Pandemia agrava situação de marisqueiras e pescadores no Ceará

In De Olho na Comida, De Olho nos Conflitos, Em destaque, Principal, Últimas
Famílias do litoral cearense foram afetadas pelo isolamento social e o fechamento das feiras livres com a pandemia. (Foto: Codevasf)

Ainda se recuperando do derramamento de óleo em 2019, comunidades relatam problemas para vender o pescado; sem receber sequer o seguro-defeso, mulheres voltam a depender dos companheiros e de doações para sobreviver

Por Mariana Franco Ramos

Maria Eliene Pereira, a Maninha, de 50 anos, olha para um dos seus sete filhos e diz: “Hoje não tem. A gente vai ter que se virar”. Moradora da comunidade de Jardim, em Fortim, no litoral cearense, ela perdeu não só a renda, de cerca de R$ 300 semanais, que tirava da venda de pescado, como também o acesso direto ao alimento, ainda em 2019.

No fim de agosto do ano passado, manchas de óleo atingiram o Nordeste e dois municípios do Sudeste (Espírito Santo e Rio de Janeiro), contaminando praias e rios, como o Jaguaribe, que banha a região. A origem do desastre ambiental ainda é incerta.

De acordo com a Defensoria Pública do Ceará, a já frágil situação em muitas das mais de trezentas comunidades pesqueiras do estado se agravou com a pandemia de Covid-19. “O que mais chega são denúncias de segurança alimentar”, resume a ouvidora geral do órgão, Antônia Mendes de Araújo, que relata também preocupação com o acesso à saúde e com a circulação nos territórios.

Desastre ambiental atingiu praias de nove estados do Nordeste e de dois do Sudeste. (Foto: Adema/Governo de Sergipe)

Não há dados concretos sobre os atingidos, nem tampouco sobre infectados com o novo coronavírus, mas a estimativa é de que ao menos 15 mil pessoas tenham de alguma forma sofrido com as consequências do derramamento de petróleo nos quase 600 quilômetros da zona costeira cearense. Após o fechamento das feiras livres e do comércio em geral, em março de 2020, ficou ainda mais difícil escoar a produção.

“Estávamos com todo o problema de rejeição, de ninguém querer comprar o nosso pescado”, conta Maninha. “Aí fechou tudo e piorou”. Integrante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras (MPP) e da Articulação Nacional das Pescadoras do Brasil (ANP), ela explica que ficou sem os R$ 1.996 anunciados pelo governo federal em decorrência do óleo, e que nunca recebeu o seguro-defeso. Para ter direito aos benefícios é necessário dispor do Registro Geral de Pescador Profissional (RGP), raridade entre as mulheres do Jardim.

MULHERES PERDERAM AUTONOMIA FINANCEIRA

Há cinco meses, a marisqueira sobrevive com os R$ 600 mensais do auxílio-emergencial e de doações. Entretanto, se mostra mais preocupada com as amigas da comunidade, que enfrentam “problemas maiores” em suas famílias: “Muitas têm três, quatro filhos e nada dentro de casa para dar”, comenta. “Pelo menos os meus já são adultos”, prossegue. “Peço desculpas por me emocionar. É que é muito difícil falar”.

Garantir a autonomia das mulheres é um dos objetivos — e também motivo de orgulho — do MPP e da ANP. Com o agravamento da crise, porém, conta Maninha, cresceu o número de trabalhadoras que voltaram a depender de seus namorados ou maridos, tanto no Ceará como nos demais estados do Nordeste:

— Muitas de nós tomamos conta da casa sozinhas. É uma grande perda. A gente fica sem autonomia financeira, sem ter como se manter. E aquelas que têm companheiro reclamam de ter que ficar pedindo, de eles não passarem dinheiro. A gente quando ganhava nosso dinheiro com o nosso marisco não passava por isso.

Na avaliação da educadora popular Camila Batista, do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), o recorte de gênero é importante porque as mulheres são as mais impactadas e invisibilizadas “nesse cenário de sucateamento dos recursos pesqueiros”, agravado pela chegada de grandes empreendimentos às comunidades. “As pescadoras são em grande parte as responsáveis pelas famílias e por manter o equilíbrio da renda familiar”, explica.

PARA DEFENSORIA, CESTAS DO GOVERNO SÃO INSUFICIENTES

A defensora pública Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas, conta que tem trabalhado junto ao governo estadual na perspectiva de assegurar fornecimento de cestas básicas e questões similares, como merenda escolar. “Houve distribuição de cestas, mas elas são insuficientes, porque a pandemia é em longo prazo e as comunidades já estavam afetadas desde o derramamento de óleo”.

Fechamento de feiras e comércios dificultou escoamento dos pescados. (Foto: Divulgação/Terramar)

Segundo a defensora, a preocupação quanto à circulação nas comunidades também é grande, principalmente com a reabertura do comércio. “Vamos observar o retorno de perto para que não se comprometa as questões sanitárias”. Além das poucas ações governamentais, as comunidades informam que recebem apoio do CPP, ligado à Igreja Católica, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Terramar.

Embora os moradores relatem a existência de casos e de mortes, a Defensoria diz não haver números oficiais sobre a Covid-19 entre os povos tradicionais, nem recortes nos boletins das secretarias de Saúde. Em março, o CPP lançou um observatório, reunindo ativistas e pesquisadores, para monitorar o avanço do coronavírus nas comunidades pesqueiras de todo o Brasil.

Os dados são agrupados em um boletim diário e um boletim epidemiológico semanal, que ficam disponíveis no site da organização. O mais recente deles, publicado no dia 05, mostra 52 óbitos acumulados, sendo 15 de indígenas e um de quilombola, em todo o país.

Conforme Camila Batista, a ideia é observar e avaliar também impactos socioeconômicos e socioambientais, para incidir junto às autoridades de saúde, governos e Justiça. O abastecimento, contudo, depende do envio de informações por parte dos próprios pescadores.

Maninha faz um alerta e um pedido: “Que não nos silenciem mais. Que nosso grito possa ir além e que as pessoas possam saber o que os povos tradicionais estão passando”. Ela garante que seguirá resistindo. “A gente tem que jamais desistir. É respirar, sofrer, mas lutar e estar sempre na ativa”.

GOVERNO DESTACA AUXÍLIOS, QUE NÃO CHEGAM A TODOS

A reportagem questionou a Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP), do Ministério da Agricultura (Mapa), sobre quais medidas foram tomadas para minimizar os efeitos do derramamento de óleo e da pandemia junto às comunidades tradicionais brasileiras, especialmente aquelas que ficaram sem renda.

Em nota, a pasta citou apenas o pagamento do auxílio emergencial pecuniário de R$ 1.996, que atinge “65 mil pescadores profissionais artesanais inscritos e ativos no RGP”, e do auxílio emergencial de R$ 600. Como relatou a marisqueira, a ausência da documentação impediu que muitas famílias recebessem o benefício após o desastre ambiental de 2019.

“Mais da metade da população brasileira foi beneficiada direta ou indiretamente pelos efeitos do auxílio emergencial”, diz o Mapa. “O programa se consolidou como uma das principais políticas públicas aplicadas pelo governo federal no combate os efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus”.

O ministério afirma ainda que os pescadores que atendem aos critérios estabelecidos estão sendo beneficiados, “exceto aqueles que fazem jus de algum benefício, seguro-defeso, por exemplo, em data concomitante com o pagamento do auxílio”.

De Olho nos Ruralistas também procurou as Secretarias do Desenvolvimento Agrário (SDA) e do Desenvolvimento Econômico e Trabalho (Sedet) do Ceará, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem.

Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas |

Foto principal (Divulgação/Codevasf): pescadoras temem perda da soberania alimentar e da segurança nutricional

LEIA MAIS:
Do óleo à Covid-19: quilombolas veem cenário “alarmante” no litoral nordestino

|| A cobertura sobre segurança e soberania alimentar durante a pandemia tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil ||

You may also read!

Prefeito de Eldorado do Sul terraplanou terreno em APA às margens do Rio Jacuí

Empresa em nome de sua família foi investigada pelo Ministério Público após aterrar área de "banhado" da Área de

Read More...

Expulsão de camponeses por Arthur Lira engorda lista da violência no campo em 2023

Fazendeiros e Estado foram os maiores responsáveis por conflitos do campo no ano passado; despejo em Quipapá (PE) compõe

Read More...

Estudo identifica pelo menos três mortes ao ano provocadas por agrotóxicos em Goiás

Pesquisadores da Universidade de Rio Verde identificaram 2.938 casos de intoxicação entre 2012 e 2022, que causaram câncer e

Read More...

Leave a reply:

Your email address will not be published.

Mobile Sliding Menu