Integrantes do primeiro e segundo escalão do governo atuaram diretamente contra os povos originários e tradicionais na região onde vivem até hoje os parentes do presidente; vídeo gravado pelo De Olho nos Ruralistas traz relatos dos moradores
Por Leonardo Fuhrmann (texto) e Manoel Marques (imagens), em Eldorado, Iguape e Sete Barras (SP)
A ponte que liga o Quilombo Pedro Cubas ao perímetro urbano de Eldorado, no Vale do Ribeira, interior paulista, foi a grande promessa do presidente Jair Bolsonaro para o município em que passou a maior parte de sua infância e adolescência. A obra, vista com um misto de esperança e preocupação por quem mora no quilombo e por ambientalistas preocupados com a proteção dos parques e reservas da região, tem seu desenho exposto na sede da prefeitura e na balsa que faz o traslado de pessoas e mercadorias. O projeto, no entanto, nunca saiu do papel.
Ao mesmo tempo em que mostrou incapacidade de construir uma ponte, no sentido literal, Bolsonaro vem destruindo pontes com os povos tradicionais e originários da região, que sentiram o enfraquecimento de políticas de agricultura camponesa, a falta de apoio à produção de orgânicos e a diminuição da fiscalização de violações aos seus direitos. Enquanto aguardam a retomada das demarcações, muitos indígenas e quilombolas acompanham, com poucas condições de reação, a dilapidação do território por ladrões de madeira, grileiros, garimpeiros e fazendeiros.
Um levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) mostra que existem sobreposições de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) nas áreas de 27 quilombos da região. Em quase metade deles, a área sobreposta corresponde a mais de metade do território. No Quilombo Abobral Margem Esquerda, existem 68 títulos com sobreposição.
“O Abobral tem mais terceiros do que quilombolas”, diz Leonila Pricila da Costa Pontes, de 73 anos. Terceiro é como são chamados os ocupantes irregulares da área, que devem deixar o território assim que a ancestralidade é reconhecida. Ela própria teve de arrendar seu bananal no território para viver na área urbana, para cuidar de um tio com problemas de saúde. “A gente chega aqui e somos tudo que as pessoas da cidade não gostam: negro, pobre e da roça”, comenta. Leonila é poeta e retrata em seus versos as dificuldades da vida das mulheres negras na região.
Edivina Maria Tiê Brás da Silva, 76 anos, é moradora de Pedro Cubas de Cima, outra comunidade que seria beneficiada pela ponte. Ela ressalta que a obra seria importante para o escoamento da produção e a exploração do potencial turístico do quilombo, como já acontece com Ivaporunduva, que teve uma ponte de acesso construída durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Apesar de ver vantagens, Dona Edivina também mostra preocupação com a movimentação de grileiros, desmatadores e garimpeiros. “A gente vê a movimentação, mas não tem como fiscalizar. Muitas vezes, já temos problemas com os terceiros que já estão dentro da terra”, diz.
Confira vídeo gravado pelo De Olho nos Ruralistas na região:
A insatisfação com as ações do governo federal é um dos fatores que explica o aumento dos votos em Lula no 1º turno das eleições, na comparação com os números de 2018, conforme contamos em outra reportagem sobre o Vale do Ribeira: “Em quatro anos, PT dobra votação para presidente na região onde Bolsonaro foi criado“.
AUTORIDADES FEDERAIS E IRMÃO DE BOLSONARO ATUAM CONTRA INDÍGENAS
Bolsonaro não faz a menor questão de esconder suas digitais. Os ataques aos direitos de comunidades tradicionais contaram com a participação direta de integrantes do governo federal, como o secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Antônio Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), e do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), o delegado federal Marcelo Xavier.
A articulação teve apoio direto do do irmão do presidente, Renato Bolsonaro, que foi, durante pouco mais de um ano e meio, chefe de gabinete do prefeito de Miracatu, onde mora. Os três participaram de uma série de audiências públicas na região para debater a demarcação de terras indígenas, com a presença massiva de fazendeiros. Em nenhuma delas líderes indígenas foram convidados.
As consequências do atual momento político são grandes para as comunidades indígenas, mesmo aquelas já regularizadas. Líder Guarani, o cacique Timóteo Popygua conta que sua comunidade adquiriu, em 2013, uma fazenda em Eldorado com recursos da compensação pelas obras do Trecho Sul do Rodoanel, na capital paulista. “Aqui dentro tem crianças de 9 anos que nunca foram para a cidade”, afirma. “A gente não se sente seguro”.
Ele conta que os indígenas se sentem discriminados na cidade, inclusive quando precisam ir a algum médico em casos de emergência. “Eles não conversam conosco e chegam mesmo a nem encostar na hora do diagnóstico. Receitam um remédio de longe”.
A precariedade do atendimento médico é citada pelos indígenas de Iguape, município no litoral cujas terras indígenas ainda estão em processo de demarcação. “O discurso oficial da prefeitura é de negar a legitimidade de nossa presença aqui e, assim, rejeitar qualquer demanda de saúde e educação de nossas comunidades”, diz o cacique Leonardo Silva. Moradores de um trecho preservado da Jureia, os indígenas sofrem com a especulação imobiliária e a violência. Dentro do território, é possível ouvir tiros de armas de fogo e um barulho quase constante de motosserras.
A ação dos grileiros tem dificultado a circulação dos indígenas no território, cada vez mais alvo de novas invasões e de loteamentos clandestinos. Na estrada, dentro do território identificado, é possível ver placas de venda de lotes e construções em andamento. Dividida em cinco aldeias, a Terra Indígena Ka’aguy Hovy foi identificada em 2017, a partir de um grupo técnico que fez um estudo antropológico na região iniciado em 2010.
O documento aponta indícios da presença dos indígenas na região datados de mais de mil anos e demarca uma área de 1.950 hectares para os povos originários. No mesmo dia, a Funai reconheceu a identificação do Território Indígena Tapi’y, em Cananeia, município próximo, no extremo sul do litoral paulista. Os indígenas de lá também denunciam as invasões a seus territórios.
ESTADO INCENTIVA A MINERAÇÃO E É OMISSO EM RELAÇÃO A GARIMPOS
Como tem acontecido em outras partes do Brasil, o avanço da mineração se tornou uma preocupação na região desde a ascensão de Bolsonaro. A Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (Eaacone) também apontou 32 requerimentos e autorizações de pesquisa minerária dentro de territórios quilombolas na região desde 2018, ano em que Bolsonaro foi eleito. Os pedidos incluem a busca por ouro, cobre, manganês, mármore e outras pedras e areia em áreas protegidas, reconhecidas, certificadas e de uso sustentável. De 1937 a 2017, eram 199 pedidos.
Isso sem contar os metais com nenhum pedido para a exploração, como nióbio e grafeno, tratados como obsessão por Bolsonaro e seus aliados. No Ribeira, Cajati seria o município do nióbio.
Segundo o site O Antagonista, dois tios do ministro André Mendonça, o representante “terrivelmente evangélico” de Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF), são sócios da Mendonça Pesquisa Mineral Ltda. Eles têm duas licenças para pesquisa e exploração do minério em Juquiá. Além deles, um irmão de Mendonça tem licenças em Juquiá, Eldorado e Sete Barras.
Além dos licenciamentos, o que mais preocupa os moradores é a exploração ilegal, incrementada a partir da falta de fiscalização e do discurso do governo federal claramente favorável à atividade. Não é difícil encontrar vídeos em que garimpeiros se gabam de ter conseguido extrair ouro irregularmente de dentro de áreas de proteção. Muitas vezes, os grupos contam com guias locais, que os conduzem pelo meio da floresta. Além de garimpos, os criminosos também caçam e extraem palmito ilegalmente.
A ação tem indícios de participação do crime organizado, como demonstrou o assassinato de um vigilante do parque em maio de 2020. Damião Cristino de Carvalho Junior, de 28 anos, foi baleado na cabeça e não resistiu. Ele era terceirizado e fazia parte de um grupo que avistou o garimpo clandestino e foram recebidos a tiros por pelo menos quatro criminosos. Além dele, mais um guarda foi baleado, mas sem gravidade. Os guardas tiveram de se abrir em um lugar seguro e só foram resgatados por reforços policiais no dia seguinte. No local, um mês antes, já havia sido desmantelado um garimpo clandestino. Vizinhos citam até a movimentação de helicópteros pelos garimpeiros.
DESTRUIÇÃO DE PROGRAMAS DE AGRICULTURA CAMPONESA PREJUDICA QUILOMBOS
Não é só a fiscalização que é afetada pelo governo Bolsonaro. Políticas importantes para a agricultura camponesa, como o de Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) sofreram cortes na gestão Bolsonaro. Em 2020, o PAA foi 95% menor do que em 2012 em toneladas de produtos, por exemplo. Atingido pela pandemia de Covid-19, o PNAE também foi atingido por projetos da base governista para reduzir o percentual de compra da agricultura familiar.
No Vale do Ribeira, onde os quilombolas investem na produção de orgânicos, a agricultura camponesa sofreu mais um revés. Sob influência direta de Bolsonaro, o governo federal reduziu pela metade as distâncias mínimas da pulverização de agrotóxicos em plantações de banana em relação a habitações e rios, conforme detalha o relatório “O Presidente das Bananas“, o primeiro da série Dossiê Bolsonaro. Acesse o relatório na íntegra aqui.
“A gente tem dificuldade de certificar os produtos orgânicos porque eles vêm contaminados de agrotóxicos pela pulverização dos vizinhos diretamente no produto e pela água”, afirma Adan Rodrigo Trolesi Pereira, 33 anos, morador de um dos núcleos do Quilombo Sapatu. Ele aponta uma redução da quantidade de peixes causada pelo uso de agrotóxicos nas beiras do rio. De barco, o quilombola mostra como muitos bananais dos fazendeiros chegam até a margem do rio, desrespeitando a área de proteção ambiental.
Adan usa o próprio exemplo para destacar a importância dos programas de produção de alimentos criados na gestão petista para a comunidade. “Eu sou mirradinho porque fui criado antes dessas políticas”, diz. “O pessoal que é um pouco mais novo já é do tempo da farinha da folha da mandioca, trazida para cá pela Pastoral da Criança, nos anos 1990”. Ele aponta a chegada do presidente Lula ao poder como o maior ponto de virada.
“Passamos a ter um apoio maior para a produção e comercialização de nossos alimentos”, relata. “Essa estrutura permitiu que, durante a pandemia, com o apoio do Instituto Socioambiental, a gente tenha conseguido distribuir alimentos saudáveis para comunidades carentes de São Paulo”.
CONFIRA VÍDEOS FEITOS PELO DE OLHO NOS RURALISTAS EM 2018
O preconceito contra quilombolas é marca do discurso de Bolsonaro desde o período anterior à eleição de 2018, com ofensas específicas aos quilombolas de Eldorado. Em palestra na Hebraica, no Rio, em abril de 2017, ele relatou uma suposta visita a um quilombo no município de Eldorado, no Vale do Ribeira, região em que passou boa parte de sua infância e adolescência e onde alguns de seus irmãos e sobrinhos ainda moram:
– Quilombolas é outra brincadeira. Eu fui num quilombola [sic] em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem pra procriador serve mais.
Em setembro de 2018, a equipe do De Olho nos Ruralistas fez sua primeira visita à região e demonstrou que Bolsonaro mentia: “Quilombolas de Eldorado dizem que Bolsonaro nunca os visitou“. Outro vídeo mostra o poder local da família do presidente: “Em Eldorado, quem manda são os Bolsonaro“. Este observatório revelou também que um dos cunhados de Bolsonaro invadiu um quilombo em Iporanga: “Cunhado de Bolsonaro é condenado por invadir terra quilombola“.
Quatro anos depois, as mentiras e a truculência continuam.
Foto principal (Manoel Marques/De Olho nos Ruralistas): cacique Timóteo Popygua conta que indígenas não são ouvidos pelas autoridades locais
| Leonardo Fuhrmann é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
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