Dossiê “Os Invasores II” identificou 41 proprietários com áreas incidentes em TIs que financiaram campanha à reeleição; lista tem políticos do Mato Grosso do Sul, como o deputado estadual Zé Teixeira, a filha do ex-governador Pedro Pedrossian e ex-prefeito de Sidrolândia
Por Bruno Stankevicius Bassi
As doações de fazendeiros com imóveis sobrepostos a terras indígenas (TIs) a políticos não incluem apenas membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Publicado na última quarta-feira (14), o dossiê “Os Invasores II” revelou, com base no cruzamento de dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) com as prestações de contas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que 18 deputados e senadores ruralistas receberam R$ 3,64 milhões de proprietários com incidência em TIs. Esse levantamento especifício ganhou repercussão no Congresso em Foco e no Estado de Minas. O relatório teve destaque também no UOL, na coluna de Carlos Madeiro, e na Folha, na coluna da líder indígena Txai Suruí.
A bancada ruralista não é a única beneficiária do dinheiro de invasores. Ao todo, esse grupo abasteceu 29 campanhas políticas em 2022, totalizando R$ 5.313.843,44. Desse total, 21,9% foi destinado ao candidato derrotado à Presidência da República, Jair Bolsonaro (PL). O ex-presidente recebeu R$ 1.163.385,00 de 41 fazendeiros identificados com sobreposições em terras indígenas. Juntos, eles controlam uma área de 107.847,99 hectares, incidente em 23 áreas demarcadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
O maior doador de Bolsonaro nessa relação foi Cirineu de Aguiar, sócio da Agropecuária Calupa, dona de duas áreas sobrepostas à TI Apiaká do Pontal e Isolados, no Mato Grosso. Cirineu é irmão de Paulo Sérgio de Aguiar, que presidiu, de 2019 a 2022, a Associação Mato-grossense dos Produtores de Algodão (Ampa), uma das organizações que contribui mensalmente com o envio de verbas para o Instituto Pensar Agro, a ONG responsável por financiar a FPA. A cúpula da frente ruralista também foi beneficiada pelo algodoeiro: juntos, o presidente Pedro Lupion (PP-PR), o vice Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) e o coordenador político na Câmara Fábio Garcia (União-MT) receberam R$ 59 mil de Cirineu de Aguiar: “Fazendeiros com sobreposições em TIs doaram R$ 3,6 milhões para ruralistas“.
Integram também a relação de doadores os irmãos Adelar, Valdir e Fernando Jacobowski, sócios da Jacó Agro e donos da Fazenda São Gabriel, com 2,58 hectares sobrepostos nas margens da TI Menkü, do povo Myky, em Brasnorte (MT). Juntos, eles repassaram R$ 151,5 mil a Bolsonaro.
No município de Itaporã (MS), Waldir da Silva Faleiros é dono da Fazenda Vazante, que possui 13.626,94 hectares incidentes na área de reestudo demarcada da TI Cachoeirinha. Trata-se da sexta maior sobreposição em terra indígena do Brasil, ocupando 37% da área total delimitada para a ampliação do território do povo Wedezé. Até o outubro de 2022, Faleiros foi dono da Agro Jangada, distribuidora de agrotóxicos e insumos agrícolas comprada pela Syngenta. O observatório mostrou que a própria multinacional sino-suíça foi dona de uma área sobreposta em TI: “Syngenta foi dona de fazenda sobreposta à TI Porquinhos, no Maranhão“. O fazendeiro doou R$ 73 mil à campanha de Bolsonaro.
O candidato vitorioso, Luiz Inácio Lula da Silva, não recebeu nenhuma doação deste tipo.
Confira abaixo a lista com as doações acima de R$ 10 mil realizadas por proprietários rurais com terras incidentes em TIs:
POLÍTICOS DO MATO GROSSO DO SUL APOIARAM CANDIDATURA DE BOLSONARO
A lista de doadores de Jair Bolsonaro vinculados à sobreposição em terras indígenas inclui outros políticos. Ex-prefeito de Sidrolândia (MS) entre 2013 e 2016, Ari Basso (PSDB), doou R$ 100 mil para a campanha à reeleição do capitão. Ele ganhou projeção nacional no pleito anterior, ao desenhar um “agroglifo” em uma plantação de soja com a mensagem “Bolsonaro 2018”, em letras maiúsculas. O mimo foi retribuído pelo capitão durante seu período na Presidência da República, ao visitar a fazenda de Basso enquanto passava pelo município.
Basso é dono da Fazenda Cascata, com 226,68 hectares sobrepostos à TI Buriti, no mesmo município que comandou. Em 2013, o ex-prefeito foi denunciado por líderes indígenas por ter se omitido na investigação do assassinato de Oziel Terena, morto por agentes da Polícia Federal durante a reintegração de posse da Fazenda Buriti. Ligado à Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Basso não compareceu ao velório de Oziel, que era funcionário da prefeitura de Sidrolândia. O imóvel pertence ao ex-secretário e ex-deputado estadual Ricardo Bacha (Cidadania-MS), cujo caso integra um dos capítulos do relatório “Os Invasores II“, sobre o Mato Grosso do Sul.
Colega de Bacha na Assembleia Legislativa, Zé Teixeira (PSDB-MS) doou R$ 10 mil do próprio patrimônio para Bolsonaro. Em seu sétimo mandato, o deputado estadual é protagonista de um conflito histórico contra os Guarani Kaiowá em Caarapó (MS), onde sua Fazenda Santa Claudina está integralmente sobreposta à TI Guyraroká. Ele é o deputado mais rico do Mato Grosso do Sul: seu patrimônio de R$ 46,4 milhões inclui o território em litígio.
Em 2014, o procedimento administrativo de demarcação da TI Guyraroká foi anulado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), acolhendo a tese de produtores rurais da região — entre eles, Zé Teixeira — de que os indígenas só teriam direito ao território se pudessem comprovar sua ocupação ininterrupta desde 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. O processo da TI Guyraroká foi reaberto em 2021 e se tornou um caso de repercussão geral, assim como o da TI Ibirama-La Klãnõ, em Santa Catarina. Esse julgamento vem sendo continuamente postergado pelo STF para priorizar a votação, no Congresso, do PL do Marco Temporal.
Em 2017, Teixeira subiu à tribuna da Assembleia para atacar o Supremo, após a corte determinar a prisão dos cinco fazendeiros apontados como mandantes do Massacre de Caarapó, que culminou no assassinato do agente de saúde indígena Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, em 14 de junho de 2016, na Fazenda Yvu. Um dos investigados, Jesus Camacho, é dono de 1.777,28 hectares sobrepostos à TI Dourados-Amambaipeguá I. O fazendeiro doou R$ 5 mil à campanha de Bolsonaro.
Com uma doação menor, de R$ 1 mil, aparece Regina Maura Pedrossian, filha do ex-governador sul-mato-grossense Pedro Pedrossian. Ela e o irmão Pedro Paulo Pedrossian herdaram do pai a Fazenda Petrópolis, com 2.250 hectares. Dados do Incra mostram que 1.172,81 hectares avançam sobre a TI Cachoeirinha. Os dois já figuravam em diversas ações de reintegração de posse contra as retomadas do povo Terena, impetradas entre 2008 e 2018, reivindicando a remoção de famílias que ocupavam partes da fazenda. Pedro Paulo é pai do deputado estadual Pedrossian Neto.
TARCÍSIO, LEITE E RIEDEL RECEBERAM DINHEIRO DE FAZENDEIROS COM SOBREPOSIÇÃO
Jair Bolsonaro não foi o único membro do Executivo que recebeu doações eleitorais de fazendeiros com sobreposição. Financiadores de Tereza Cristina, John Francis Walton e Renato Eugênio de Rezende Barbosa contribuíram para a eleição de dois governadores: Walton repassou R$ 15 mil para a candidatura de Eduardo Riedel (PSDB) ao governo de Mato Grosso do Sul; o antigo sócio da Cosan enviou R$ 10 mil para Tarcísio de Freitas (Republicanos), o atual governador paulista.
Tarcísio foi ministro da Infraestrutura durante o governo Bolsonaro. Ele recebeu outras duas doações de fazendeiros identificados na pesquisa. Vincenzo Antonio Spedicato, diretor do Grupo Intelli, doou R$ 25 mil. Ele é sócio das empresas Intelli Indústria de Terminais Elétricos e Coppersteel Bimetálicos, que concentram 16.923,29 hectares sobrepostos à área pretendida para ampliação da TI Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, no Maranhão. Em 2022, Spedicato recebeu o prêmio internacional “Pugliesi nel Mondo“, uma homenagem a cidadãos nascidos na região da Puglia, na Itália, que desenvolvem atividades econômicas e culturais em outros países. Ele também é um dos doadores de Bolsonaro.
Outros R$ 10 mil para Tarcísio saíram do bolso de Marcos de Almeida Prado, dono da Fazenda Taquarussu, que incide nas bordas da TI Dourados-Amambaipeguá I, no Mato Grosso do Sul.
Em 30 de maio de 2023, data da votação do Marco Temporal na Câmara, Tarcísio ordenou à Polícia Militar que atacasse uma manifestação do povo Guarani Mbya que bloqueava a Rodovia dos Bandeirantes em protesto contra o PL 490/2007. O ataque da força policial deixou mulheres e crianças feridas. Na mesma semana, o secretário de Justiça e Cidadania de São Paulo, Fábio Prieto, saiu publicamente em defesa do Marco Temporal.
A campanha do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB) recebeu R$ 5 mil em doação de Edgar Cherubini, empresário gaúcho e um dos donos da Sinopema. Essa madeireira é responsável pela quarta maior sobreposição em terras indígenas no Brasil, ocupando 20.570,01 hectares da área reivindicada para criação da TI Batelão, em Mato Grosso. Junto ao primo Alvarez Cherubini, Edgar doou R$ 25 mil a Bolsonaro.
Em resposta aos dados do relatório, ele destacou que “só se pode afirmar a existência de ‘terra indígena’ quando homologada por Decreto do Presidente da República”. O empresário informou que a área que hoje integra a Fazenda Sinopema foi loteada pelo Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat) a partir de 1959 e, na época, a organização não indicava “qualquer presença ou perambulação de indígenas em suas terras”. Sobre as doações eleitorais, Edgar Cherubini informa que elas “nada tem de relação com o objetivo anterior”. “Todo e qualquer cidadão brasileiro tem plena liberdade de dispor dos seus recursos financeiros para campanhas eleitorais, conquanto atendida a Legislação e Código Eleitoral”, finaliza. Confira aqui a íntegra.
Foto principal (Isaac Amorim/MJ): ex-presidente posou de cocar ao lado do ex-ministro da Justiça Anderson Torres
| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |
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