. A decisão favorável ao latifundiário foi dada pela 2ª Turma do STF, em 2014, a partir de voto divergente do ministro Gilmar Mendes, com base no marco temporal, matéria que ainda não foi analisada com repercussão geral pelo tribunal. Votaram com ele os ministros Carmen Lúcia e Celso de Mello. O relator Ricardo Lewandowski havia negado o recurso e Teori Zavascki havia se declarado impedido.

Defendida pelos ruralistas, a tese é que os indígenas só têm direito aos territórios que ocupavam quando foi promulgada a Constituição Federal de 1988. Organizações indígenas e de direitos humanos contestam esta visão, pois consideram que o direito dos indígenas à terra é anterior à formação do Estado brasileiro e que o Marco Temporal legitima a expulsão, muitas vezes violenta, dos povos de seus territórios tradicionais.

Entenda aqui a questão do Marco Temporal:

DECISÃO DERRUBADA USOU CRITÉRIO DO MARCO TEMPORAL

Ao entrarem com a ação rescisória, os advogados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) não contestam diretamente o uso do Marco Temporal. Como explica o advogado Rafael Modesto dos Santos, esse tipo de ação precisa demonstrar que houve um “erro material” na decisão anterior para propor sua anulação. No caso, os advogados apontavam como falhas da decisão o fato de a comunidade indígena não ter sido notificada para apresentar sua defesa, o Ministério Público não ter chamado a se manifestar em relação a um direito coletivo e erro na interpretação do laudo antropológico que permitia o entendimento de que os Kaiowá não estavam na área na data da promulgação da Constituição.

O mandado se segurança foi impetrado contra a Funai, sem que essas outras partes tivessem sido ouvidas no andamento processual. Os advogados do Cimi afirmam que a jurisprudência do tribunal é contrária a decisões complexas, como a análise de um laudo antropológico, na análise de um mandado de segurança.

A ação, iniciada em 2018, havia recebido os votos contrários do ministro Luiz Fux, relator, e da então presidente, Carmen Lúcia. A votação foi suspensa por um pedido de vistas do ministro Edson Fachin e retomada no mês passado, no plenário virtual. Fux e Carmen Lúcia reformaram seus votos e passaram a ser favoráveis ao pleito da comunidade Guyraroká, assim com Fachin, que apresentou sua posição favorável aos indígenas.

Os votos foram acompanhados por todos os demais ministros e a votação foi encerrada na noite desta quarta-feira (07). Com a decisão, a demarcação da terra ainda não volta a ter sua tramitação retomada, mas é um primeiro passo para que isso aconteça.

Fachin aceitou o argumento dos advogados de Guyraroká, que afirmam que a Constituição de 1988 garante o direito dos indígenas de acesso à Justiça. Com isso, os membros da comunidade precisam ser tratados como parte, uma vez que seus direitos não mais são tutelados pela Funai. Tal participação também está prevista em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Apoiado no mesmo artigo, e em parecer da Procuradoria-Geral da República, Fachin entendeu que o Ministério Público também deveria ser chamado a se manifestar, pois envolve um direito coletivo.

INDÍGENAS TINHAM PRESENÇA INTERMITENTE NO TERRITÓRIO

Sazonalidade do trabalho nas fazendas impediu ocupação constante do território. (Foto: Reprodução)

No memorial, os advogados do Cimi contestavam ainda a conclusão de que os indígenas não estavam na terra na época da promulgação da Constituição. Como explica o antropólogo Levi Marques Pereira, professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), apesar de não terem a posse formal da terra, os Kaiowá continuavam frequentando seus territórios sagrados e fazendo neles seus rituais tradicionais:

— Essa presença, após a expulsão, a presença deles na terra indígena passou a ser intermitente, mas sempre frequente. Por conta da própria sazonalidade das possibilidades de trabalho nas fazendas, eles não conseguiam estar sempre lá, mas buscavam essa permanência, dentro das limitações impostas.

Erileide Domingues, neta do cacique da TI Guyraroká, afirma que a decisão foi um novo primeiro passo para a comunidade. “A decisão não garante o que mais precisamos, que é o nosso território, mas cria condições para que o processo de demarcação tenha prosseguimento “, diz.

| Leonardo Fuhrmann é repórter do De Olho nos Ruralistas |

Foto principal (Guilherme Cavalli/Cimi): decisão pode ser sinal em relação à questão do Marco Temporal

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