Região possui 15 dos 27 movimentos com nome e protagonismo direto de mulheres, conforme levantamento do De Olho nos Ruralistas; articulação no setor da pesca começou nos anos 70; catadoras de mangaba valorizam as tradições e a preservação do território
Por Nanci Pittelkow
Dos 27 movimentos do campo com nome e protagonismo feminino identificados pelo De Olho nos Ruralistas, 15 estão no Nordeste. Eles estão em todos os biomas da região e em diversas atividades. O observatório divulgou em março uma lista inédita das organizações que levam as mulheres no próprio nome: “Brasil tem pelo menos 27 movimentos de camponesas“.
A Rede Mulher do Território Sertão do São Francisco reúne comunidades do município do Remanso (BA). A Articulação Pacari de Plantas Medicinais do Cerrado, ou simplesmente as Raizeiras do Cerrado, opera em seis estados, dois deles nordestinos: Bahia e Maranhão. No Sergipe, as catadoras de mangaba iniciaram neste século uma articulação inédita.
Outros movimentos de âmbito nacional têm suas raízes na região, como é o caso da Articulação Nacional de Pescadoras. Ela foi fundada em 2006, mas suas origens remontam à luta de pescadoras artesanais nos anos 70 em Pernambuco. O Movimento de Mulheres Camponesas (MCM) tem tentáculos em várias regiões do país, mas incorporou também o antigo Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE).
Confira abaixo a lista com os movimentos de camponesas e sua abrangência regional:
CATADORAS DE MANGABA AUMENTAM RENDA E LUTAM POR RESEX
As catadoras de mangaba do Sergipe conseguiram valorizar seu produto e sua atividade ao sair do trabalho individual e fortalecer a organização coletiva. Fundado em 2007, o Movimento das Catadoras de Mangaba de Sergipe (MCM) reúne hoje mulheres de sete municípios, cada um com uma associação local, somando quatro unidades de beneficiamento, além de desenvolver um programa de capacitação das mulheres e a regularização dos produtos. A primeira dessas organizações, criada em 2008, foi a Associação das Catadoras de Mangaba de Indiaroba (Ascamai).
Antes do processo associativo, o extrativismo da mangaba, fruta nativa e símbolo do Sergipe, sempre foi uma prática tradicional e cultural das mulheres extrativistas do estado, de forma individualizada ou familiar. A venda dos frutos colhidos, medidos por litro e sem nenhum beneficiamento, rendia muito pouco em dinheiro. Muitas vezes o excedente era trocado por outras frutas e produtos agrícolas nas feiras. “Com a valorização dos produtos nós garantimos preços melhores e vendemos polpas, bombons”, conta Alícia Santana Salvador, coordenadora do MCM.
Em 2002, a partir do contato com pesquisadores e acadêmicos, algumas mulheres passaram a identificar ameaças ao seu modo de vida e à garantia do território. “Com o avanço desordenado do turismo e a especulação imobiliária, em breve não teremos mais mangaba”, explica Alícia, lembrando que cerca de 5 mil famílias dependem do fruto.
O MCM já conseguiu o reconhecimento das catadoras por meio de uma lei estadual, mas elas continuam a luta para criar uma Reserva Extrativista (Resex) para preservar as mangabeiras no sul do estado, evitando o assédio empresarial às famílias. “Se a gente não garantir o território, algumas pessoas da comunidade não conseguem ver o dinheiro e não vender suas terras”, conta Alícia.
Ela vê algo específico na luta das mulhres:
— Não é só aqui no Sergipe. As mulheres são mais conscientes na defesa de seus meios. Os homens são mais quietos e aceitam algumas propostas que não valem a pena.
PESCADORAS COMBATEM MACHISMO ESTRUTURAL DESDE OS ANOS 70
A Articulação Nacional das Pescadoras (ANP) surgiu em 2006, para defender direitos específicos relativos à saúde, contra a violência de gênero e obter garantias trabalhistas. Mas a briga é mais antiga. Ao longo da história, as mulheres que exerciam a atividade da pesca não eram reconhecidas e não tinham direito de atuar nas colônias de pescadores.
Nos anos 70, a freira Maria Nilza de Miranda Montenegro juntou as mulheres em Itapissuma (PE) e a situação começou a mudar, quando as primeiras mulheres do município obtiveram carteiras de pesca. “Para enfrentar o machismo eu saí candidata na colônia”, lembra Joana Mousinho, da ANP de Pernambuco. Em 1989, ela foi a primeira mulher a presidir uma colônia de pescadores.
A pescadora conta que mulheres casadas não tinham direito à aposentadoria, apenas pensão quando viúvas. Com a luta do movimento, em 1993 todas as pescadoras passaram a ter esse direito. Joana Mousinho também participa na conscientização contra a violência doméstica. Ela mesma já foi vítima de violência de companheiros anos atrás.
Desde 2019, a ANP tem atuado para ampliar os pescadores a serem indenizados pelo desastre ambiental com a mancha de óleo que atingiu nove estados do Nordeste, o Espírito Santo e o Rio de Janeiro. Em audiência no Conselho Nacional de Saúde, Joana reclamou da burocracia e da insuficiência do auxílio dado pelo governo federal:
— Uma pescadora me contou que estava vendendo ostra na praia e perguntaram para ela: “Qual o tipo de óleo usado nessa ‘porcaria’?”. Ela voltou para casa humilhada, tendo que pedir carona por não ter dinheiro nem para o ônibus.
CONFIRA PROGRAMA EM VÍDEO SOBRE O PROTAGONISMO FEMININO NO CAMPO
O De Olho na Resistência, programa semanal do observatório sobre os povos do campo, retratou o tema do protagonismo feminino em uma de suas últimas edições. A apresentação é da historiadora Luma Prado, com roteiro e edição elaborados também pela equipe do De Olho nos Ruralistas:
Confira:
| Nanci Pittelkow é jornalista.|
Imagem principal (CREA-SE): catadoras de mangaba lutam por criação de Reserva Extrativista que preserve seu extrativismo tradicional
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