FHC, o Fazendeiro – Durante o governo, embates com MST e apoio ao agronegócio

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Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996. (Foto: João Roberto Ripper)

Ex-presidente associa movimentos do campo ao atraso e o agronegócio a uma ‘revolução’; em 1996, ele e general Cardoso defenderam ‘um movimento de pinça para esvaziar os sem-terra’

Por Alceu Luís Castilho

Trecho de um dos livros de Fernando Henrique Cardoso, “A Arte da Política: a História que Vivi” (Civilização Brasileira, 2006), mostra como ele enxerga a questão agrária. Ele é um defensor do modelo do agronegócio, crítico da visão de mundo dos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da própria definição – ou percepção – de que exista o campesinato.

FHC com João Pedro Stédile, em 1995. (Foto: Reprodução)

O ex-presidente diz que procurou tratar o MST “como um dos novos movimentos da sociedade”, “por indigesto que fosse”:

– Tentei dialogar com seus dirigentes, nos limites da lei, mesmo quando, por exemplo, militantes invadiram a fazenda que pertencia à minha família em Buritis, no noroeste de Minas Gerais. Confesso, entretanto, que por mais que os recebesse e me esforçasse para apoiar o programa de reforma agrária, o diálogo revelou-se impossível.

Ao receber dirigentes do movimento no Palácio do Planalto, um deles perguntou se poderia abrir a bandeira branca, verde e vermelha do MST. Fernando Henrique respondeu: “Não! Bandeira, aqui, só a do Brasil. Não pode, não”.

DA REFORMA AGRÁRIA AOS MASSACRES

Fernando Henrique Cardoso escreve que o MST pertence a um “nicho de resistência à modernidade e é portador de uma utopia regressiva, como qualifico sua ideologia, que olha pelo retrovisor”. Diante da pobreza rural, um fato, ele se gaba de ter aplicado recursos nos assentamentos rurais: “Desapropriei cerca de 20 milhões de hectares de terra, mais do dobro do realizado até então”.

FHC recorda-se, nesse ponto do livro, de ter visto um vídeo – mostrado pelos organizadores de uma Expozebu, em Uberaba – com “incêndios e outras violências praticadas por invasores de terras, seguidores do MST”. Os fazendeiros pediam providências. Fernando Henrique afirma ter dito a eles que o movimento de sem-terra era visto como bom moço. “A primeira morte que ocorra serei o culpado”, argumentou. “Não contem comigo para isso”.

Massacre de Eldorado dos Carajás, 1996. (Foto: João Roberto Ripper)

De fato, foi em seu governo que ocorreram dois dos maiores massacres recentes da história agrária no Brasil: o de Corumbiara, em Rondônia, em 1995, com dez mortos; e o de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996, com 19 mortos. A imagem de FHC ficou atrelada ao segundo episódio, com ampla repercussão internacional, que ele definiu como “cataclismo”.

Argumenta, em sua autobiografia, o ex-presidente:

–  O curioso é que um sentimento pró-reforma agrária a qualquer custo se difundiu no mesmo momento em que a agricultura passava por uma revolução, pois o agronegócio tomava o lugar das modalidades mais tradicionais de produção, que estavam nas mãos de fazendeiros retrógrados e de latifundiários. Essa mudança só foi percebida anos depois, com a explosão da produção do campo e com o brutal aumento das exportações.

O sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores mais importantes do Brasil no que se refere à questão agrária, escreveu em 2003 – A reforma agrária no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso – que o PT se valeu do MST para produzir uma imagem negativa do governo FHC,  “negando e desqualificando a reforma agrária que estava em execução”. “Não raro satanizou estudiosos que tentavam compreender os fatos em perspectiva diversa”, afirmou.

MST DIZ QUE ELE ‘CLONOU’ ASSENTAMENTOS

Livro sobre questão agrária foi lançado em 2017. (Imagem: Reprodução)

Em uma perspectiva histórica, o MST considera que o governo Fernando Henrique Cardoso “nunca possuiu um projeto de reforma agrária real”. Diz o movimento: “Durante os dois mandatos, a maior parte dos assentamentos implantados foi resultado de ocupações de terra. Todavia, o número de assentamentos implantados foi diminuindo ano a ano”.

Segundo o MST, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (criado durante o governo FHC e extinto no início do governo Temer) “clonou”, para efeito de propaganda, assentamentos criados em governos anteriores e governos estaduais, registrando-os como se tivessem sido criados por FHC. “Essa tática criou confusão tamanha que, ao final do seu mandato, nem mesmo o Incra conseguia afirmar quantos assentamentos foram realizados de fato”.

As diferenças entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva no que se refere à questão agrária motivaram um livro, organizado por dois professores da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Fabiano Coelho e Rodrigo Simão Camacho: “O Campo no Brasil Contemporâneo: do governo FHC aos governos petistas (questão agrária e reforma agrária” (Editora CRV, 2017).

‘NÃO ME VENHAM COM SONHO DE CHIAPAS’

Em seus “Diários da Presidência”, Fernando Henrique define uma caminhada do MST como “show”. Foi no dia 21 de junho de 1996, após uma greve geral que ele define como fracassada:

– Claro, o PT por trás, tentando unir o MST com a coisa urbana; não deu certo. Nem em Brasília. Vieram trezentos gatos pingados de uma fazenda onde eles têm um acampamento aqui perto. Vieram a pé para fazer um pouco de show sobre a questão, esses pelo menos têm um lado positivo, o de mostrar a miséria no campo.

Ele conta ter pedido a Paulo Sérgio Pinheiro, secretário de Direitos Humanos durante seu governo, para dizer a lideranças do MST – Gilmar Mauro e João Pedro Stédile – que o governo continuaria fazendo reforma agrária. Mas que não toleraria invasões e ocupações de prédios:

Regino contra Bruno Mezenga: “Rei do Gado”. (Foto: Reprodução)

– Eu não quero nem ter as glórias de fazer reforma nenhuma, eles que fiquem com as glórias, mas que deixem o país avançar e que não venham com esse sonho de Chiapas no Brasil.

 FHC considera que o personagem Regino (interpretado por Jackson Antunes), da novela “O Rei do Gado” (17/06/1996 a 14/02/1997), fazia apologia de José Rainha Júnior, então líder do MST no Pontal do Paranapanema – região no oeste paulista onde seu amigo Jovelino Mineiro possui terras e onde ele mesmo vendeu touros da raça brangus: “FHC, o Fazendeiro – Vinte anos atrás, Fernando Henrique vendia touros em Rancharia (SP), na fazenda de Jovelino Mineiro”.

O presidente (lembremos que ele está gravando depoimento em 1996) conta ter sido informado que os fazendeiros “se armaram, compraram metralhadoras no Paraguai, pode haver um confronto desagradável, pode haver mortes e tudo isso com esse Rainha que não obedece a ninguém e que acaba ficando, no limite, entre o herói do campo e o bandoleiro”.

JOVELINO MINEIRO REIVINDICAVA E INFORMAVA

Nos dia 28 de agosto e 14 de setembro daquele ano o presidente voltou à carga. Nesse último dia, conta ter ficado preocupado com telefonemas sobre conflito no Pontal: “Segundo o Jovelino Mineiro, não são os capangas, são os fazendeiros mesmo, que estão querendo reagir porque o MST está exagerando lá”.

Ele se refere ao amigo pecuarista Jovelino Carvalho Mineiro Filho, que ele chama de Nê, um dos personagens centrais desta série de reportagens sobre a relação de FHC com o agronegócio: “FHC, o Fazendeiro – De Buritis (MG) a Botucatu (SP), saiba por que Jovelino Mineiro é o braço agrário da família Cardoso“.

Meses depois, no dia 18 de novembro, Fernando Henrique identificava um problema: no dia seguinte, por medida provisória, ele lançaria o Imposto Territorial Rural (ITR). Mas ele diz que “o pessoal” não gosta do ITR. “Mudamos, taxamos fortemente a propriedade não produtiva e também a produtiva”, relata. E completa:

– Dito e feito. Eu tinha recebido reivindicações do Nê, do Jovelino Mineiro, e depois falei com o ministro Jungmann, e era a mesma coisa que ele já tinha recebido do Suplicy. Na hora de pagar imposto, ninguém quer, nem os que mais desejam ajudar.

‘UM MOVIMENTO DE PINÇA PARA ESVAZIAR OS SEM-TERRA’

O início do ano tinha sido tenso. No dia 30 de abril, duas semanas após o massacre de Eldorado dos Carajás, Raul Jungmann tomava posse no Ministério Extraordinário da Reforma Agrária. Dias depois, o presidente contou ter feito questão, durante a cerimônia, de colocar ênfase no respeito à Constituição, para mostrar que o movimento dos sem-terra não podia ultrapassar as fronteiras da legalidade: “Até porque, se ultrapassar, a violência vem dos dois lados”.

Nesse ponto FHC relata ter tido longas conversas sobre o massacre com o ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional, general Alberto Cardoso – que, anos depois, coordenaria a defesa da fazenda do presidente em Buritis (MG), ocupada por camponeses do MST.

O militar estava preocupado:

– Ele conhece a situação, acha que os sem-terra dizem uma coisa e agem de outro modo, pensa que devemos fazer um movimento de pinça para esvaziar os sem-terra. Eu também acho, precisamos atender reivindicações, mas temos que ganhar a batalha simbólica na mídia, e não podemos esquecer que os sem-terra são uma organização mesmo. E que não têm propriamente os mesmos objetivos de ordem democrática que nós temos.

Nesse mesmo dia FHC conta que foi ao lançamento do polo petroquímico de São Paulo, com o governador Mário Covas (PSDB). “Olavo Setúbal depois se reuniu na minha sala com Emílio Odebrecht”, relata. O banqueiro diz que ele teve grande coragem. “Estou tentando dar um impulso em certas áreas em que é difícil fazer investimentos”, afirma Fernando Henrique.

Caiado no apartamento de FHC. (Foto: Reprodução/Facebook)

UMA FOTO COM RONALDO CAIADO

No dia 11 de abril de 2015, o senador Ronaldo Caiado (DEM-TO) postou uma foto com FHC, tirada no apartamento do ex-presidente em Higienópolis. “Conversamos por mais de uma hora sobre o nosso País”, escreveu no Facebook o fundador da União Democrática Ruralista (UDR), nos anos 80.

Caiado disse que era motivante ver a lucidez e visão de FHC, um homem que, identifica o senador, manteve os hábitos e não usou o cargo para enriquecer. “Saí de lá ainda mais motivado para continuar essa luta e ir às ruas amanhã, dia 12 de abril”, entusiasmou-se o senador, um dos defensores do impeachment de Dilma Rousseff. “Vem pra rua!”

LEIA A SÉRIE COMPLETA:
“FHC, o Fazendeiro – tudo sobre as terras da família, os amigos pecuaristas e a Odebrecht”.

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