Estudo mostra que há mais pobreza do que riqueza nos municípios do Matopiba

In Cerrado, De Olho no Agronegócio, Em destaque, Principal, Últimas
Camponeses no oeste da Bahia estão entre os afetados pelo agronegócio. (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Dados apresentados em pesquisa da UFABC provam que os lucros do agronegócio em estados da região são concentrados e a maior parte da população não tem acesso aos benefícios gerados

Por Maurício Hashizume, em Palmas

Quando o assunto é a expansão do agronegócio no Brasil é comum ouvir um acrônimo que designa uma vasta área contínua que se estende por quatro estados: Matopiba, resultado da união das siglas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Mais recentes têm sido as pesquisas realizadas na região que revelam perspectivas que extrapolam (e até contradizem) os discursos e as promessas de progresso e desenvolvimento social por trás de um setor poderoso, ávido pela exploração lucrativa dos vários recursos.

Estudo da UFABC mostra que soja não leva, necessariamente, riqueza. (Foto: Seagro/TO)

Um desses estudos realizados no Matopiba anuncia já no seu título uma de suas conclusões: “Há mais pobreza e desigualdade do que bem estar e riqueza nos municípios do Matopiba”. Os resultados apresentados neste início de ano no artigo conjunto de Arilson Favareto, Suzana Kleeb, Paulo Seifer e Marcos Pó (UFABC) e Louise Nakagawa (Greenpeace) colidem frontalmente com esses discursos e promessas de progresso pela via do agronegócio. Realizado a partir da análise e sistematização de dados e de variados indicadores econômicos e sociais dos 337 municípios espalhados pelos quatro estados, o estudo teve o complemento de pesquisas de campo em 14 deles, contemplando distintos perfis de localidades nas quais foram realizadas 150 entrevistas entre dezembro de 2017 e maio de 2018.

“Tentamos fazer algo que é pouco enfatizado na literatura: produzir informações e análises que mostrassem como o discurso de que a devastação ambiental é o ‘custo do progresso’ não corresponde à realidade”, explica o professor da UFABC Arilson Favareto, sociólogo, doutor em Ciência Ambiental e um dos autores do estudo apoiado pelas organizações não-governamentais (ONGs), Greenpeace e Climate Land Use Alliance (Clua). ” A riqueza gerada é muito concentrada e não chega à maior parte da população local. A maior parte dos municípios do Matopiba sequer vê essa riqueza circular”.

GRUPO DE MUNICÍPIOS COM INDICADORES BAIXOS É BEM MAIOR

Despejo em Palmeirante, no Tocantins; discurso de prosperidade é para poucos. (Foto: DPE-TO)

A pesquisa foi publicada parcialmente em artigo que compõe o Dossiê Matopiba, elaborado para a Revista do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera) da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Presidente Prudente). Faz parte de um estudo maior, intitulado “Entre as chapadas e os baixões do Matopiba: dinâmicas territoriais e impactos socioeconômicos na fronteira da expansão agropecuária no Cerrado”. Ele motivou um relatório organizado pelo Greenpeace e será publicado na íntegra ainda neste semestre, em livro, pela Editora Ilustre.

Verificou-se, com base no estudo, a existência de quatro “Matopibas”, tomando-se como referências as médias de critérios de produção agropecuária da região, de um lado, e da média regional de indicadores sociais e de qualidade de vida, de outro. Resultado: o grupo de municípios “injustos”, ou seja, com alta produção e indicadores sociais abaixo da média, se revelou significativamente maior (67) do que o dos “ricos”, aqueles com alta produção e indicadores sociais superiores (45). Bastante reduzido (29), o terceiro grupo, de baixa produção e condições de vida acima da média, foi chamado de “remediados”, enquanto a larga maioria de “pobres” (196) apresentou baixa atividade econômica agropecuária e números baixos nas garantias sociais.

Os defensores do modelo atual do Matopiba dizem que, havendo crescimento da produção de riquezas, mais cedo ou mais tarde isso chegará a todos. O crescimento resolveria os outros problemas. “Mostramos que não, porque não é só uma questão de gerar riquezas”, explica Favareto, autor também de um outro estudo focado na expansão da soja no Piauí, com balanço semelhante. “A questão é de que forma estas riquezas são geradas. Que custos elas têm. E a quem elas beneficiam. Não damos um modelo. Criticamos um modelo”.

Mais uma premissa contestada pela pesquisa resumida no Dossiê Matopiba é a de que o agronegócio não deve a sua pujança apenas ao empenho de conotações heroicas da iniciativa privada, mas à intervenção estatal. “A ideia de que o agro carrega o Brasil nas costas não corresponde à realidade”, completa o especialista. O setor privado teve um papel importante, mas foi sobretudo o Estado quem criou o agronegócio moderno com pesados investimentos governamentais, como os da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Sistema Nacional de Crédito Rural. “Por isso, é errada a demonização que o setor privado faz do Estado, atualmente, ao dizer que menos Estado é melhor”, afirma Favaretto. “A questão é, qual Estado, beneficiando a quem, por meio de que tipo de modelo?”.

VIVEM NO MATOPIBA 5,9 MILHÕES DE PESSOAS

Bioma também pode ser atingido. (Foto: Helen Lopes)

Ao todo, o Matopiba compreende 73 milhões de hectares, onde vivem, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, 5,9 milhões de pessoas. Segundo projeções da Embrapa, a produção de grãos na região deverá saltar de 18,6 bilhões de toneladas, registrados na safra 2013/2014, para 22,6 bilhões de toneladas, na safra 2023/2024, com área plantada de até 10,9 milhões de hectares. Entre 2013 e 2015, houve registro de desmatamento de 18,9 mil km²  do Cerrado, que já perdeu metade de sua cobertura florestal.

Ainda de acordo com a pesquisa, as possibilidades de alinhamento entre dinamização econômica com redução da pobreza e da desigualdade têm a ver com o modo como se combinam cinco fatores nos territórios. São eles: formas de acesso e uso dos recursos naturais, relação com centros urbanos, acesso a mercados (não apenas no bojo da lógica mercantil capitalista), características da estrutura produtiva (mais ou menos desconcentrada ou especializada), e as políticas públicas. Esses parâmetros, adiciona Favareto, resultam de ampla pesquisa realizada em vários países da América Latina e nada têm a ver com os criticados receituários de “desenvolvimento” de organismos internacionais, não raro impostos por agentes “desenvolvidos” como condição de apoio a regiões e populações “subdesenvolvidas”.

No modelo atual do Matopiba, seja nas áreas comandadas pelo agronegócio, seja nas outras onde ele não chegou, a maioria das pessoas tem poucas oportunidades de escolher como quer viver, destaca o pesquisador: “Aumentar sua liberdade de escolher é o que se deve buscar: alguns chamam isso de bem viver, outros de desenvolvimento genuíno. Me parece que o nome importa menos; importa mais o sentido. E o sentido do que está acontecendo no Matopiba não vai nessa direção. É isso o que nosso estudo demonstra”.

A tendência de concentração de riqueza pode ser verificada, segundo a pesquisa, pela escassez e fragilidade de centros regionais no Matopiba. Seja no caso das cidades de Luís Eduardo Magalhães e Barreiras, no oeste da Bahia ou seja no de Balsas, no Maranhão, é rarefeita a presença de uma classe média mais consolidada que poderia ajudar na dinamização, na diversificação e na manutenção dos recursos gerados na própria economia local.

DOSSIÊ FOI ELABORADO PARA MOSTRAR IMPACTOS

Outros catorze artigos integram o dossiê da Revista Nera. A editora Lorena Izá Pereira observa na apresentação que o trabalho teve início em 2015, com a criação de um grupo de trabalho com representantes de diferentes instituições e organizações dedicado ao “debate crítico acerca do avanço do agronegócio na região do Matopiba, bem como o apoio às populações que de algum modo são afetadas com o avanço da fronteira agrícola em áreas de Cerrado”. A formação da rede teve como esteio também as pesquisas e debates sobre estrangeirização da terra, desenvolvidas desde 2008 pelo professor Bernardo Mançano Fernandes, do próprio Nera. Ele assina um dos artigos, que tem como foco a apropriação da renda da terra por empresas controladas pelo capital financeiro em áreas de expansão da fronteira agrícola.

Desde janeiro, o observatório dedica uma editoria específica a temas que envolvem o Cerrado.

O dossiê foi pensado com o objetivo de evidenciar não apenas as estratégias de acesso e controle do Matopiba pelo capital transnacional e financeiro, mas de mostrar as particularidades, os impactos, os conflitos territoriais e as resistências, não apenas em termos ambientais, como também de territórios imateriais, explica Lorena no texto de apresentação.

O grupo conta ainda com membros da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), Ministério Público Federal (MPF), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e ONGs ambientalistas. A iniciativa ganhou impulso por conta da 1ª Capacitação Intercameral para Preservação da Terra e da Água do Cerrado Brasileiro, realizada no dia 11 de setembro (Dia do Cerrado) na sede da Procuradoria-Geral da República em Brasília.

De acordo com Lorena, a equipe da Revista Nera se surpreendeu com o volume e a diversidade das abordagens dos temas, com muitas pesquisas de campo, desde a regionalização como ferramenta para o agronegócio, passando pelos discursos no Poder Legislativo, da relação com o processo global de financeirização aos vários casos de impactos e conflitos propriamente ditos na região do Matopiba, chegando até a um paralelo com o caso do projeto de expansão do agronegócio ProSavana, em Moçambique. “Não se trata de algo que acontece apenas no Cerrado brasileiro, mas tem a ver com a questão agrária mundial”, comenta a editora.

Parte específica da estrutura federal para execução do Plano de Desenvolvimento Agropecuário (PDA) Matopiba e funcionamento de seu comitê gestor foi aprovada em Decreto presidencial de 2015, assinado pela ex-presidente Dilma Rousseff e pela ex-ministra e senadora Kátia Abreu (PDT-TO). Ainda que ele tenha perdido algum suporte a partir de 2016, com uma reestruturação do Ministério da Agricultura firmada por Michel Temer e com Blairo Maggi à frente da pasta, os interesses e as ações do agronegócio pela região seguem fortes. As empresas e os produtores, completa Lorena Izá, continuam avançando: são muitos e variados os conflitos existentes, retratados também em um levantamento da Fian, envolvendo camponeses, povos indígenas e quilombolas.

You may also read!

Clã que se diz dono de Jericoacoara foi condenado por fraude milionária em banco cearense

Ex-marido de Iracema São Tiago dirigiu o Bancesa, liquidado por desviar R$ 134 milhões da União e do INSS

Read More...

Prefeitura de SP nega superfaturamento e diz que obra de R$ 129 milhões segue “ritos legais”

Investigada por irregularidades, Ercan Construtora foi contratada para obra emergencial em talude na comunidade Morro da Lua, no Campo

Read More...

Os Gigantes: com apoio de prefeitos, projetos de carbono violam direitos de comunidades tradicionais

De Olho nos Ruralistas mapeou 76 projetos de emissão de créditos de carbono em 37 dos cem maiores municípios;

Read More...

Leave a reply:

Your email address will not be published.

Mobile Sliding Menu