Organização ultraconservadora se lança nacionalmente com Bolsonaro e na Bahia com Dida Souza, fundadora do Invasão Zero, presente em nove estados, no Congresso e nas assembleias legislativas; deputados com fazendas em terras indígenas compõem a frente no MS
Por Carolina Bataier e Luís Indriunas
Do sul da Bahia para o Brasil. Criado por latifundiários baianos em abril de 2023, o movimento Invasão Zero vive uma ascensão meteórica. Em menos de um ano de existência, o grupo fomentou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), deu origem a uma nova frente parlamentar no Congresso, arregimentou integrantes em nove estados e se associou ao ultraconservador Instituto Harpia Brasil, fundado em outubro do ano passado.
A atuação nos bastidores se tornou conhecida nacionalmente no dia 21 de janeiro, após membros do Invasão Zero organizarem um ataque a uma retomada do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe na Fazenda Inhuma, no município de Pau Brasil (BA), em área vizinha da Terra Indígena Caramuru/Paraguaçu. Investigada pela Polícia Civil como formação de “milícia rural“, a ação armada resultou na morte da pajé Maria de Fátima Muniz Andrade — a Nega Pataxó — e na hospitalização de seu irmão, o cacique Nailton, baleado no abdômen.
Desde o fim de abril, quando o crime completou um mês, De Olho nos Ruralistas vem publicando uma série de reportagens sobre os líderes do Invasão Zero. Do histórico de conflitos da presidente Dida Souza — ré por tentativa de homicídio contra um ex-funcionário e herdeira de fazendas incidentes em assentamentos da reforma agrária — à conexão do movimento com o lobby do cacau em Brasília, passando pela relação da mãe do assassino José Eugênio Fernandes Amoedo com uma pastora evangélica presa no 8 de janeiro.
A articulação política do Invasão Zero não se limita à defesa de interesses setoriais e à tentativa de criminalizar as ocupações de fazendas improdutivas por movimentos sociais. O grupo é um herdeiro direto de dois inimigos históricos da reforma agrária, símbolos do reacionarismo e da extrema direita no campo: a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), uma das articuladoras do golpe militar de 1964, e a União Democrática Ruralista (UDR), fundada em 1985 por Ronaldo Caiado justamente para combater o recém-criado MST. Sob nova roupagem, eles se unem ao Harpia Brasil, para incidir politicamente e evitar a desapropriação de fazendas.
HARPIA BRASIL RECEBEU ZUCCO E CAIADO EM CONGRESSO DA EXTREMA DIREITA
— Uma vez disse um dos maiores líderes conservadores do mundo: não é enfraquecendo os fortes, que protegeremos os mais fracos. Não é perseguindo os ricos que ajudaremos os mais pobres. Não é discriminando os brancos que combateremos o racismo. Não é prejudicando os que empregam que ajudaremos os empregados. Não é ignorando a maioria que respeitaremos as minorias.
Foi com uma citação do presidente estadunidense Abraham Lincoln que o Major Vítor Hugo (PL-GO), ex-líder na Câmara do governo Bolsonaro, abriu o 1º Congresso do Instituto Harpia Brasil, em 27 de outubro de 2023, em Goiânia. O evento marcou o lançamento da organização ultraconservadora, criada para formar novos líderes de direita e pressionar os governos estaduais e federal contra a reforma agrária e a demarcação de terras indígenas.
Os temas do encontro foram do Hamas ao MST. “Criminosos, terroristas”, bradou o deputado Tenente-coronel Zucco (Republicanos-RS), rresidente da CPI da MST, no ano passado, ao ser perguntado sobre as ocupações do movimento camponês.
Naquela tarde, Jair Bolsonaro recebeu a condecoração de presidente honorário da organização. Seu filho 03, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), já havia sido diplomado pelo instituto, assim como o presidente do partido, Valdemar da Costa Neto. O anfitrião do congresso foi o governador de Goiás e entusiasta do Invasão Zero, Ronaldo Caiado. Fundador da UDR, o político goiano se vangloriou que, em seu estado, movimentos sociais — que ele associa a facções — e ocupações de terras por camponeses não têm vez:
— Goiás é o único estado no Brasil onde não se tem um palmo de terra que seja aqui vinculado ou sob comando ou tutela de facções ou de milícias. Aqui em Goiás, a nossa polícia seca o bagaço. Aqui não tem espaço para bandido.
Entre os palestrantes do dia estavam os deputados Ricardo Salles (PL-SP), relator da CPI do MST, Bia Kicis (PL-DF) e Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP), autor do projeto de lei que quer acabar com a Justiça do Trabalho e com a fiscalização sobre trabalho escravo.
Segundo seu site oficial, o Instituto Harpia Brasil tem por objetivo “a defesa e a promoção dos ideais liberais econômicos e da proteção à propriedade privada; a discussão e a elaboração de minutas de reformas estruturantes para o país”. Entende-se por estruturante “a discussão e a elaboração de uma minuta de Nova Constituição Federal para o Brasil”.
DIDA SOUZA, DO INVASÃO ZERO, COMANDA SEDE REGIONAL DO INSTITUTO HARPIA
Menos de dois meses depois do primeiro congresso, em novembro, o Instituto Harpia Brasil inaugurava sua primeira sede regional, em Salvador. A pessoa escolhida para comandar a ala baiana do instituto foi Dida Souza, presidente do Invasão Zero. “Para mim, proteger e defender a propriedade privada é questão de honra e sobrevivência”, discursou durante o ato de lançamento. “Respeito a vida é inegociável”, completou a advogada, que figura como ré por tentativa de homicídio após, junto dos irmãos, arremessar um veículo Mercedes contra a casa de um ex-funcionário.
O ato foi também prestigiado pelo parceiro de Dida no Invasão Zero, o cacauicultor Luiz Henrique Uaquim, que destacou que a aliança entre o movimento e o Harpia “não é de hoje”. “Eu tenho certeza que o Instituto Harpia é um instituto suprapartidário, com um viés extremamente direito”, disse a uma plateia de 300 pessoas. “Eu estou me acostumando a falar o que é direito e o que é errado. Tem gente que diz que o que é certo é direito, o que é errado é de esquerda”.
A inauguração da sede baiana segue o propósito do instituto de estabelecer representações em vários estados, além de secretarias nacionais e comissões temáticas, conforme descrito em seu site. Um caminho similar ao trilhado pelo Invasão Zero.
Além da Bahia, o movimento anti-ocupações tem representações em outros oito estados: Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio Grande do Sul e Tocantins.
A organização do movimento se dá por meio do WhatsApp e do Instagram, usados para divulgar instruções e promover a ideologia do “direito sagrado à propriedade”. Os ataques na Bahia foram orquestrados através da troca de mensagens em um grupo com 5 mil integrantes. No dia 27 de janeiro de 2024, uma semana após a morte da pajé Nega Pataxó, Dida Souza publicou em seu perfil no Instagram uma Cartilha Orientativa para Proteção de Propriedade. A postagem orienta que, ao perceber o risco de invasão, os proprietários de terras entrem em contato com os administradores do Invasão Zero. “Esse contato deverá ser, inicialmente, no privado, para que as informações sejam organizadas, antes da mobilização do grupo”, informa a peça.
Em nota enviada à reportagem, a líder do Invasão Zero informou não ter conhecimento de quem organizou os produtores rurais para a ação e declarou não conhecer a região onde ocorreu essa ação. O texto informa que Renilda estava em Salvador (BA) no dia da desintrusão.
— Preciso destacar que sou coordenadora do Movimento Invasão Zero e já participei de outras ações para dar direito ao proprietário a recuperar suas terras e isso ocorreu dentro da legalidade e com o apoio de instituições de segurança pública. E nunca tivemos nenhuma espécie de problema porque trabalhamos respeitando a lei e repudiamos qualquer ato de violência.
DEPUTADOS COM FAZENDAS EM TERRAS INDÍGENAS COMPÕEM FRENTE NO MS
No Mato Grosso, o Invasão Zero foi impulsionado pelo deputado estadual Gilberto Cattani (PL), autointitulado “anti-MST”, de acordo com sua descrição no Instagram. O parlamentar é investigado por fraudar documentos para venda de áreas de assentamento para produtores rurais. Ele nega as acusações.
No Rio Grande do Sul, o movimento conquistou espaço na Assembleia Legislativa a partir de uma proposta do deputado estadual Gustavo Victorino (Republicanos), autor do Projeto de Lei nº 154/2023, que aumenta as punições para “invasores” de terras — a extrema direita costuma chamar ocupações de terras de invasões.
No ano passado, durante a CPI do MST na Câmara, Cattani e Victorino convidaram o presidente da comissão, Luciano Zucco, para uma live, onde distribuíram ataques contra o movimento. O vídeo foi reproduzido no canal Folha Política, banido do Facebook em 22 de outubro de 2018 por espalhar fake news.
No Mato Grosso do Sul, o movimento conquistou representação na Assembleia Legislativa, com a criação da Frente Parlamentar Invasão Zero, coordenada pelo deputado Coronel David (PL). Dois dos integrantes da frente são donos de fazendas incidentes em áreas indígenas: Zé Teixeira, cuja Fazenda Santa Claudina está integralmente sobreposta à Terra Indígena (TI) Guyraroká; e Pedrossian Neto, herdeiro da Fazenda Petrópolis, onde metade da área avança sobre a TI Cachoeirinha, conforme dados do relatório “Os Invasores: parlamentares e seus financiadores possuem sobreposições em terras indígenas“, produzido por este observatório.
No Espírito Santo, o movimento é capitaneado pelo deputado federal Evair de Melo (PP). Vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o capixaba recebeu financiamento de campanha de Adelar Mateus Jacobowski, que disputa uma área sobreposta à TI Menkü, no Mato Grosso. Evair foi um dos vice-presidentes da CPI do MST, o embrião da Frente Parlamentar Invasão Zero no Congresso.
EX-PRESIDENTE DA CPI DO MST CRIA FRENTE PARLAMENTAR INVASÃO ZERO
O movimento Invasão Zero chegou em Brasília em agosto de 2023, com a criação da Frente Parlamentar Invasão Zero. O presidente é Luciano Zucco, que comandou a CPI do MST. O vice-presidente é o paulista Ricardo Salles, relator da comissão de inquérito. A CPI durou 130 dias e tentou indiciar líderes do MST e de outros movimentos de luta pela terra. Diante de uma negociação entre a base governista e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a comissão teve sua composição trocada e terminou sem um relatório final aprovado.
No fim do período, o presidente da FPA, Pedro Lupion (PP-PR), já anunciava a intenção de criar uma frente parlamentar para manter o engajamento da CPI. “Essa CPI deixa um legado de coragem, de mostrar a realidade desses movimentos criminosos”, disse o líder ruralista. “Eles nunca se interessaram por terra e nem por reforma agrária. Hoje começamos a delegar um braço da FPA para um tema específico e ficarmos vigilantes para que o ataque ao direito de propriedade acabe”. Lupion tornou-se Secretário de Relações Institucionais da Frente Invasão Zero.
No lançamento do grupo, que aconteceu na sede da FPA, Zucco fez questão de destacar o apoio dos sindicatos rurais e repetiu o discurso que fazia na CPI: “Nós não permitiremos mais a insegurança jurídica e também a violência no campo”. Estiveram presentes a fundadora do Invasão Zero, Dida Souza, e o coordenador nacional, Luiz Uaquim.
Além de Lupion, Zucco e Salles, toda a diretoria é composta por integrantes da FPA. São eles: o coordenador de Segurança no Campo, Marcos Pollon (PL-MS); a coordenadora jurídica Caroline de Toni (PL-SC), conhecida por acenar um “banho de sangue” caso o Marco Temporal não se tornasse lei; além de Magda Mofatto (Patriota-GO), Messias Donato (Republicanos-ES) e Capitão Alden (PL-BA).
Como primeira iniciativa, o grupo pediu regime de urgência para a tramitação de sete projetos de lei. Entre eles, o que acaba com benefícios sociais para acampados da reforma agrária, aumenta a pena por esbulho possessório (ocupação de um bem por meios considerados violentos) e permite ação da polícia sem a necessidade de ordem judicial para a retomada de terras.
INVASÃO ZERO E HARPIA TÊM BOLSONARO COMO PATRONO E UDR COMO INSPIRAÇÃO
O ex-presidente Jair Bolsonaro esteve tanto no lançamento da Frente Parlamentar Invasão Zero, em Brasília, quanto no congresso do Instituto Harpia, em Goiânia. Na cerimônia dos parlamentares, o ex-presidente Jair Bolsonaro foi chamado de “padrinho” da frente. “Algumas coisas que foram feitas pelo nosso governo levou (sic) à segurança no campo, à tranquilidade, à paz e até mesmo ao aumento da produtividade”, disse.
No evento do Harpia, em Goiânia, Bolsonaro recebeu o cargo de presidente honorário do instituto. No discurso, optou por defender a política econômica de seu governo, destacando o preço da gasolina e diesel.
Outro ponto em comum entre o instituto e o grupo de fazendeiros é a inspiração na União Democrática Ruralista (UDR). Um dos diretores do Movimento Invasão Zero na Bahia, o fazendeiro Joel Tebaldi Junior, exibe em suas redes sociais a foto de uma faixa com o nome da organização, tirada durante uma manifestação pró-impeachment de Dilma Rousseff, em 2016.
Fundada em 1985, a UDR se caracterizou pela ação violenta contra as ocupações de terras organizadas pelo MST — criado um ano antes — e outros movimentos do campo e das florestas, como o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), cujo líder Chico Mendes foi assassinado a mando de um integrante da união ruralista.
O grupo teve o atual governador de Goiás, Ronaldo Caiado, como fundador e presidente. Nos anos 2000, passou por uma ressurgência na região do Pontal do Paranapanema, sob o comando de Luiz Antônio Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários durante o governo Bolsonaro. Para saber mais sobre a história do grupo, confira o episódio “Os Radicais da UDR”, parte da série de vídeos De Olho na História, deste observatório.
NOVA TFP ESPALHA DOUTRINAÇÃO REACIONÁRIA NA BAHIA
Além do Invasão Zero e do Instituto Harpia, a Bahia tem sido alvo de outro movimento ultraconservador. O Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, herdeiro da antiga Sociedade Brasileira para Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), recriou a chamada “Caravana Terra de Santa Cruz”, onde jovens integrantes percorrem municípios interioranos divulgando o movimento. A última caravana havia sido realizada há treze anos. Em 2024, a iniciativa voltou e já esteve em São Desidério, Jacobina, Ibotirama e Irecê, na Bahia; em Fortaleza, Crateús e Canindé, no Ceará; e em Monte Alegre, em Goiás.
Vestidos com os fardas característicos, empunhando bandeiras monarquistas e entoando lemas como “força jovem a serviço do Brasil”, eles distribuem cartilhas a favor do Marco Temporal e divulgam livros como o “Psicose Ambientalista”, do membro emérito do instituto Bertrand de Orléans e Bragança, bisneto da princesa Isabel e autointitulado “príncipe do Brasil”.
Na obra, Bertrand defende o negacionismo climático, diz que a natureza está a serviço do homem e que há uma “neurose coletiva” em relação à questão ambiental. O aristocrata é um dos colaboradores da campanha Paz no Campo, gerida pelo Instituto Plínio Corrêa de Oliveira. Assim como o Invasão Zero, a iniciativa divulga manuais de como defender propriedades rurais de ocupações “dentro da lei e da ordem”. “Se você quer a paz, prepare a guerra”, diz um dos manuais.
As conexões históricas e políticas entre o Movimento Invasão Zero, o Instituto Harpia Brasil, a UDR e a TFP são tema de um vídeo do canal do De Olho nos Ruralistas no YouTube. Confira abaixo:
Foto principal (Divulgação/Instituto Harpia): lançamento do Harpia Brasil na Bahia com a líder do Invasão Zero, Renilda Souza
Atualização: o texto foi atualizado para incluir o posicionamento de Renilda Souza, enviado após a publicação da série de reportagens.
| Carolina Bataier é jornalista e escritora. |
|| Luís Indriunas é roteirista e editor do De Olho nos Ruralistas. ||
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