Aliado a práticas agroecológicas, extrativismo da bocaiuva, do bacuri e da guavira garante renda para famílias camponesas na Serra da Bodoquena; com alto potencial turístico, região é ameaçada pelo avanço do agronegócio e pelo uso excessivo de venenos
Por Sara Almeida Campos, de Bonito (MS)
A camponesa Élida Martins Aivi carrega em seus traços parte da história do Mato Grosso do Sul. Filha de agricultores de origem guarani e paraguaia, Élida e sua família coletam e beneficiam frutos do Cerrado no Assentamento Santa Lúcia, o segundo mais antigo de Bonito (MS), localizado na parte sul do Parque Nacional da Serra da Bodoquena, em zona de transição com o Pantanal.
“Na infância, meus pais ensinaram eu e meus irmãos a cuidarmos da natureza”, conta Élida. “Quando a gente não tinha milho, meu pai mandava a gente quebrar o coquinho da bocaiuva para alimentar as galinhas. A gente comia isso junto com elas e nunca ficava doente”.
Conhecido popularmente como “chiclete pantaneiro”, por causa da textura elástica, o fruto faz parte do cotidiano da família Aivi, sendo incluído na alimentação das crianças por conta de seu alto valor nutricional.
– Na hora de preparar o leite, minha mãe mandava a gente descascar a bocaiuva. Com as lascas, fazia um mingau pra gente tomar logo cedo. Como eu vou destruir isso se desde criança esses frutos já faziam parte da vida da minha vida? É impossível.
Essa não é a única especialidade de Élida. Em seu terreno, a camponesa mostra com orgulho sua produção agroecológica de banana, hibisco e graviola, que garante o sustento da família na feira de agricultura familiar realizada aos sábados, no centro de Bonito.
Ali ela cultiva e preserva outros ingredientes do Cerrado, como a guavira (também conhecida como guabiroba), utilizada como quebra-vento natural – uma barreira vegetal para proteger as plantas de ventos fortes. Élida utiliza os conhecimentos repassados por seus ancestrais para preparar uma rapadura icônica da região, comercializada dentro e fora do Brasil. Desidratada, a casca da guavira transforma-se em uma especiaria semelhante à noz-moscada. A importância cultural do fruto inspirou a criação de um festival gastronômico que se converteu em uma das principais atrações turísticas do município.
Mas nem sempre foi assim. Antes de se dedicar à agroecologia e ao agroextrativismo, Élida e seu marido trabalharam em uma fazenda de monocultura: “Na hora de pedirmos as contas nos perguntaram: vocês querem o acerto ou a terra? A gente não pensou duas vezes”. O terreno, no entanto, estava degradado pelo uso intensivo de glifosato, agrotóxico classificado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como “extremamente tóxico” e cujos efeitos foram sentidos na pele pela família Aivi. “Meu esposo já foi o bandeira, aquele que sinalizava a rota que o avião tinha fazia para passar o veneno”, conta. “Ele já teve problemas nos rins e chegou a vomitar sangue”.
Na trajetória da agricultora, não utilizar agrotóxicos vai além de uma luta cultural, trata-se de uma questão de sobrevivência:
– Se o agricultor só mexe com agrotóxicos ele não consegue colher nada fora de época e não tem variedade. Tenho amigos da feira que não têm o que levar para vender. O que as pessoas têm que se conscientizar é que as árvores dão aquilo que eles mais necessitam: o adubo para a terra.
SERRA DA BODOQUENA SOB AMEAÇA
O impacto dos agrotóxicos em Bonito não se restringe à família de Élida. De acordo com a Fundação Neotrópica do Brasil, a área ocupada por monocultura no entorno da Serra da Bodoquena saltou de 9 mil hectares em 2006 para 60 mil hectares em 2017, colocando em risco a atividade turística, principal pilar econômico do município. “Estes 60 mil hectares são manejados de forma convencional, com uso de fertilizantes e agrotóxicos”, conta Rodolfo Portela Souza, coordenador de projetos da fundação. “O uso destes produtos químicos tem que ser feito com cautela, pois a geologia da região possui locais de conexão direta com os aquíferos, o que pode ser canal de contaminação destas águas subterrâneas”.
Em janeiro, o Ministério Público de Mato Grosso do Sul abriu um inquérito para apurar a contaminação por agrotóxicos no Rio da Prata, um dos principais atrativos turísticos do município, por causa de suas águas cristalinas. Dois meses antes, o rio fora invadido por uma enxurrada de sedimentos após fazendeiros da região desmatarem áreas de proteção permanente para o plantio de soja e milho, deixando-o turvo e impedindo o mergulho.
Para a bióloga Alexandra Penedo de Pinho, professora do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), os impactos causados pela monocultura afetam diretamente o turismo na região. “Os animais são atingidos, a água é atingida, o solo e as pessoas são atingidas”, afirma. “As principais atividades turísticas de Bonito são realizadas dentro d’água”.
A ação dos herbicidas sobre a fauna também é notória. Segundo levantamento da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira, comandado pelo Instituto Ipê, as antas do Cerrado estão contaminadas com agrotóxicos e metais pesados, por causa das práticas agrícolas predominantes na região.
Em junho, o Ministério Público anunciou a criação de um observatório junto à Neotrópica e à UFMS que, entre outros objetivos, pretende medir a a extensão da contaminação por agrotóxicos na Serra da Bodoquena. “Serão avaliadas várias questões ambientais: metais pesados, agrotóxicos, biodiversidade”, diz Alexandra. “Faremos avaliações para chegarmos a um diagnóstico ambiental. Esse projeto será de extrema importância para a região”.
Esse observatório chega em um momento de urgência. Em 19 de julho, uma liminar da 4ª Vara da Justiça Federal de Campo Grande reduziu 80% da área do Parque Nacional da Serra da Bodoquena, sob o argumento de que apenas 19% dos fazendeiros desapropriados com a criação da unidade, em 2000, foram indenizados. Com a decisão, o parque passará de 76 mil para apenas 14 mil hectares, prejudicando a preservação de centenas de espécies ameaçadas e das nascentes dos principais rios da região.
Foto principal: Bacuri da Serra da Bodoquena. (Sara Almeida Campos/De Olho nos Ruralistas)