“Vão ter que matar muita gente”, diz deputado bolsonarista que tenta impedir desintrusão da TI Apyterewa

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Delegado Caveira (PL-PA) usou tribuna para incitar violência contra indígenas em São Félix do Xingu; ele teve campanha financiada pelos donos do quarto maior frigorífico do país, a Frigol; empresa comprava gado criado no interior da terra indígena

Por Tonsk Fialho e Luís Indriunas

“Ou vai morrer gente de um lado, ou vai morrer gente de outro”. Foi assim que o deputado federal Delegado Caveira (PL-PA) se referiu à ação de desobstrução da Terra Indígena (TI) Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), conduzida pela Força Nacional de Segurança Pública. Proferida na tribuna da Câmara, a incitação à violência foi publicada pelo paraense em suas redes sociais no dia 05 de outubro, três dias após o início da operação. “Eles vão ter que matar muita gente para desobstruir essa área pretensa indígena Apyterewa”, ameaçou o deputado. 

Força Nacional inicia operação na TI Apyterewa, em 02 de outubro (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

A “previsão” de Caveira se cumpriu: no dia 16 de outubro, foi encontrado o corpo de Oseias dos Santos Ribeiro, atingido por um tiro de fuzil na Vila Renascer, comunidade com cerca de 210 famílias, instalada ilegalmente dentro da TI. A Força Nacional assumiu a autoria da morte e disse que a vítima tentou arrancar a arma de um soldado. Desde o dia 02 de outubro, agentes da Força Nacional, Polícia Federal, Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) atuam para expulsar fazendeiros e garimpeiros que exploram as terras e as águas do território, localizado na margem direita do Rio Xingu.  

A TI Apyterewa, onde vivem os Parakanã (autodenominados Awaeté), foi a área com maior índice de desmatamento nos últimos quatro anos no Pará, segundo levantamento do Instituto do Homem e do Meio Ambiente na Amazônia (Imazon). Foram 324 km² de floresta destruídos, superior ao tamanho de Fortaleza.

O ataque histriônico de Caveira favorece alguns de seus principais doadores de campanha: os sócios da Frigol, quarto maior frigorífico do Brasil, com sede em Lençóis Paulista (SP). Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os fundadores Durval e Dorival Gonzaga de Oliveira, irmãos, e seus familiares Benedito Bento de Oliveira, Marisa Bento de Oliveira e Letícia Amélia de Oliveira — Letícia integra o Conselho de Administração — doaram, cada um, R$ 2 mil ao candidato bolsonarista, totalizando R$ 10 mil.

Na última década, a empresa foi continuamente acusada de comprar gado de invasores da TI Apyterewa: dados do relatório “Boi pirata: a pecuária ilegal na Terra Indígena Apyterewa“, publicado no início do mês pelo Ministério Público Federal (MPF), apontam que o frigorífico adquiriu 501 cabeças de gado oriundas de quatro fazendas ilegais, segundo análise das Guias de Trânsito Animal (GTAs) emitidas entre 2012 e 2022. A última remessa direta à Frigol ocorreu em junho de 2015.

Signatária do Programa Boi na Linha, parceria entre o MPF e a ONG Imaflora, a empresa obteve 100% de conformidade em auditoria do TAC da Carne, relativa ao período de julho de 2019 a junho de 2020. Uma apuração de 2022 da Repórter Brasil, no entanto, mostrou que a Frigol continuava comprando gado oriundo da TI Apyterewa de forma indireta, por meio de fazendas vizinhas ao território. Em resposta, a empresa negou qualquer irregularidade e destacou o compromisso de monitorar 100% de seus fornecedores indiretos até 2030.

Procurada pela reportagem a respeito das declarações do Delegado Caveira, a Frigol afirmou não compactuar com práticas “que firam direitos individuais e/ou com uso de força ou desinformação”. Em nota, o frigorífico afirma ainda apoiar a “livre manifestação, sempre pautada pela legalidade, respeito às instituições, bem como livres de violência”. Sobre a operação da força-tarefa na TI Apyterewa, a empresa considera a ação “bem-vinda” e informa que nenhum fornecedor direto foi afetado. Confira a íntegra aqui.

EX-FORNECEDORES DA FRIGOL TIVERAM GADO APREENDIDO EM OPERAÇÃO

Pecuarista Derly Ramiro foi preso com espingarda sem registro em fazenda dentro da TI Apyterewa. (Foto: Divulgação/PF)

A partir da análise das coordenadas geográficas e dos números de registro de fazendas apontadas no relatório do MPF, De Olho nos Ruralistas identificou os nomes de cinco pecuaristas que forneceram gado à Frigol entre 2012 e 2015. Juntos, eles tiveram 1.099 animais apreendidos pelo Ibama, como parte da força-tarefa iniciada em setembro.

Dono da Fazenda Dois Irmãos, cujos 546,92 hectares incidem diretamente sobre a TI, o pecuarista Derly dos Santos Ramiro foi preso pela Polícia Federal no dia 03. Junto a ele, foi apreendida uma espingarda sem registro, além de bens pertencentes ao casal Lauanda Guimarães e Rogério Goiano, donos de um posto de gasolina clandestino localizado dentro do território Parakanã, na Vila Renascer. Derly, que vendeu animais para a Frigol em agosto de 2013, foi solto após pagar fiança e responderá ao processo em liberdade.

Além de Derly, integram o levantamento: José Dias Padilha Filho, da Fazenda Progresso, com 490 bois apreendidos pelo Ibama; Bertoldo Aguiar Portilho, da Fazenda São José, com 252 animais capturados; e José Walter Fonseca, do Sítio Montes Claros, com 112 cabeças de gado. Este último emitiu, entre janeiro e junho de 2015, 27 GTAs com destino às plantas de abate da Frigol.

Também integra a lista o político Adebelto Cândido Pereira, candidato a prefeito de São Félix do Xingu em 2012 e dono da Fazenda Sertãozinho. No imóvel, o Ibama embargou 245 cabeças de gado.

Em nota, a Frigol afirmou que todas as propriedades encontram-se bloqueadas em seu sistema de compras. “Das cinco propriedades citadas, reconhecemos a compra de duas através das GTAs mencionadas”, afirma a empresa. “Cabe ressaltar que o período abrangido pelo relatório é anterior ao 1° Ciclo de Auditoria do MPF do Pará, que ocorreu em 2017, referente às compras de gado (fornecedores diretos) no período de 2016”, conclui.

Confira abaixo o mapa com a localização das fazendas dos pecuaristas que foram alvo da força-tarefa:

Pontos brancos mostram locais de apreensão do gado, em operação da PF e Ibama. (Cartografia: Eduardo Carlini/De Olho nos Ruralistas)

PAI DE FINANCIADOR DO 8 DE JANEIRO É PRINCIPAL DOADOR DE CAVEIRA 

Os sócios da Frigol não foram os únicos representantes do agronegócio a compor o financiamento de campanha de Leonildo Mendes dos Santos Sertão, o Delegado Caveira. Além da família Gonzaga Oliveira, o principal doador privado do bolsonarista foi o pecuarista Onício Lauriano, pai de Enric Juvenal da Costa Lauriano, indiciado pelo Relatório Final da CPMI dos Atos Golpistas como financiador de atos antidemocráticos que culminaram na tentativa de golpe de 08 de janeiro.

Pecuarista com interesse no garimpo, Laureano esteve com Bolsonaro. (Foto: Instagram)

Enric é um dos 13 fazendeiros da lista, segundo levantamento deste observatório: “Entre 16 financiadores do golpe denunciados por CPMI,13 são fazendeiros“. Seu pai, Onício, doou R$ 38 mil para o deputado. 

Candidato derrotado a primeiro suplente do ex-senador Flexa Ribeiro (Progressistas – PA) em 2022, Enric é ligado ao garimpo no Pará. Foi citado no relatório como um importante articulador do PL nº 191/2020, que trata da mineração em terras indígenas. 

A maior parte da receita de campanha de Caveira veio do fundo partidário: R$ 500 mil. Por causa desse montante, Caveira corre o risco de perder o mandato, pois enfrenta um processo por fraude eleitoral. O delegado teria recebido dinheiro a mais do fundo destinado a negros do próprio partido, o PL, por se declarar, falsamente, “pardo“.

DEPUTADO É REFERÊNCIA PARA O TERRORISTA GEORGE WHASHINGTON

Ex-soldado do Exército Brasileiro, policial militar no estado de Goiás e delegado da Polícia Civil do Pará, Caveira foi eleito no ano passado com quase 107 mil votos, graças a um discurso político de defesa do agronegócio e do bolsonarismo. Entre seus projetos de lei, ele propõe o uso das forças de segurança pública na retomada da posse de propriedades rurais e urbanas que tenham sido “invadidas” e a tipificação como terrorismo da ocupação de propriedades rurais e urbanas.

O terrorista George Washington (esq.) considera o Delegado Caveira uma referência.
(Reprodução/Facebook)

Filiado ao Partido Liberal, Caveira cresceu ao colar com a imagem do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele foi vereador em São Félix do Xingu e, em 2018, se elegeu deputado estadual. O modo de pensar e agir do delegado se tornou referência para o terrorista George Washington, responsável pelo atentado frustrado no Aeroporto de Brasília em 2022. Mesmo ano em que publicou em suas redes sociais: “Caveira você representa a coragem no Sul do Pará, contamos com você”. 

As conexões de George Washington com o agronegócio paraense foram tema do dossiê “As Origens Agrárias do Terror“, publicado em maio pelo De Olho nos Ruralistas.

No último mês, Caveira participou da coletiva promovida pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e outras 21 frentes, após o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar a inconstitucionalidade da tese do Marco Temporal. Foi nesse evento que a deputada Caroline de Toni (PL-SC) prometeu um “banho de sangue” caso a proposta não virasse lei. Para o delegado, o Judiciário é “o estopim de tudo” e “os produtores rurais não aguentam tanto abuso”. 

O deputado faz questão de ser apontado como um dos líderes da bancada da bala e não se furta a aparecer armado publicamente, causando constrangimento em eventos públicos, incluindo a Assembleia Legislativa do Pará. Em outubro de 2021, após ser vaiado durante uma manifestação, Caveira sacou um revólver e ameaçou o grupo de pessoas que protestava em frente da Câmara Municipal de Concórdia do Pará.

FRIGOL DIZ QUE RASTREIA 100% DOS ANIMAIS, EXPORTADOS PARA CHINA E ISRAEL

Frigol opera há 19 anos no Pará. (Foto: Divulgação)

Em resposta à reportagem, a Frigol destacou as iniciativas de controle de fornecedores diretos que integram o programa Boi na Linha, na qual obteve 100% de conformidade, segundo auditoria do MPF. Sobre a transparência em compras indiretas — principal fonte de “contaminação” por gado ilegal nas cadeias de fornecimento de frigoríficos —, a empresa defende uma política pública de monitoramento individual do gado:

— Hoje não há informações públicas de GTAs (Guias de Trânsito Animal) disponíveis para esse monitoramento, pois possuem dados sensíveis protegidos por LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e não disponibilizados aos frigoríficos.

Para o jornal Valor Econômico, no entanto, a Frigol informou que monitora seus fornecedores com sistemas de georreferenciamento e inteligência artificial e rastreia “100% dos animais originados, como o consumidor final pode checar por meio de QR Codes nas embalagens das carnes vendidas pela empresa no país e no exterior”.

A empresa planeja ampliar em 40% a quantidade de abates diários na planta de Água Azul do Norte (PA), chegando à marca de mil animais. A planta de São Félix do Xingu destaca-se pela produção de carne kosher, produzida dentro dos costumes judaicos. Atualmente, os israelenses são o segundo principal comprador da carne Frigol, atrás da China.

De acordo com representantes do frigorífico, o mercado da China permanece no foco das operações no Pará e a empresa vem procurando um sócio chinês para alavancar os abates. As exportações representaram 53% do lucro líquido do frigorífico em 2022. Em 2022, a Frigol teve faturamento recorde de R$ 3,8 bilhões.

| Tonsk Fialho é pesquisador e repórter do De Olho nos Ruralistas. |

||Luís Indriunas é roteirista e editor do observatório.||

Foto principal (Instagram/Delegado Caveira): deputado aparece armado no ExpoXingu em São Félix do Xingu (PA)

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