Denunciada por “soja suja” na OCDE, Cargill tem parceiros com sobreposição em terras indígenas

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Sócios no Mato Grosso das gigantes Amaggi e Bom Futuro têm negócios com a empresa dos EUA e registram conflitos com os povos originários; dossiê Os Invasores mostra como incidências em TIs no PA e no MS são protagonizadas por fornecedores da transnacional

Por Hugo SouzaLuma Ribeiro Prado e Tonsk Fialho

Relatório mostra participação de setores do agronegócio no ataque aos direitos indígenas.

A transnacional Cargill, uma das gigantes dos grãos no mundo, foi denunciada, na quinta-feira (04), à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) por falhar em seus processos de diagnósticos de riscos socioambientais. Segundo a ClientEarth, organização não-governamental (ONG) focada nas questões de Direito Ambiental, a Cargill faz diligências “de má qualidade”, que aumentam o “risco de que a carne vendida em supermercados em todo o mundo seja impactada com o que chama ‘soja suja’”.

As diligências da empresa deveriam analisar diversos aspectos de sua linha de produção, incluindo não comprar de quem desmata ou invade. No entanto, as parcerias comerciais da empresa estadunidense no Brasil têm um histórico de conflitos com os povos indígenas, provocadas pelas sobreposições em territórios dos povos originários, aponta o relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, em breve também em inglês e espanhol.

Assim como a Cargill, seus parceiros brasileiros, apontados no documento, são grandes sojeiros, sócios e conselheiros dos grupos Amaggi e Bom Futuro, ambos do Mato Grosso, e pertencentes a duas poderosas famílias com relação de parentesco entre si: os Maggi e os Maggi Scheffer.

No caso da Amaggi, o presidente do Conselho de Administração do grupo, Pedro Jacyr Bongiolo, e o acionista Itamar Locks têm áreas sobrepostas à Terra Indígena (TI) Tirecatinga, do povo Nambikwara Halotesu. No grupo Bom Futuro, o sócio José Maria Bortoli sobrepõe os limites de sua propriedade à TI Enawenê-Nawê, onde estão os indígenas de mesmo nome e outros grupos isolados. Nessa mesma área, as Pequenas Centrais Hidrelétricas das duas empresas impactam negativamente o território.

Entre as relações comerciais da Amaggi com a Cargill está a criação da Strada, uma joint venture de serviços logísticos com outras empresas internacionais. Com a Bom Futuro, os negócios valeram uma homenagem da Cargill aos irmãos Maggi Scheffer, sócios do grupo: o troféu “Parceiro de Ouro”.

LÍDER DA AMAGGI TEM TERRAS EM ÁREA INDÍGENA CONTAMINADA POR AGROTÓXICOS

Presidente do Conselho da Amagi, Pedro Jacyr Bongiolo, tem terras sobrepostas a áreas indígenas. (Foto: Divulgação)

Desde 2002 ocupando a presidência do Conselho de Administração da Amaggi, o produtor de soja, milho e algodão Pedro Jacyr Bongiolo é dono da Fazenda Matão, em Sapezal (MT), que se sobrepõe, nos limites da propriedade, com a TI Tirecatinga. O imóvel é citado no Linkedin da PG Bongiolo Agropecuária, que gere as fazendas do empresário, como um dos pilares de seus negócios.

Além de Bongiolo, outro acionista da Amaggi opera no entorno da mesma TI. Cunhado de Blairo e seu colega na lista de bilionários da Forbes, Itamar Locks é dono da Agropecuária Locks, que possui duas sobreposições limítrofes à TI Tirecatinga: a Fazenda Globo, de 8,8
mil hectares, e a Fazenda Itavera, de 1,8 mil hectares. Ele é irmão de Sedeni Lucas Locks, cuja empresa KLM Participações é acusada pelo Greenpeace, desde 2006, de invadir ilegalmente o território do povo Irantxe-Manoki para expandir a produção de soja da Fazenda Membeca, que avança 4.450 hectares na área de reestudo da TI Manoki, em Brasnorte (MT).

Embora tenha finalizado seu processo de demarcação em 1991, a TI Tirecatinga sofre com a proximidade da soja e milho transgênicos, que vêm devastando a segurança alimentar do povo Nambikwara Halotesu. Segundo relatório de 2022 da Operação Amazônia Nativa (Opan), oito em cada nove amostras de ervas medicinais e frutas coletadas no território indígena continham traços de contaminação por agrotóxicos.

Depois de doze anos na presidência do conselho, Pedro Jacyr Bongiolo deixará o comando da Amaggi em junho, como parte do processo de reestruturação da companhia. Em seu lugar assumirá Sergio Luiz Pizzatto, acusado em 1999 de desmatar 11,9 hectares de floresta na Fazenda São Gabriel, em Sorriso (MT). Mais de vinte anos depois, o próximo mandatário do Conselho de Administração da Amaggi ainda se recusa a recuperar a área desmatada, questionando judicialmente a autoria do crime ambiental. Em 2019, o juiz César Augusto Bearsi, da 3ª Vara Federal Cível da SJMT, decidiu pela obrigação do executivo de recuperar a área degradada. Pizzatto tenta recorrer.

Ex-ministro e ex-governador do MT, Blairo Maggi comanda a parceira da Cargill, Amaggi. (Foto: Divulgação)

A Amaggi tem sede em Cuiabá e é capitaneada por Blairo Maggi, ministro da Agricultura entre 2016 e 2018, durante o governo Temer, antes senador, governador do Mato Grosso por dois mandatos. Sua receita foi de R$ 38,21 bilhões em 2022, quando se manteve como uma das principais empresas do agronegócio brasileiro. O político e sua mãe aparecem entre os quinze bilionários do agronegócio listados pela Forbes em seu ranking mais recente de pessoas mais ricas do mundo.

Com escritórios na China, Holanda, Noruega, Suíça e Singapura, além de 74 unidades espalhadas por nove estados, o carro-chefe do conglomerado é a exportação de soja, milho e algodão. Em 2021, a empresa contava com mais de 9 mil fornecedores brasileiros, 40% deles no Mato Grosso. Para facilitar o escoamento, a gigante anunciou a criação da Strada, joint venture de serviços logísticos em parceria com a própria Cargill, a também estadunidense Archer Daniels Midland (ADM) e a francesa Louis Dreyfus, que competirá com a Vector, da Bunge.

Em agosto de 2021, a Amaggi recebeu um aporte de US$ 180 milhões do International Finance Corporation (IFC), braço financeiro do Banco Mundial, para implementar um sistema de rastreabilidade em sua cadeia de algodão. O empréstimo foi complementado por outros US$ 29,5 milhões provenientes dos bancos europeus Rabobank e Santander.

Em 2022, organizações de certificação de cadeias produtivas como Global Canopy e Carbon Disclosure Project (CDP) incluíram o grupo entre os melhores do mundo no que se refere a medidas contra o desmatamento e gestão de sua cadeia.

DONOS DA BOM FUTURO TÊM FAZENDA QUE ULTRAPASSA LIMITE DE ÁREA INDÍGENA

Fundado pelos irmãos Maggi Scheffer, primos de Blairo Maggi, o Grupo Bom Futuro possui mais de 600 mil hectares de cultivo, com destaque para a soja, milho e algodão, além de 109 mil cabeças de gado. O fio que conecta a Bom Futuro a propriedades sobrepostas em terras indígenas passa por um de seus executivos: José Maria Bortoli, cunhado de Eraí Maggi Scheffer, possui uma propriedade de 1.669 hectares em Sapezal (MT), a Fazenda Progresso, que conforme o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) avança em 20 hectares no interior da TI Enawenê-Nawê, regularizada desde 1996. Trata-se, portanto, de uma área irregular.

Aldeia do povo Enawenê-Nawê, no Mato Grosso. (Foto: Guilherme Cavalli/Cimi)

É histórica a tensão entre os Maggi Scheffer e o povo Enawenê-Nawê. Na região, o curso do Rio Juruena tem sido prejudicado pelas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) da Amaggi e Bom Futuro. Segundo relatório do biólogo Francisco de Arruda Machado, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a ação das empresas altera o curso dos rios e afeta diretamente a segurança alimentar dos Enawenê-Nawê. Em entrevista ao portal RDNews, o pesquisador associou a presença desses empreendimentos ao aumento de suicídios entre indígenas da etnia, que tem sua ancestralidade ligada à pesca e à proteção dos rios. No Rio Juruena, a Amaggi é responsável pelas PCHs Ilha Comprida, Segredo e Divisa; o Bom Futuro administra as PCHs Parecis, Rondon, Sapezal, Telegráfica e Cidezal.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, o povo Enawanê-Nawê tornou-se vítima da tática de “dividir para dominar”. Em 2021, um líder comunitário encontrou-se com o então presidente, causando atritos no território. Na ocasião, conforme relatado pelo jornal Brasil de Fato, foram protocolados “pedidos de licenciamento ambiental para desmatar a área e de maquinário para introduzir a agricultura mecanizada no território”. Em reação, seis líderes do povo (incluindo quatro caciques) manifestaram-se publicamente contra a ação do parente, afirmando que seu posicionamento não representa a comunidade.

Eraí Maggi Scheffer é sócio e sogro de Boroli, que tem terras sobrepostas a terras indígenas. (Foto: Redes Sociais)

Entre os irmãos-donos do Grupo Bom Futuro, Elusmar e Eraí Maggi Scheffer foram citados em 2016, ao lado da Amaggi, por suspeita de participação naquele que foi considerado pelo Ministério Público Federal (MPF) um dos maiores esquemas de desmatamento já detectados na Amazônia. Os procuradores investigavam a destruição de 300 quilômetros quadrados de florestas entre 2012 e 2015. A suspeita era de que a Amaggi e o Bom Futuro transferiram R$ 10 milhões para financiar um grupo de grileiros e desmatadores liderados por Antônio José Junqueira Vilela Filho, o AJJ. Eraque Maggi Scheffer, irmão e sócio da empresa, foi multado por destruição de flora na Fazenda Iguaçu, em Rondonópolis (MT).

Em 2008, Elusmar, Eraí e Fernando Maggi Scheffer, irmãos e sócios do Grupo Bom Futuro, foram processados após fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) por manter 41 trabalhadores em condições análogas à escravidão na Fazenda Vale do Rio Verde, em Tapurah, a 445 quilômetros de Cuiabá. O caso correu até 2013, quando o juiz Jeferson Schneider, da 5ª vara da Justiça Federal em Mato Grosso, decidiu absolver os sojicultores. Também foram inocentados Caetano Polato (dono da fazenda) e José Maria Bortoli, cunhado de Eraí.

Apesar de figurar entre os três principais grupos produtores de soja do país, o Bom Futuro não se destaca pelas exportações. Boa parte de sua produção é escoada pela Amaggi e traders parceiras, como a Cargill, que, em dezembro de 2022, concedeu à empresa dos irmãos Maggi Scheffer o troféu “Parceiro de Ouro”, em reconhecimento aos anos de atuação conjunta em Mato Grosso.

CARGILL COMPRA SOJA DE FAZENDAS SOBREPOSTAS A TERRAS INDÍGENAS

Indígenas do povo Munduruku do Planalto Santareno, no Pará, vivem espremidos em meio a fazendas de pecuária e monocultivo de soja e milho enquanto aguardam pela identificação e delimitação da área que reivindicam desde 2008. São dez produtores de grãos e gado ligados ao Sindicato Rural de Santarém (Sirsan) possuem fazendas nos limites ou dentro da terra indígena, já havia contado o De Olho nos Ruralistas, em 2020.

Devastação na Terra Indígena Munduruku, local onde atuam fazendeiros fornecedores da Cargill. (Foto: Christian Braga/Greenpeace)

Esses ruralistas acionaram a Justiça, em setembro de 2018, para serem considerados “litisconsortes passivos necessários” na ação movida pelo Ministério Público Federal questionando a demarcação da terra munduruku, incidindo nos municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, na região conhecida como Baixo Amazonas, no Pará.

Segundo Adriano Maraschin, presidente do Sirsan em 2018 e 2019, todos os produtores de soja de Santarém, Belterra e Mojuí estavam autorizados a fornecer para a multinacional Cargill. Só em Santarém são 235 famílias produtoras, com propriedades de, em média, 300 hectares. “Todos os produtores aqui da nossa região são cadastrados na Cargill, que só compra a soja se você não tiver desmatamentos”, afirmou Maraschin em outubro de 2018 em entrevista à a um jornal local, O Impacto. Dados da plataforma Trase confirmam que toda a produção de soja de Santarém e Mojuí dos Campos em 2017 e 2018 foi vendida e exportada pela Cargill.

Os Munduruku do Planalto Santareno, no oeste do Pará, aguardam desde 2008 pela identificação e delimitação de seu território ancestral. Esta é a primeira etapa do processo de demarcação. Nessa área vivem 607 indígenas, divididos em quatro aldeias: São Francisco da Cavada, Amparador, Ipaupixuna e Açaizal.

No Mato Grosso do Sul, as plantas processadoras da Cargill compram diretamente de arrendatários da Fazenda Brasília do Sul, em Juti (MS), área reivindicada pelos Guarani Kaiowá, segundo a pesquisa “Sangue indígena: a verdade incômoda por trás do frango exportado para a Europa“, elaborada pela ONG Earthsight e pelo De Olho nos Ruralistas, divulgada em 2022.

VEJA AS RESPOSTAS DE CARGILL, AMAGGI E BOM FUTURO

Objetivos da Cargill sempre falam em sustentabilidade. (Foto: Divulgação)

Em nota, a Cargill afirmou que não faz parte da ação movida pelo Sirsan e não consta em nenhum dos autos. A empresa informou ter sido um dos principais apoiadores da Moratória da Soja na Amazônia, em que se compromete a não comprar soja de terras desmatadas após 2008. Perguntada sobre a relação com os membros do Sirsan, a empresa não respondeu. Veja a nota da Cargill na íntegra.

Sobre as denúncias enviadas à OCDE, a Cargill afirmou ao The Guardian que não compra soja de agricultores que desmatam terras em áreas protegidas e dispõe de controles vigorosos “para impedir que produtos não conformes entrem em nossas cadeias de suprimentos”.

A Amaggi declarou à reportagem que não é proprietária das fazendas. No caso relacionado à Bongiolo, a nota afirma tratar-se de uma sobreposição de 0,59 hectares, gerada por uma “divergência de bases geográficas utilizadas, que nem sempre acompanham os limites naturais, como no caso específico o rio que separa a fazenda da TI”. “Sobreposição ínfima em área de mata nativa totalmente preservada e que em nenhum momento configura disputa por terra e nem intenção de utilização para outros fins, que não a conservação”.

Os mesmos motivos são atribuídos aos imóveis de Itamar Locks que, afirma a Amaggi, referem-se a apenas 0,27 hectares. Confira a nota na íntegra aqui. O Grupo Bom Futuro informou que não irá se posicionar. O Sersan não respondeu.

OBSERVATÓRIO DESTACA CASOS EM SÉRIE DE REPORTAGENS

As 1.692 sobreposições em terras indígenas reveladas pelo relatório “Os Invasores” comprovam que a violação dos direitos indígenas não é um mero subproduto do capitalismo agrário. Entre os atores dessa política de expansão desenfreada sobre os territórios tracionais estão algumas das principais empresas do agronegócio brasileiro e global. Vale lembrar que muitas dessas empresas também se beneficiaram da política de desarmamento do antigo governo Bolsonaro, conforme apontou outro relatório desse observatório, “Oligarquias Armadas“, publicado em 2022.

Confira abaixo o vídeo sobre o relatório:

Os casos descritos na pesquisa estão sendo explorados também em uma série de vídeos e reportagens deste observatório. Com detalhes — muitos deles complementares ao dossiê — sobre as principais teias empresariais e políticas que conectam os “engravatados”, em cada setor econômico, legal ou ilegal.

Hugo Souza é jornalista e editor do portal Come Ananás. |

|| Luma Ribeiro Prado é historiadora e pesquisadora do De Olho nos Ruralistas. ||

|||  Tonsk Fialho é estudante de Direito na UFRJ e pesquisador, com foco em sindicatos e movimentos sociais. |||

Foto principal (Divulgação): Cargill é mais uma empresa multinacional a falar em “sustentabilidade”

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