Multinacionais da cana avançam sobre território Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul

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Maior produtora mundial de açúcar e etanol, Raízen tem parceria com fazenda sobreposta à TI Dourados-Amambaipeguá; dossiê “Os Invasores” detalha tentáculos do setor sucroenergético, caso das Usinas Santa Adélia, da Copersucar, e Três Barras, dos EUA

Por Bruno Stankevicius Bassi, Hugo Souza e Tonsk Fialho

Relatório mostra participação de setores do agronegócio no ataque aos direitos indígenas.

Três grandes empresas do setor sucroenergético no Brasil — financiadas com expressivos aportes internacionais — têm conexões com propriedades rurais sobrepostas a uma mesma terra indígena brasileira, a TI Dourados-Amambaipeguá I, do povo Guarani Kaiowá, que abrande os municípios de Amambai, Caarapó e Laguna Carapã, no Mato Grosso do Sul. São elas o Grupo Cosan, a Usina Santa Adélia e a Usina Três Barras.

Os dados fazem parte do relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado na última quarta-feira (19) pelo De Olho nos Ruralistas. Com base nos dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o estudo identificou 1.692 sobreposições de imóveis privados em áreas demarcadas pela Funai em todo país. Destas, 630 estão em terras sul-mato-grossenses.

No município de Laguna Carapã, a Fazenda Campanário tem 238,5 hectares sobrepostos à TI Dourados-Amambaipeguá I. O imóvel está registrado em nome da Campanário S/A, empresa pertencente à Renato Eugênio de Rezende Barbosa. Junto aos irmãos Roberto e José Eugênio, Renato era dono da Nova América, cujas usinas de cana foram incorporadas em 2009 pela Cosan, dando à família Rezende Barbosa uma participação de 11,9% no capital do grupo — atrás apenas de Rubens Ometto Silveira Mello, o sócio-controlador.

Com a internacionalização da Cosan — que, junto à petroleira anglo-holandesa Shell, controla a maior produtora de açúcar e etanol do mundo, a Raízen —, a família foi gradualmente vendendo suas ações. Roberto de Rezende Barbosa foi o último dos grandes acionistas individuais que não pertenciam à família Ometto, deixando o conselho de sócios em 2019.

A relação não se restringe à conexão corporativa. A Campanário é uma das principais fornecedoras da Raízen no Mato Grosso do Sul. Em agosto de 2022, a empresa foi homenageada pela multinacional com o título de “Produtor de Excelência” e foi reconhecida como “modelo de gestão de sustentabilidade” pelo programa Elo Raízen.

No mês passado, em março de 2023, o grupo recebeu um novo aporte financeiro. Desta vez, do fundo soberano de Singapura, o GIC, que se tornou um dos maiores acionistas da Raízen, adquirindo 5,09% das ações.

Confira abaixo outras sobreposições de usineiros e canavieiros em TIs, segundo dados do Incra:

FAMÍLIA PLANTOU CANA EM TERRA INDÍGENA COM DINHEIRO DO BNDES

O conflito da família Rezende Barbosa com os Guarani Kaiowá vem de longa data. Em 1972, Roberto — então diretor da Companhia Agrícola e Pastoril Campanário — enviou à Funai um pedido para que a instituição retirasse “cerca de 76 índios Kaiwá” que viviam dentro da fazenda de 19,7 mil hectares, comprada um ano antes. Poucos meses depois, em plena ditadura militar, a Funai enviou uma missão antropológica que constatou a presença dos indígenas desde 1927 — muito antes, portanto, da chegada dos usineiros paulistas.

BNDES apoiou projetos em terras indígenas. (Foto: Maria Luisa Mendonça/Rede Social de Justiça)

Em 2012, um relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos denunciou o grupo Nova América, dos Rezende Barbosa, por realizar o plantio de cana dentro de uma terra indígena vizinha, a TI Guyraroká, em Caarapó, utilizando financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Também pertencente ao povo Guarani Kaiowá, o território possui um papel central na discussão sobre o Marco Temporal. Em 2014, o procedimento administrativo de demarcação da TI Guyraroká foi anulado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), acolhendo a tese de produtores rurais da região de que os indígenas só teriam direito ao território se pudessem comprovar sua ocupação ininterrupta desde 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Essa tese não considera que milhares de indígenas foram continuamente expulsos de suas terras antes, durante e depois da aprovação da lei maior, só conseguindo retomá-los em anos recentes.

O processo da TI Guyraroká foi reaberto em 2021, tornando-se um caso de repercussão geral. Isto é, caso seja validada pelo STF, a tese do Marco Temporal poderá ser aplicada para todas as terras indígenas do Brasil, o que, na prática, colocará um fim à demarcação de novos territórios.

Os Rezende Barbosa também violam os direitos dos Guarani Kaiowá do outro lado da fronteira. No Paraguai, onde a etnia se assume como Pãi Tavyterã, a família foi proprietária da Estância Lagunita, no Distrito de Ypejhú, no departamento de Canindeyú, em conurbação com Paranhos (MS). O email de contato, nos registros oficiais da empresa, era o do administrador da Nova América Agrícola Caarapó Ltda, empresa sócia da Cosan – do lado brasileiro da fronteira, portanto.

Em agosto de 2015, a Estância Lagunita foi o cenário do sequestro e morte de um dos funcionários da fazenda, o administrador Silvio Deip Barboza, em um ataque atribuído ao grupo guerrilheiro Exército do Povo Paraguaio (EPP). A história foi contada por este observatório no especial De Olho no Paraguai.

USINAS QUE INVADEM TERRITÓRIO KAIOWÁ SE DECLARAM “SUSTENTÁVEIS”

Em fevereiro de 2022, a International Finance Corporation (IFC), fundo de investimentos em desenvolvimento vinculado ao Banco Mundial, anunciou um aporte de US$ 30 milhões na Usina Santa Adélia, destinado à renovação das áreas de cana e à efetivação de um projeto de irrigação, com o propósito de “mitigar mudanças climáticas”. Outros US$ 20 milhões foram levantados junto ao banco holandês Rabobank.

Usina Santa Adélia, em Jaboticabal (SP), compra cana de área indígena no MS. (Foto: Divulgação)

Parte do sistema Coopersucar, a Usina Santa Adélia pertence à família Bellodi, de Jaboticabal (SP). Segundo o Incra, o clã possui seis sobreposições na TI Dourados-Amambaipeguá I, todas no município de Amambai, somando 2.943,47 hectares, divididos entre quatro familiares e duas empresas. Isso significa 5% da área pretendida pelos Guarani Kaiowá no processo de demarcação.

Esse não foi o único aporte do IFC a grupos vinculados à sobreposição em áreas indígenas. Entre 2021 e 2022, o banco liberou à gigante Amaggi dois empréstimos, de US$ 180 milhões e US$ 30 milhões, para ampliar a rastreabilidade nas cadeias de algodão e soja. A trader foi tema de reportagem específica sobre o setor de grãos: ““Os Invasores” mostra participação de gigantes da soja em sobreposições de terras indígenas“.

Também em Amambaí, a Fazenda Três Barras avança 130 hectares dentro da mesma Terra Indígena. A fazenda pertence à Usina Três Barras, que desde 2018 passou a ser controlada pela Vita Bioenergia, após um investimento de R$ 461 milhões.

Com sede no Rio de Janeiro, a Vita Bioenergia tem capital estadunidense: possui como sócia a Cousley Wood LLC, empresa de Brookline, no estado de Massachusetts. A Vita é administrada pelo escocês Patrick Mailer-Howat, ex-executivo do HSBC, Banco de Boston e Citibank. Segundo Mailer-Howat, as unidades do grupo, incluindo a Usina Três Barras, são “à prova de futuro, pois atenderão a todos os critérios legislativos e ambientais atuais e esperados”.

OBSERVATÓRIO DESTACA CASOS EM SÉRIE DE REPORTAGENS

As 1.692 sobreposições em terras indígenas reveladas pelo relatório “Os Invasores” comprovam que a violação dos direitos indígenas não é um mero subproduto do capitalismo agrário. Entre os atores dessa política de expansão desenfreada sobre os territórios tracionais estão algumas das principais empresas do agronegócio brasileiro e global.

Os casos descritos na pesquisa estão sendo detalhados também em uma série de vídeos e reportagens, publicada pelo observatório. Em muitos casos elas trazem informações complementares às do dossiê, mostrando as principais teias empresariais e políticas que conectam os “engravatados”, em cada setor econômico, legal ou ilegal.

Confira abaixo o vídeo sobre o dossiê:

 | Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |

|| Hugo Souza é jornalista e editor do portal Come Ananás. ||

|||  Tonsk Fialho é estudante de Direito na UFRJ e pesquisador, com foco em sindicatos e movimentos sociais. |||

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