Camponeses do acampamento Leonir Orback relatam episódios de intoxicação por pesticidas; lista de produtos encontrados na água e no DNA dos moradores inclui produtos banidos na União Europeia; do outro lado, Grupo Naoum é dono de dívida bilionária com União
Por Maíra Mathias, de O Joio e o Trigo para o especial Brasil Sem Veneno
Passava da meia-noite de um dia de outubro de 2024 quando Helena Overnei acordou. Um cheiro forte empesteava o ar. “Falei: ‘ih, tão passando veneno…’”. O barracão de lona onde ela mora fica próximo de uma área usada para plantar commodities como sorgo, milho e soja. Era a época da preparação para o plantio dessa última. O fedor que ela sentia vinha do agrotóxico 2,4 D. “Aquilo chega a afogar a gente”.
Beirando a rodovia GO-210, que está sendo duplicada para facilitar o transporte de grãos, fica a entrada do acampamento Leonir Orback. Ali, uma guarita serve de abrigo para os moradores, que se revezam dia e noite num esquema de vigília comum nas ocupações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). De lá, Carlos Bonfim Souza de Jesus, 65 anos, pôde ver o que acontecia. “Eles passaram com Uniport, e daí banhou lá”.
Uniport é o nome comercial de um trator que pulveriza agrotóxicos – e que a Jacto, empresa brasileira especializada na fabricação do maquinário, caracteriza como “o 4X4 compacto para todos os desafios”. O ‘desafio’ daquela noite rendeu dez intoxicações, segundo as contas de Carlos, que coordena o setor de saúde do acampamento.

“Passei mal lá, muito mal mesmo”, relembra Helena, uma das pessoas afetadas naquela madrugada. Não era sua primeira intoxicação. Aos 77 anos – os últimos cinco passados no acampamento –, ela já se intoxicou três vezes. “O estômago ruim, muita dor de cabeça. Não é ansiedade, mas uma agonia. Acho que era falta de ar, né? Porque ele dá uma falta de ar na gente”, descreve.
Outro sintoma relatado pelos acampados é a coceira. “Deu uma alergia em mim. Eu moro sozinha – eu e Deus –; apanhei uma faca de mesa sem ponta e coçava as costas porque não alcançava”, relata Maria Rodrigues dos Santos, uma senhora com um senso de humor aguçadíssimo que não sabe dizer quantos anos tem.
Maria tem uma filha no acampamento. “Ela não tem tempo de ficar me coçando”, falou de um jeito maroto, emendando mais séria: “Porque eu me coçava dia e noite”. A coceira persistente a deixou com as costas em carne viva.
Tanto Helena quanto Maria procuraram atendimento na rede de saúde de Santa Helena de Goiás, município onde fica o acampamento. “Isso aí é uma coceirinha, isso aí é uma virose”, teria dito o médico de plantão na Unidade de Pronto-Atendimento, segundo Maria, que teve outros sintomas de intoxicação por agrotóxicos, como dor de cabeça e ânsia de vômito. “Nós vai lá e eles falam que é bactéria, é um vírus”, lamenta ela. Mas o que o atendimento do SUS em Santa Helena não viu, pesquisadores de instituições públicas confirmaram.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Santa Helena não se manifestou.

AGROTÓXICOS PROIBIDOS NA EUROPA ESTÃO NA ÁGUA DOS ACAMPADOS

“Infelizmente a gente vai trazer dados que não são legais, mas que são importantes pra tentar mudar um pouco dessa realidade que a gente encontra aqui na região”, disse a engenheira agrônoma Fernanda Savicki na manhã do dia 26 de novembro do ano passado. Ela se dirigia a três dezenas de acampados, reunidos em uma tenda construída com grandes ripas de madeira e lona na entrada do acampamento. Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Savicki se referia aos resultados de um levantamento inédito sobre os agrotóxicos encontrados em sete comunidades do Cerrado brasileiro, dentre elas o acampamento Leonir Orback.
Tinha chegado a hora de levar às comunidades os resultados da pesquisa, que começara durante a pandemia como parte das ações da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, articulação de diversas organizações lançada em 2016 com o objetivo de denunciar a destruição do bioma. O estudo foi coordenado por Aline Gurgel, também pesquisadora da Fiocruz.
“Nós somos seres que estamos relacionados com o nosso ambiente, fazemos parte dele. Se o nosso ambiente está doente, consequentemente nós também estamos”, continuou Fernanda para uma audiência atenta. “É impossível a gente estar num local que é totalmente contaminado, que a água está contaminada, que a terra está contaminada, e achar que está bem”. No caso do Leonir Orback, as coletas foram feitas na água em dois momentos diferentes: março de 2022 e janeiro de 2023. Foram retiradas amostras de corpos d’ água próximos, como um rio e um açude, e do poço da comunidade.
O agrotóxico mais encontrado no acampamento foi o glifosato – que é também o mais usado no país e no mundo. No primeiro ciclo, ele apareceu em 87,5% das amostras. No segundo, em 12,5%. A coleta em ciclos tem uma razão de ser: ela retrata momentos diferentes do calendário agrícola.
Em segundo lugar, veio o 2,4 D. No primeiro ciclo, ele apareceu em 12,5% das amostras e depois foi encontrado em 75% delas. O valor é 28 vezes superior ao máximo permitido pela legislação da União Europeia (UE), a mais restritiva do mundo quando o assunto são os agrotóxicos.
Já o fipronil, veneno proibido na UE por estar ligado ao fenômeno de morte em massa das abelhas, foi encontrado em 100% das amostras do ciclo 2.

Outro agrotóxico proibido por lá, a atrazina, foi rastreado em metade das amostras do ciclo 1. No Brasil, notou Fernanda, não só a atrazina é liberada como – ao contrário dos outros venenos –, não temos valores de referência para a exposição a ela. “Ou seja: se tiver um ou um milhão de partículas de atrazina por litro de água não faz diferença. A água vai estar potável, mesmo que ela esteja cheia de atrazina”, criticou.
Em último lugar, foi encontrado o etofenprox, inseticida que também é responsável pela morte de abelhas. Ele apareceu em 12,5% das amostras no primeiro ciclo.
Na região de Santa Helena, a soja é plantada entre outubro e novembro – quando começa o período de chuvas. Antes de plantar, é preciso preparar a terra. Nesse momento, se usa herbicidas como 2,4D e atrazina para limpar a área em que as plantas serão colocadas.
Uma vez plantada a soja, são aplicados produtos como o glifosato e o 2,4 D para controlar o mato (já que as variedades transgênicas da planta são resistentes a esses e outros agrotóxicos). “Quando ela dá uma arrancada, mas o mato vem junto, eles vão limpar pra não ter competição por água, por nutrientes, por luz, essas coisas”, explica o engenheiro agrônomo Gabriel Fernandes. É neste momento que se faz o controle de doenças causadas por fungos, como a ferrugem, ou infestação de insetos.
“No final do ciclo, dependendo de como estiver o clima, se a soja não estiver sequinha pra colher ou se estiver ameaçando chover, eles podem fazer uma outra aplicação de 2, 4 D para ajudar a secar a soja e facilitar a colheita”, afirma Fernandes. “O 2,4 D vai longe com o vento e queima tudo”.
Quando acaba o ciclo da soja, começa o ciclo das culturas que alternam com ela, como o sorgo e o milho. “Aí repete tudo de novo”, explica o engenheiro agrônomo.
ALTERAÇÕES E MUTAÇÕES NO DNA
O levantamento da Fiocruz não foi o único apresentado naquela manhã. A geneticista Andreya Gonçalves Costa e o biomédico Miller Caldas Barradas também tinham más notícias para dar. Meses antes, em julho, o Laboratório de Mutação Genética da Universidade Federal de Goiás (Labmut/UFG) – ao qual ambos estão vinculados – também tinha coletado amostras do acampamento. Não de água, mas de sangue e saliva. Quarenta e seis pessoas doaram material biológico para a análise.
O objetivo era analisar o DNA dos acampados e verificar possíveis danos causados pelos agrotóxicos. “A exposição aos agrotóxicos constante, mesmo que curta, pode danificar o DNA”, disse Costa.

A pesquisadora explica que o DNA é como um manual de instruções para nossas células: “Ele contém todas as informações necessárias para que as células funcionem corretamente”. E que diversos fatores podem causar danos a esse nosso ‘manual’, como o consumo excessivo de álcool, a fumaça do cigarro e a contaminação por agrotóxicos.
Esses dados se dividem entre alterações e mutações. As primeiras podem ser corrigidas pelo próprio corpo. As segundas são irreversíveis. “Se o sistema de reparo celular não conseguir consertar essas quebras corretamente, ocorre uma alteração na sequência do DNA – ou seja, uma mutação. Essas mutações podem afetar o funcionamento normal da célula e, em alguns casos, levar ao desenvolvimento de doenças”.
A análise do material biológico encontrou alterações e mutações no DNA e teve resultados parecidos com a que tinha sido feita na água do acampamento. O agrotóxico mais encontrado no corpo dos acampados também foi o glifosato. Depois veio o chumbinho, usado para matar ratos, seguido por fipronil e tordon (um herbicida que resulta da mistura de picloram com 2,4 D). A lista segue, com um total de 12 agrotóxicos.
Quem buscou a UFG foi a acampada Laureana Fernandes de Lima Ferreira, 40 anos. “O que me levou a procurar a universidade foi a questão dos companheiros, que estavam com muita irritação na pele. Companheiros que tinham sido intoxicados por veneno”.
De posse dos laudos, alguns acampados puderam procurar atendimento médico. E o acampamento passou a contar com mais um elemento na luta contra os agrotóxicos.
ÁREA DO ACAMPAMENTO TEM HISTÓRICO DE DÍVIDAS
Santa Helena de Goiás é um município de 38 mil habitantes que fica a pouco menos de três horas de carro da capital do estado, Goiânia. Segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, de 2022, os estabelecimentos agropecuários se estendem por 88,6 mil hectares do território do município. O acampamento Leonir Orback ocupa 16 hectares – 0,02% desse total.
A maior área é dedicada ao cultivo de cana-de-açúcar (33,5 mil hectares). Logo atrás, vem a soja (33,2 mil hectares). Em terceiro lugar, o milho (29,8 mil hectares). O feijão, por outro lado, ocupa míseros 205 hectares.

A história do acampamento está entrelaçada à cana-de-açúcar. O Leonir Orback fica no quilômetro 6 da GO-210, quase em frente à entrada da Usina São José, antiga Usina Santa Helena de Açúcar e Álcool S/A, e dentro da Fazenda Ouro Branco, que tem 1,8 mil hectares.
Usina e fazenda eram alguns dos muitos empreendimentos do Grupo Naoum, fundado por Mounir Naoum. Libanês, ele chegou ao Brasil na década de 1940. Estabeleceu-se em Anápolis, cidade a 270 quilômetros de Santa Helena. Seu negócio eram hotéis, fazendas e usinas. Pagar impostos, nem tanto.
O grupo chegou a acumular dívidas com a União na casa do bilhão. Entrou em recuperação judicial em 2008. Olhando a situação, o MST decidiu agir. A ocupação de áreas do complexo pertencente à Usina Santa Helena fazia parte da estratégia do movimento para pressionar o governo federal a cobrar o pagamento, com terras, da dívida. E destinar essas terras para a reforma agrária.
“A reforma agrária estava paralisada. E daí foi uma estratégia do Movimento Sem Terra: ocupar latifúndios. E não só em Goiás, teve uma outra grande ocupação do MST no Paraná. Nós ocupamos porque [a usina] era uma grande devedora”, explica Ueber Alves, advogado do movimento que cuida do caso do acampamento Leonir Orback.
PROJETO DE ASSENTAMENTO FOI PARALISADO APÓS RECUPERAÇÃO JUDICIAL
A primeira ocupação aconteceu em agosto de 2015 em outra fazenda do complexo da usina, a Várzea da Ema. Contou com a participação de mais de 3 mil famílias, nas contas do MST. O local – batizado de acampamento Padre Josimo Tavares – tinha água em abundância, o que favorecia o plantio de alimentos. “Todo mundo tinha roça”, lembrou Carlos, que participava do setor de produção no antigo acampamento. Para dar conta dos cultivos, os acampados organizavam mutirões nos fins de semana. “Os mutirões andavam com 1,5 mil pessoas”.

No ano seguinte, a Justiça decretou a reintegração de posse. Teve disputa e até prisão de quatro militantes, condenados por formar “organização criminosa”. O movimento não esmoreceu: em 31 de julho de 2016 ocupou outra área e criou o Acampamento Leonir Orback.
“Aqui era tudo cana. Aqui nós desbravamos tudo sem uma máquina, só na enxada. Nós morávamos dentro dos matos aí, ó”, contou Carlos, apontando para um pequeno trecho de mata mais à frente, na borda esquerda do acampamento.
A caminhada tem sido dura. “O mais brabo aqui é os agrotóxicos e as polícias, porque quando eles vêm, eles vêm pra tirar a gente”, disse Wilma Correa do Nascimento Silva, 48 anos, uma das líderes do acampamento.
Um dossiê preparado pelo Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Josiane Evangelista, ligado à Universidade Federal de Jataí, e pelo Núcleo de Direitos Humanos de Rio Verde e Região – ao qual a reportagem teve acesso – reúne essas violações na tentativa de sensibilizar autoridades públicas.
A situação atual é instável. No plano administrativo, o MST negocia com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para que o órgão provoque a Fazenda Nacional para requerer que a dívida seja paga com as terras.
No plano judicial, a coisa é mais complicada. A terra chegou a ser adjudicada, ou seja, requerida pela União. Mas o Tribunal de Justiça de Goiás reverteu a decisão. “Assim que a gente ocupou, a usina – que estava em processo de falência – pediu a recuperação judicial e a adjudicação foi anulada. Porque quando uma empresa pede recuperação judicial, ela é protegida”, explica Ueber.
No fim de 2024, a Justiça indicou que a usina havia extrapolado o prazo que uma empresa tem para ficar em recuperação judicial. Porém, não decretou a sua falência. “Então ela nem tem a falência decretada, nem pagou as dívidas que tem com a União”, resume o advogado.
Mas o MST continua lutando, não só pela desapropriação da fazenda onde o acampamento está instalado, mas de todas as propriedades do Grupo Naoum. “As quatro propriedades do Grupo Naoum lá naquela região perfazem 75 mil hectares de terra. A nossa luta é pela desapropriação de todas”, afirma Ueber.
Procurado, o Grupo Naoum não se manifestou até a publicação da reportagem.

“O AGRONEGÓCIO ACABOU COM TUDO”
O Leonir Orback é uma tripa de casas no meio de um mar de monoculturas do agronegócio. De um lado, cana. Do outro, se alternam plantações de soja, milho e sorgo.
A luta por um modelo de produção diferente num contexto assim não é fácil. “Nós lutamos muito para as coisas aqui serem pelo menos um pouco sem veneno. Porque a gente não aplica veneno, mas o agronegócio aplica”, pontuou Carlos.
“Aqui você planta alface, tá o trem mais lindo. Quando eles começam a jogar veneno, no outro dia você olha e dá vontade de chorar. Tudo amarelinho assim”, lamentou Maria Rodrigues dos Santos.

Carlos explica que alguns agrotóxicos usados na produção da soja danificam as plantas que têm membranas, como alfaces e couves. O uso intensivo também tem como efeito a migração, para os cultivos do acampamento, dos animais considerados pragas pelo agronegócio. “Então é que vêm os pulgões, que vêm as paquinhas de todas as espécies, que vêm as lagartas, porque eles batem, dá combate, e os bichos vêm pra cá”, relatou.
Nesse ritmo, muita gente do acampamento desanimou de plantar nos quintais. “Todo mundo perdeu as hortas; tudo. Os alfaces de cabeça, ‘melô’ tudo. Acabou com tudo, tudo, tudo”, enfatizou Carlos, inconformado.
Mas ainda existe produção no acampamento, como mostra Paulo Roberto da Silva Pires. Aos 41 anos, o professor de ciências exatas se encantou pelo MST depois de participar de um mutirão em 2023. “Como a minha família é toda de lavradores, meus avós e meus pais trabalhavam na terra, eu vim conhecer, entendi a dinâmica do movimento, compreendi rapidamente que era muito mais do que luta pela terra: era luta por uma sociedade mais justa, mais igualitária. E aí eu fui assumindo algumas tarefas”.
Deixou a cidade e se mudou para o Leonir Orback. “Basicamente, eu estou acampado debaixo de uma lona há 18 meses”, contou, caminhando pela estrada de terra batida que leva da guarita às áreas de produção coletivas, coladas à plantação de soja.
Perguntado sobre o que eles têm plantado ali, Paulo enumera: “Milho, mandioca, hortaliças em geral – inclusive as que vocês comeram no almoço, grande parte veio daqui. Banana, limão, as frutíferas nossas e, agora por último, arroz e feijão que a gente não vai mais comprar”.
LEGISLAÇÃO É FRACA OU INEXISTENTE
“É proibido o uso de agrotóxicos em áreas próximas aos ambientes urbanos ou em locais onde tem a concentração de pessoas”, disse Paulo, enquanto caminhava pela área do acampamento. Infelizmente não é bem assim.
A mais antiga delas é uma instrução normativa editada pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) em 2008. Ela trata da aplicação de agrotóxicos por aviões e prevê duas situações. No caso de áreas com mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais, essa pulverização pode acontecer a 250 metros de distância. Já no caso de povoações, cidades, vilas, bairros e mananciais de captação de água para abastecimento de população, a distância aumenta para 500 metros.
Com a chegada dos drones na agricultura, uma portaria mais recente, de 2021, foi editada para tratar especificamente deles. Nela, o Ministério da Agricultura estipula uma distância mínima de apenas 20 metros.
No caso da pulverização terrestre – que pode ser feita por tratores como o Uniport ou por equipamentos pequenos, usados nas costas dos trabalhadores rurais –, a bola fica com os estados. E pouquíssimos deles (apenas cinco, segundo o levantamento “Agrotóxicos e violações de direitos humanos no Brasil” editado em 2022) têm algo a dizer sobre o assunto.
“A maioria dos estados não tem distâncias estabelecidas. E, aí, realmente não há uma determinação que literalmente proíba esse tipo de coisa”, lamenta Emiliano Maldonado, advogado da Campanha Permanente em Defesa da Vida e Contra os Agrotóxicos.
Goiás é uma das exceções. Por lá, existem duas leis tratando do assunto, uma de 2016 que teve trechos modificados por outra, de 2018. Essas mudanças tratam exatamente das distâncias que devem ser observadas na aplicação dos agrotóxicos. O estado previa, por exemplo, uma distância de 2 mil metros para pulverizações aéreas em áreas próximas de cidades, povoados e vilas. Isso caiu para 500 metros (mesma distância estipulada pelo governo federal). Mas as leis também estabelecem distâncias para pulverizações com aplicação terrestre.
O barraco de lona no qual Helena Overnei mora fica a aproximadamente 25 metros de onde a soja foi plantada. Do ponto de vista da legislação estadual, aplicar agrotóxico ali é uma infração gravíssima. Caberia aos órgãos de defesa agropecuária, saúde e meio ambiente de Goiás a fiscalização e autuação dos responsáveis – que, no entanto, segundo relato dos acampados, nunca aconteceu no Leonir Orback.
GOVERNO DIZ ACOMPANHAR SITUAÇÃO, ACAMPADOS DESMENTEM
Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente não respondeu. Já a Agência Goiana de Defesa Agropecuária (Agrodefesa) enviou uma nota afirmando que “o acampamento se encontra localizado numa região agrícola há oito anos, onde existe um canavial há mais de 30 anos e o cultivo de diferentes culturas”. O órgão sustenta que tem um fiscal acompanhando a vigilância sanitária de Santa Helena de Goiás na fiscalização “no entorno do acampamento”.

“Tendo em vista a proximidade do acampamento, praticamente dentro das áreas agrícolas, onde se utiliza medidas de controle químico para prevenção e controle de pragas”, ressalta a nota. “Orientamos aos moradores, que no momento da aplicação de agrotóxicos no entorno do acampamento, notifiquem o fiscal da unidade do município para apuração de possíveis irregularidades e adoção de medidas punitivas legais. Quanto ao fato já ocorrido, recomendamos que seja oficializado à Agrodefesa para apuração e resposta formal da ação fiscal na região”, finaliza.
A Secretaria Estadual de Saúde, por sua vez, respondeu que fiscaliza a situação do acampamento e que o município de Santa Helena é prioritário quando o assunto são os agrotóxicos. A nota também fala que “após tratativas de vários órgãos municipais e estaduais como Agrodefesa, Pastoral da Terra, vigilância sanitária municipal, representantes locais (…), a Agrodefesa se propôs articular com os proprietários/arrendatários sobre os limites para pulverização e os tipos de defensivos agrícolas apropriados para uso nas proximidades dessa população”.
Mas a liderança do acampamento nega que o órgão atue na fiscalização. “A única vez que chegou um fiscal aqui foi para verificar se o alimento que nós damos aos porcos estava adequado. Ou seja: buscando nos punir”, conta Paulo Roberto da Silva Pires. “O acampamento não foi procurado em momento algum, a tratativa é falsa”, denuncia. Questionada, a Comissão Pastoral da Terra também negou ter ciência de qualquer articulação do gênero. “Desconhecemos. Nunca fomos procurados pela Secretaria estadual de Saúde ou outro órgão público para falar sobre os impactos dos agrotoxicos no acampamento Leonir Orback”, respondeu a coordenadora regional Leila Lemes.
PULVERIZAÇÕES CONTINUAM EM SANTA HELENA
Até poucos dias antes da publicação desta reportagem, as pulverizações continuavam a todo o vapor. Num vídeo gravado em 10 de março deste ano, uma acampada mostra como o trator passa rente ao limite do acampamento, próximo aos barracões onde as pessoas moram. Ela narra em tom de revolta: “Não estão nem aí para nós. Querem matar nós de veneno”.
Confira abaixo:
Um pouco antes, em fevereiro, chegaram notícias também da pulverização aérea nos limites do acampamento. Num vídeo enviado por outra acampada, um avião dá um rasante em cima do Leonir Orback. Dá pra ver que a pessoa que gravou está nervosa: o celular treme.
Mas a presença dos agrotóxicos no acampamento também é sentida em situações mais corriqueiras, como a hora do banho. “A gente toma banho por tomar, né? Porque a água é muito suja. Você acaba de tomar banho e dá uma piniqueira – só de falar, eu já me arrepio. Então, eu acho que já é veneno que tá lá naquela água, né?”, contou Helena, que às vezes prefere ir na casa dos filhos na cidade se banhar. Mas a verdade é que não tem muito jeito de fugir. “A roupa nós temos que lavar com essa água. A verdura nós temos que aguar com essa água. Não tem como”.
A hora do banho também assombra Maria Rodrigues. “E você toma banho, a hora que você veste a roupa, você faz assim, parece que tá com dois meses [que] você não banha. Tá grudento. Eu tô gastando dois sabonetes por semana pra poder tirar a manteiga do corpo. Eu falo que é manteiga, não sei o que que é”.
Na avaliação do advogado, a proximidade entre os monocultivos e o acampamento não é mero acaso. “O pessoal está ainda numa fase de acampamento e a disputa pelo território ainda é muito dura. Então, também tem um papel de perseguição, mesmo, inclusive de inviabilizar que aquelas famílias consigam viver e produzir ali”, reflete Emiliano.
GOVERNO DE GOIÁS ENVIOU APENAS UM REPRESENTANTE PARA AUDIÊNCIA PÚBLICA
A sede da Assembleia Legislativa de Goiás é uma construção com ares modernos, por onde se entra depois de subir uma ampla escadaria que leva a uma estrutura esférica que conecta dois prédios envidraçados. Inaugurada em 2022, a nova sede do Poder Legislativo é motivo de orgulho dos parlamentares por ser pretensamente verde, sustentável.
“O fim do uso de papel será um dos principais frutos dos investimentos tecnológicos que estamos realizando na nova sede, um grande benefício para o meio ambiente e para toda a sociedade”, disse antes da inauguração o então presidente da Casa e deputado, Lissauer Vieira (PSB). Ele é produtor rural em Rio Verde. No Instagram, aparece posando em cima de trator, carregando galão de agrotóxico e fazendo V de vitória com as mãos junto de Jair Bolsonaro.

Em outra manhã abafada de novembro, o estilo greco-goiano teve de se haver com dezenas de bonés do MST. No dia seguinte à reunião que apresentou os resultados dos levantamentos sobre agrotóxicos no Leonir Orback, os acampados foram fazer pressão na Assembleia.
Articulada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) junto ao mandato da deputada estadual Bia de Lima (PT), uma audiência pública foi o palco para cobrar por um basta às pulverizações. E, de novo, as duas análises de agrotóxicos – na água do acampamento e no sangue e na saliva dos acampados – foram apresentadas. Mas, desta vez, na presença de algumas (poucas) autoridades públicas.
“A gente precisa do monitoramento dessas famílias”, reivindicou a agente da CPT Leila Lemes. “É importante o apoio da Secretaria de Saúde do município de Santa Helena, mas também do estado de Goiás, nos casos de pessoas que foram intoxicadas. E das pessoas que ainda estão bebendo dessa água, que tem vários tipos de agrotóxicos”, continuou. “A gente precisa da criação de leis, também”.
O único representante do governo de Goiás na audiência era Magno Pereira Lima. Servidor de carreira, ele atualmente coordena a vigilância ambiental e de saúde do trabalhador – área da Secretaria Estadual de Saúde responsável por lidar com agrotóxicos. Questionado após a audiência se a secretaria tinha conhecimento de situações como a do acampamento, ele anuiu. “A gente tem conhecimento disso. Inclusive, a legislação antiga tinha uma metragem maior para essas pulverizações e a nova legislação preconiza distâncias menores, o que ocasiona maiores acidentes, maiores intoxicações e tudo mais”, destacou, se referindo às leis de Goiás.
Tanto na entrevista, quanto na fala durante a audiência, Magno insistiu que o problema dos agrotóxicos é grande demais para cair só no colo dos profissionais de saúde. “As instituições precisam ter esse olhar e promover essa mudança. Cada um no seu quadrado, dentro da legislação, exigindo o que é necessário fazer”.
PRESSÃO POPULAR RESULTOU EM CRIAÇÃO DE PERÍMETROS DE EXCLUSÃO NO RS
As respostas institucionais, no entanto, não vêm sem muita pressão. Costurar ciência e ação política tem sido uma tônica dos movimentos sociais que atuam na pauta dos venenos. Eles apostam na ideia de vigilância popular em saúde como forma de reunir informações sobre as intoxicações de maneira sistematizada e, a partir daí, cobrar por soluções.
A vigilância em saúde é uma estrutura do SUS. Quando um agente bate na porta de alguém para verificar criadouros de mosquito e aplicar larvicidas, ele está desempenhando uma ação de vigilância epidemiológica. Quando um fiscal cobra de um supermercado documentos que atestem a validade das carnes vendidas ali, ele está desempenhando uma ação de vigilância sanitária. E quando um agente monitora o uso excessivo de agrotóxicos, ele desempenha uma ação de vigilância ambiental.

“A vigilância popular em saúde, por outro lado, não acontece no sistema de saúde. Ela acontece nas comunidades”, afirma Fernanda Savicki, da Fiocruz. Segundo ela, o levantamento feito na água do acampamento Leonir Orback é uma ação de vigilância popular, já que alguns acampados receberam treinamento para realizar as coletas. Mas ela dá outros exemplos: “Anotar as datas das pulverizações. E criar documentação a respeito dos problemas ambientais que possam apoiar a denúncia de violações aos direitos das comunidades. Isso é vigilância popular”.
Existem exemplos concretos de avanços conquistados a partir de ações de vigilância popular. Jakeline Pivato, da Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, cita o caso do município de Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul. Conhecida pela produção de arroz orgânico pelo MST, a cidade aprovou em 2021 uma lei que cria perímetros de exclusão, onde a pulverização aérea de agrotóxicos é proibida. Isso aconteceu depois de um episódio de contaminação em massa da produção dos assentamentos por agrotóxicos, que gerou perdas significativas.
“Os agricultores fizeram todo o mecanismo de coleta de amostras, comprovar a contaminação, comprovar a perda da produção, e também a base de cálculo dos prejuízos”, relata Jakeline. “E aí oficializaram denúncias e foram fazendo também a articulação para ampliar a correlação de forças para conseguir, não só a partir das vias judiciais, mas ter um apoio da sociedade para enfrentar a pauta”.
Essa movimentação também gerou uma medida administrativa do governo gaúcho que criou outros cinco polígonos de exclusão da pulverização aérea de agrotóxicos, principalmente resguardando áreas de proteção ambiental e parques estaduais.
“O importante disso tudo é a gente entender que não foi uma família em si. A gente entende isso enquanto vigilância popular porque um coletivo organizado conseguiu constatar a violação, se mobilizar e criar um mecanismo de ir pra cima pra tentar reivindicar seus direitos”, frisa Jakeline. “As pautas que vêm avançando nesse sentido, todas têm iniciativa popular e mobilização da própria sociedade”.
CONFIRA A ÍNTEGRA DAS RESPOSTAS ENVIADAS À REPORTAGEM
Secretaria Estadual de Saúde de Goiás
A Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES/GO) informa que tem acompanhado a situação no acampamento Leonir Orbak, por meio do Programa do Ministério da Saúde: Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos (VSPEA) executado Em Goiás pela SES, por meio da Subsecretaria de Vigilância em Saúde (Suvisa).
Um estudo da Comissão Pastoral da Terra e implementado pela Fiocruz no bioma Cerrado em vários estados do Brasil e em Goiás foi realizado no acampamento Leonir Orback, no município de Santa Helena (GO) e motivou ações do programa VSPEA em 2024, em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG), culminando em Audiência Pública na Assembleia Legislativa de Goiás, realizada dia 27 de novembro de 2024.
Várias ações do VSPEA foram realizadas no acompanhamento desde julho de 2024, como a coleta de água para análises microbiológicas e físico-químicas nos dois poços subterrâneos que a população do acampamento consome, entrega de 400 frascos de 50 ml de hipoclorito de sódio para o tratamento da água, com orientações de uso, considerando que a água de consumo humano não possui nenhum tipo de tratamento, coleta de larvas de mosquitos pelo setor de vetores para identificação das espécies naquela região com importância em saúde pública, análise de glicemia e pressão arterial dos acampados, entretanto, como a coleta de sangue pela UFG para análises de intoxicações daquela população, estava sendo comprometida pela grande participação popular e os poucos recursos humanos para execução das tarefas, a área epidemiológica municipal auxiliou nesta ação.
Após tratativas de vários órgãos municipais e estaduais como Agrodefesa, Pastoral da Terra, vigilância sanitária municipal, representantes locais, VSPEA Estadual e Coordenação da Saúde do Trabalhador Estadual, a Agrodefesa se propôs articular com os proprietários/arrendatários sobre os limites para pulverização e os tipos de defensivos agrícolas apropriados para uso nas proximidades dessa população.
Importante ressaltar que o município de Santa Helena de Goiás consta como prioritário para a implantação e implementação das ações do VSPEA. Até o final do ano de 2024, contava com a participação atuante da coordenação da vigilância sanitária. Entretanto, com a mudança de gestão municipal houve a troca de coordenador e a interrupção das ações. A VSPEA Estadual já retomou em janeiro de 2025 as tratativas com os gestores municipais explicando da necessidade da continuidade da implantação do Programa no município. Ações de coleta de água para análises de agrotóxicos também foram realizadas nos anos anteriores e programadas para 2025 (março/2025) objetivando melhor monitoramento da qualidade da água.
Agência Goiana de Defesa Agropecuária (Agrodefesa)
A Agrodefesa como órgão responsável pela defesa agropecuária no estado de Goiás, tem como missão proteger a saúde da população contribuindo para a sustentabilidade sanitária, ambiental e econômica do agronegócio goiano.
Nesse sentido, fiscais estaduais agropecuários/ engenheiros(as) agrônomos(as) atuam na ação educativa e fiscalizatória do cumprimento das medidas legislativas. No caso do fato em questão referente a intoxicação por agrotóxicos acarretados aos moradores do acampamento do MST Leonir Orback, situado no município de Santa Helena de Goiás, relatamos que:
A Agrodefesa tem a competência de fiscalizar o uso correto e seguro de agrotóxicos, bem como a destinação final das embalagens vazias e seus resíduos.
Quanto à aplicação de agrotóxicos, seja aérea ou terrestre, existem critérios quanto ao distanciamento mínimo para aplicação, conforme as Leis Estaduais º 19423/2016 e nº 20.025/2018.
Segundo relatos do fiscal responsável, o acampamento se encontra localizado numa região agrícola há 08 anos, onde existe um canavial há mais de 30 anos e o cultivo de diferentes culturas.
Quanto a fiscalização direcionada da Agrodefesa no entorno do acampamento, ressaltamos que o fiscal tem acompanhado a vigilância sanitária do município, promovendo ações educativas na região e fiscalização do cumprimento da legislação, tendo em vista a proximidade do acampamento, praticamente dentro das áreas agrícolas, onde se utiliza medidas de controle químico para prevenção e controle de pragas.
Orientamos aos moradores, que no momento da aplicação de agrotóxicos no entorno do acampamento, notifiquem o fiscal da unidade do município para apuração de possíveis irregularidades e adoção de medidas punitivas legais.
Quanto ao fato já ocorrido, recomendamos que seja oficializado à Agrodefesa para apuração e resposta formal da ação fiscal na região.
| Maíra Mathias é repórter de O Joio e o Trigo. |
Imagem principal (Denise Matsumoto): agricultores do acampamento Leonir Orback convivem com contaminação diária por agrotóxicos.
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