De Olho nos Ruralistas mapeou as indicações políticas no órgão, do Centrão à bancada ruralista, e a capitalização do Titula Brasil, que libera a venda de lotes em terras públicas; relatório é o segundo da série do observatório sobre governo Bolsonaro e questão agrária
Por Alceu Luís Castilho e Bernardo Fialho
O governo Bolsonaro loteou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) entre parlamentares de origem bolsonarista, do Centrão e da bancada ruralista. Os mesmos deputados e senadores que indicaram os diretores e superintendentes regionais utilizam-se da máquina pública — especialmente capitalizando o programa Titula Brasil — para suas campanhas nos estados.
Esse é um dos principais temas do segundo relatório da série Dossiê Bolsonaro, iniciada na semana passada pelo De Olho nos Ruralistas: “Incra vira Máquina de Votos“. O primeiro relatório foi sobre os conflitos de interesses envolvendo a família Bolsonaro no Vale do Ribeira, em São Paulo: “O Presidente das Bananas“. Você pode acessar o relatório sobre o Incra aqui.
As cerimônias de distribuição de títulos seguem um roteiro: políticos locais se enfileiram ao lado de deputados, ministros e senadores, todos reivindicando algum tipo de paternidade sobre os títulos de propriedade (disfarçados de um programa de reforma agrária) entregues às famílias; ao fim, todos posam sorridentes para a foto oficial.
Desde o início de 2021, as cerimônias do Titula Brasil, programa de regularização fundiária do governo federal, tornaram-se uma importante ferramenta de campanha eleitoral, sobretudo para os caciques partidários que comandam o Incra nos estados. Vários eventos contam com a presença de Jair Bolsonaro. O presidente costuma afirmar que “pôs fim” ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em um movimento de contrarreforma agrária.
O Titula Brasil inverte a lógica da reforma agrária. O programa permite a privatização das terras públicas e sua disponibilização ao mercado para beneficiar o agronegócio — consolidando, em muitos casos, a grilagem das terras. O dossiê sobre o Incra mapeou os políticos e partidos que dão as cartas nas nomeações para as diretorias e superintendências regionais.
Desde a criação do Titula Brasil, em dezembro de 2020, a autarquia emitiu mais de 370 mil títulos individuais, delegando a competência para fiscalizar e acompanhar os processos de titulação aos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária. Na prática, transfere para as prefeituras atribuições que eram exclusivas do Incra.
TEREZA CRISTINA E NABHAN GARCIA INDICARAM PECUARISTA PARA PRESIDIR O INCRA
Além da dinâmica nos estados, o relatório identificou indicações políticas para a diretoria nacional do Incra, presidido por Geraldo Melo Filho, fazendeiro, membro da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ) e filho do ex-governador do Rio Grande do Norte e ex-senador Geraldo Melo (PSDB).
Geraldo Melo Filho foi indicado pela deputada federal Tereza Cristina (PP-MS) para o cargo, com apoio de Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento — comandado por Tereza ao longo do governo Bolsonaro.
Tanto Tereza Cristina quanto Nabhan Garcia costumam participar das cerimônias de entrega de títulos ao redor do país, mas a ex-ministra tem focado em seu reduto eleitoral, onde é candidata ao Senado. Ela esteve com Bolsonaro em maio em Ponta Porã (MS) para realizar a entrega de 2.600 títulos de propriedade.
Em junho, Tereza Cristina — que esteve entre as principais cotadas para disputar a Vice-Presidência da República — foi a Nioaque (MS) acompanhar a entrega de documentos do Titula Brasil junto de Geraldo Melo Filho e de Humberto Maciel, superintendente da autarquia no Mato Grosso do Sul, também indicado pela ex-ministra para o cargo. À Justiça Eleitoral, a deputada federal acaba de declarar um patrimônio de R$ 5,7 milhões. Em 2014 ela tinha R$ 10 mil.
PADRINHOS DE DIRETORES PARTICIPARAM DE CPI DO INCRA, NA ERA TEMER
Udo Gabriel Vasconcelos Silva e Eleusa Maria Gutemberg, diretor de Gestão Estratégica e diretora de Governança Fundiária, são indicações políticas de parlamentares da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Udo Gabriel é apadrinhado político do deputado federal Fábio Reis (PSD-SE). Eleusa Gutemberg filiou-se ao Republicanos em outubro do ano passado, a convite do deputado federal Carlos Gaguim (União-TO), que migrou para o União Brasil em 2022. Ele é candidato à reeleição.
Ex-governador do Tocantins, Carlos Henrique Amorim, o Gaguim, foi vice-líder do governo Bolsonaro, entre 2019 e 2020, e titular da CPI da Funai e do Incra, em 2016 e 2017. Essa Comissão Parlamentar de Inquérito se propunha a investigar a Funai e a autarquia — mas, durante o governo Temer, já com foco no combate a indígenas, indigenistas e movimentos sociais. Outra integrante da CPI foi a própria Tereza Cristina.
Dono de um patrimônio de R$ 15 milhões, declarados este ano ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gaguim é um notório defensor da política de ocupação do Matopiba. Nas eleições de 2018 ele declarou sete propriedades como “terra nua”. A indicação de Eleusa contou com o apoio do senador Eduardo Gomes (PL-TO), líder do governo no Senado até junho de 2022. Gomes está no meio de seu mandato no Senado. Os três parlamentares são membros da FPA.
O deputado Fábio Reis foi ainda responsável por indicar, em parceria com o deputado federal bolsonarista Bosco Costa (PL-SE), o nome de Victor Alexandre Sande Santos para a superintendência do Incra em Sergipe. Em março de 2022, Fábio Reis realizou duas cerimônias de entrega de títulos, nos municípios sergipanos de Poço Redondo e Canindé de São Francisco, esta última com a presença de Bosco Costa.
LÍDERES DA FRENTE PARLAMENTAR DA AGROPECUÁRIA COMPÕEM AS NOMEAÇÕES
O padrão se repete em diversas regiões do país e inclui velhos conhecidos da política brasileira, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), os senadores Davi Alcolumbre (União-AL), Luis Carlos Heinze (PP-RS), Eduardo Braga (MDB-AM) e Omar Aziz (PSD-AM), e o deputado Alceu Moreira (MDB-RS). Todos foram responsáveis por indicações dos superintendentes regionais do Incra em seus estados.
Heinze e Moreira presidiram a FPA e estão entre os principais nomes da bancada ruralista. Heinze é candidato ao governo estadual. Alceu Moreira presidiu a CPI da Funai e do Incra, que criminalizou antropólogos e até procuradores da República. Negacionista do clima, ele declarou um patrimônio de R$ 4,3 milhões ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como candidato à reeleição no Rio Grande do Sul. Bem mais que os R$ 2,7 milhões declarados em 2018.
No Amazonas e no Rio Grande do Sul, as indicações se deram através de acordos entre diferentes caciques partidários. O mesmo acontece no Paraná, onde o deputado federal Sérgio Souza (MDB-PR) emplacou o superintendente do Incra no estado por meio de articulação junto a Osmar Serraglio (PP-PR).
Souza é o atual presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. Ele manteve entre 2018 e 2022 seu patrimônio de R$ 1,5 milhão. Desde maio ele posou para fotos entregando títulos de propriedade em Goioxim (PR) e em Jardim Alegre (PR), ao lado de Robson Luis Bastos, nome que indicou para comandar a superintendência regional.
NOS COMANDOS REGIONAIS, CACIQUES ESTADUAIS LIDERAM AS INDICAÇÕES
A influência política no Incra não se restringe aos nomes mais conhecidos nacionalmente. Políticos que vêm ganhando espaço nos diretórios estaduais estão entre os responsáveis por algumas superintendências. É o caso de Lucas Vergílio (SD-GO), filho de Armando Vergílio (SD-GO), secretário de Desenvolvimento do Distrito Federal, nomeado em agosto por Ibaneis Rocha (MDB) para o cargo.
Lucas Vergílio, 35 anos, comanda o Solidariedade em seu estado de maneira interina. Candidato à reeleição, o deputado federal divulgou em suas redes sociais resultados da regularização fundiária no estado, sentindo-se orgulhoso ao lado de Geraldo Melo Filho, presidente do Incra, e de Alexandre Rasmussen, superintendente em Goiás que ele mesmo indicou.
No Acre, a deputada federal Mara Rocha (MDB-AC), conseguiu indicar o nome de Sergio Antonio Pereira Bayum para a superintendência, enquanto os deputados federais Paulo Azi (União-BA) e Dr. Jeziel (PL-CE), candidatos à reeleição, são padrinhos políticos dos superintendentes na Bahia e no Ceará. Mara é candidata ao governo acreano.
ZEQUINHA MARINHO DIVIDE COM OUTROS DEPUTADOS AS NOMEAÇÕES NO PARÁ
Outro caso emblemático de aparelhamento político do Incra é o do Pará, onde a autarquia possui três superintendências regionais, com sedes em Belém, Marabá e Santarém. Bolsonaro esteve duas vezes no estado para realizar cerimônias do Titula Brasil, sempre acompanhado de Zequinha Marinho (PL-PA), que exerceu influência sobre todas as três nomeações para superintendências do Incra no Pará.
Em junho de 2021, Zequinha lançou com o presidente o programa em Marabá, em uma região marcada por conflitos agrários. Eles fizeram uma entrega simbólica de 50 mil títulos de terra. Um ano depois, em março, Marinho viajou com Bolsonaro até Paragominas, no nordeste paraense, para distribuir mais 30 mil títulos, acompanhado dos deputados federais Éder Mauro (PL) e Joaquim Passarinho (PSD).
Vice-presidente da FPA, Marinho é apontado como o principal articulador das invasões de madeireiros à Terra Indígena Ituna-Itatá. Para a superintendência do Incra em Belém, que responde pelo nordeste do estado, Miguel Fernando Veiga Gualberto foi indicado por Zequinha Marinho em articulação com o delegado Éder Mauro, um bolsonarista raiz.
Para a superintendência de Santarém, Marinho indicou o ex-vereador Chiquinho da Umes (PSDB), em acordo com o deputado federal Junior Ferrari (PSD-PA). Éder Mauro e Junior Ferrari podem ser vistos comemorando as titulações de terra de maneira efusiva, inclusive durante as viagens de Jair Bolsonaro para Marabá e Paragominas.
TITULA BRASIL POSSIBILITA A PRIVATIZAÇÃO DAS TERRAS PÚBLICAS
Os dados das nomeações para as superintendências regionais do Incra mostram que o governo Bolsonaro criou condições para que a autarquia fosse tomada pelos interesses ruralistas, desvirtuando os objetivos da reforma agrária em prol da expansão territorial do agronegócio.
Para garantir novos estoques no mercado de terras, além de impedir que novas terras sejam tornadas públicas via reforma agrária, demarcação de terras indígenas ou criação de territórios quilombolas, estabeleceu-se como estratégia a conversão (ou reconversão) de terras públicas para o setor privado.
“O Incra virou imobiliária para os latifundiários”, afirma o membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Alexandre Conceição. Na avaliação dele, o Incra é hoje uma máquina voltada para a destruição da reforma agrária. Ele diz que a chegada de Jair Bolsonaro ao poder resgatou o velho latifúndio, “carcomido no atraso”.
Conceição aponta ainda o aumento do assédio e a pressão destes grupos — e do próprio Incra — às famílias assentadas, tirando dos assentados o próprio direito à terra.
Imagem principal (Aroeira/De Olho nos Ruralistas): dossiê sobre Incra aponta o uso do órgão para campanha de Bolsonaro e aliados
| Alceu Luís Castilho é diretor de redação do De Olho nos Ruralistas. |
|| Bernardo Fialho é estudante de Direito na UFRJ e pesquisador, com foco em sindicatos e movimentos sociais. ||
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