Bolsonarista Gladson Cameli é o autor do PL 225/2020, que atinge o Complexo do Rio Gregório, em Tarauacá (AC), onde o apresentador do SBT possui um latifúndio de 200 mil hectares; proposta é criticada por ambientalistas, extrativistas e indígenas
Por Mariana Franco Ramos
Sócio da madeireira Marmude Cameli desde 1997, o governador do Acre, Gladson Cameli (PP-AC), pretende regularizar a exploração de florestas públicas por empresas privadas. O Projeto de Lei (PL) nº 225/2020, em tramitação na Assembleia Legislativa (Aleac), atende aos interesses do setor que ele representa. Por outro lado, vai na contramão do que defendem organizações de extrativistas e povos indígenas, que preveem sérios impactos socioambientais.
O texto atualiza as normas para processos de concessões em áreas naturais protegidas que estejam sob a gestão do estado. As terras elegíveis estão descritas no Plano Anual de Outorga Florestal 2020 e atingem o Complexo de Florestas Estaduais do Rio Gregório, formado pelas Florestas Estaduais do Mogno, do Rio Gregório e do Rio Liberdade. Ele fica no município de Tarauacá (AC), entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, região de notória tensão indígena e de disputa com posseiros.
É por ali que o apresentador de televisão Carlos Roberto Massa, o Ratinho, possui duas fazendas, de quase 200 mil hectares. Coincidentemente, ele também já disse, em entrevista a Amaury Júnior, da Band, que pretende explorar madeira no local e que só não o fez ainda por falta de parceiros. “Tenho autorização para tirar dentro da lei”, afirmou.
De Olho nos Ruralistas publica uma série de reportagens sobre o apresentador. A primeira foi sobre o histórico de conflitos agrários dele e da família: “Ratinho, o fazendeiro (I) — Apresentador e família promovem despejos há pelo menos 18 anos“. A segunda, sobre a Paranacre, seu enorme latifúndio na Amazônia: “Ratinho, o fazendeiro (II) — Paranacre se apossou de terras ‘com os índios junto‘”.
EMPRESA DE CAMELI BRIGA HÁ 30 ANOS CONTRA INDENIZAÇÃO PARA OS ASHANINKA
A empresa de Cameli briga na Justiça há cerca de trinta anos contra o pedido de indenização dos Ashaninka, etnia que vive na fronteira do estado com o Peru. Os indígenas foram vítimas da companhia nos anos 80, na chamada segunda ocupação do Acre.
Segundo pesquisa do Instituto Socioambiental (ISA), mais de um quarto da Terra Indígena (TI) Ashaninka, identificada em 1994 e homologada em 2000, sofreu com a atividade madeireira intensiva, afetando profundamente a vida dos povos originários. Este observatório tratou do tema durante as eleições de 2018: “Candidato ao governo do Acre tem empresa acusada de retirar madeira de área indígena“.
Ambos aliados de Jair Bolsonaro, Cameli e Ratinho possuem em comum a ligação com emissoras de rádio e televisão. O apresentador é dono da Rede Massa, afiliada do SBT no Paraná e que ajudou a eleger seu filho, Ratinho Jr., ao governo do Estado. Já Gladson é primo de James Cameli, filho do ex-governador Orleir Cameli e proprietário do Sistema Juruá de Comunicação, também associado ao SBT.
SECRETÁRIO FOI BUSCAR APOIO DE TEREZA CRISTINA EM BRASÍLIA
De acordo com a Secretaria de Meio Ambiente do Acre (Sema), 430.591 hectares estão elegíveis para a concessão. Quase o tamanho do Distrito Federal. O mesmo PAOF descreve que no complexo residem mais de 800 famílias, identificadas pelo Instituto de Terras do Acre (Iteracre). O governo lançou no dia 23 de junho uma consulta pública sobre o PAOF 2022.
O PL foi encaminhado à Assembleia no final de 2020 e tem avançado pelas comissões da Casa. Antes disso, em março, o secretário de Meio Ambiente, Israel Milani, foi a Brasília para fazer “as articulações necessárias”. Conforme a Agência de Notícias do Acre, ele se reuniu com a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, que garantiu “total apoio” do Serviço Florestal Brasileiro (SFB).
“Buscamos junto ao SFB o apoio técnico, principalmente na fase de análise das propostas”, afirmou. “Como eles têm expertise de dez anos e é a primeira vez que a gente trabalha com esse modelo, é importante essa parceria”.
Para Milani, a iniciativa alia “a conservação das florestas com o desenvolvimento econômico e humano das comunidades”. Ele diz que a concessão vai gerar mais de R$ 10 milhões de receita anual e que “o estado todo” será beneficiado com emprego e renda.
CAMELI, HANG E BOLSONARO PROMOVERAM AGLOMERAÇÃO EM PONTE
Cameli vem se mostrando um dos governadores mais próximos de Jair Bolsonaro. Em outubro de 2020, durante reunião na capital federal, o presidente garantiu “total apoio” para obras no Acre. “Feliz em rever o amigo Gladson”, comentou. Na sequência, o acreano convidou o presidente para a inauguração da ponte do Abunã, sobre o Rio Madeira, que liga o Acre a Rondônia.
Bolsonaro compareceu à solenidade, no dia 07 de maio, em Porto Velho, sem máscara, contrariando as recomendações sanitárias de combate à Covid-19. Ele posou para fotos ao lado de Cameli e do dono da Havan, Luciano Hang.
A situação levou o Ministério Público Federal (MPF-AC) e o Ministério Público do Acre (MP-AC) a encaminharem uma representação, com pedido de responsabilização da comitiva presidencial, ao o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, por crimes contra a saúde pública.
“NÃO É MANEJO FLORESTAL, É MANEJO MADEIREIRO”, ALERTA AMBIENTALISTA
Membros da sociedade civil destacaram, em audiência pública promovida no mês passado, a necessidade de aprimorar a proposta antes de votá-la. “É necessário incluir dispositivos de controle legal e de incentivos para participação de cooperativas e associações”, afirmou Moacyr Silva, do WWF-Brasil.
A Floresta do Rio Liberdade faz divisa com a TI Rio Gregório, onde vivem moradores de sete aldeias das etnias Yawanawá, Kaxinawá e Katukina-Pano. A secretária executiva da Comissão Pró-Índio do Acre, Vera Olinda, reforça que os impactos precisam ser considerados: “A base deve ser o direito de consulta das comunidades e os princípios do direito ambiental. A distribuição dos benefícios deve ser definida para evitar que empresas lucrem e as comunidades não tenham benefícios”.
O advogado Gomercindo Rodrigues, integrante do Comitê Chico Mendes, diz que o PL vai impactar drasticamente as populações, uma vez que não existem florestas públicas desocupadas. “As populações foram deslocadas de seus lugares de moradia para as proximidades dos locais de acesso, beira de estrada ou ao longo dos rios que dão acesso a essas moradias”, afirma. “O projeto deles é deslocar essas pessoas, com prolongamento para dentro da área da floresta, mas só um pedaço”.
Ele questiona o que será feito com os animais e a fauna. “Vão usar fone de ouvido para não ouvir o barulho das máquinas e continuar de boa?” Para Gomercindo, não existe nenhum projeto de exploração madeireira sustentável a longo prazo. “Quando você derruba uma árvore na floresta e ela cai, quebra o que tem embaixo, inclusive as plantas novas, que estão nascendo, e causa uma destruição enorme”.
O advogado critica o argumento de que a iniciativa evitaria “invasões”: “Já que o bandido está dentro do banco com o dinheiro dentro dos malotes, esperando autorização para sair, então vamos dar a autorização?” Ele argumenta que estão legalizando uma ilegalidade já cometida. “Fizeram um monte de coisa errada antes, aprovam a lei e rapidinho fazem as concessões. Aí pronto. Vamos para a parte da devastação?”
O ambientalista teme que, a exemplo do que ocorreu no passado, os moradores virem mão de obra e sejam silenciados: “Como empregados dos concessionários, vão receber salários e, quando perceberem o que aconteceu, não terá mais jeito”. Seringueiros e ex-seringueiros que viviam da coleta da borracha ainda moram no território e hoje retiram plantas medicinais, resina e óleos. Gomercindo reforça que não se trata de manejo florestal, e sim madeireiro. “Tem manejo só no nome”.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Divulgação): Aldeia Nova Esperança, nas nascentes do Rio Gregório, pode ser afetada por projeto
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