Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara afirma não ter sido convidado para seminário que contou com a participação do ministro Marcos Pontes; quilombolas exigem que o governo ratifique parecer do Incra para titulação de seu território
Por Bruno Stankevicius Bassi
No dia 15 de abril, um seminário organizado pela Secretaria da Ciência, Tecnologia e Inovação (Secti) do Maranhão atraiu as atenções do governo federal, que busca aprovar no Congresso o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) firmado com os Estados Unidos em março para a utilização comercial do Centro de Lançamentos de Alcântara (MA), localizado a 30 quilômetros da capital São Luis.
Além de parlamentares maranhenses e do governador do estado, Flávio Dino (PCdoB), o evento “Base de Alcântara: próximos passos” contou com a presença do ministro de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, principal defensor do acordo. Mas entre os convidados houve uma ausência notória. Nenhum representante das comunidades quilombolas impactadas pelo projeto de expansão da base de Alcântara, protagonistas de uma resistência histórica em defesa de seus territórios, participou do encontro.
Essa denúncia faz parte de um pronunciamento público do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), realizado duas semanas após o seminário com o ministro, durante um painel da Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop), no dia 30 de abril.
Para o coordenador-geral do Mabe, Leonardo dos Anjos, que assina a carta, o governo federal não propõe um diálogo justo:
– As comunidades quilombolas de Alcântara possuem entre os seus membros estudiosos, profissionais e pesquisadores de várias áreas do conhecimento, a saber: historiadores, antropólogos, juristas, cientistas políticos, pedagogos, mestres e doutores e todos estes são das comunidades quilombolas de Alcântara, ou seja, temos condições e capacidade suficiente para enfrentar o debate científico que o referido seminário se propôs.
‘FOGUETES NÃO DECOLARÃO’, DIZEM QUILOMBOLAS
Apesar das garantias dadas pelo ministro Marcos Pontes de que o acordo com os Estados Unidos não prevê a expansão do centro de lançamentos, os quilombolas defendem garantias institucionais para o reconhecimento integral de seu território.
Eles contam que, sem a titulação do território quilombola de Alcântara, nos termos do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, publicado no Diário Oficial da União em novembro de 2008, dificilmente sentarão com o Estado brasileiro para tratar do AST BRA-EUA.
“A efetiva titulação do nosso território é a segurança jurídica fundamental para o avanço de qualquer debate necessário”, dizem os quilombolas, em nota. “Sem a certeza jurídica do nosso território, não há consenso. Não há acordo. Foguetes não decolarão! A certeza do nosso território é a premissa básica norteadora para o debate proposto”.
Em 10 de abril, uma apresentação do acordo na Câmara também foi alvo de polêmica após uma declaração xenofóbica do deputado federal Bibo Nunes (PSL-RS), que rotulou o território quilombola como uma “fabriqueta de arco e flecha”. Veja mais nesta reportagem: “Alvos de ataque de deputado do PSL, quilombolas de Alcântara promovem biodiversidade“.
CÂMARA REJEITOU EMENDA SOBRE PRESERVAÇÃO DE TERRAS
Apesar da exigência dos quilombolas, que há 39 anos buscam a garantia de seus territórios, o governo federal tem dado pouca atenção às comunidades de Alcântara. Durante uma audiência convocada pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara, realizada no dia 10 de abril, o ministro Marcos Pontes disse que a discussão sobre os quilombolas viria numa segunda fase, caso o acordo seja aprovado no Congresso: “Tem os problemas do passado. Eles precisam ser tratados, mas não agora”.
No mesmo dia, o plenário da Câmara rejeitou uma emenda à Medida Provisória 858/18, que extinguiu a empresa binacional Alcântara Cyclone Space (ACS), criada em 2003 após um acordo entre Brasil e Ucrânia para o uso comercial da base. De autoria do ex-deputado e atual senador Weverton Rocha (PDT-MA), a emenda determinava a preservação de terras ocupadas por remanescentes quilombolas em futuros acordos ou tratados internacionais de cooperação, como o que foi assinado com os Estados Unidos, tendo como objetivo garantir sua reprodução física, social, econômica e cultural.
Em 2008, um relatório técnico elaborado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) reconheceu o direito das comunidades remanescentes de quilombos a ocupar 78 mil hectares na região e desde então os quilombolas aguardam a titulação definitiva de seu território, que depende da ratificação pelo governo federal.
Em abril de 2019, o Mabe realizou junto ao Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e ao Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar de Alcântara (Sintraf), uma denúncia formal à Organização Internacional do Trabalho (OIT), acusando o Estado brasileiro por não cumprir com o protocolo de consultas públicas antes de assinar o acordo com os Estados Unidos.
Veja abaixo a íntegra do pronunciamento do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe):
Senhor Governador, Senhores Secretários, Senhores Parlamentares e demais autoridades aqui presentes.
Senhoras e Senhores,
1. Louvamos a iniciativa do Estado do Maranhão, por meio da Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular e da Secretaria Extraordinária de Estado de Igualdade Racial em realizar da data de hoje o Painel Alcântara, Quilombos e Base Espacial, pois, sinaliza um passo importante para a necessária instituição do diálogo no âmbito do governo do Estado das tratativas acerca da recente celebração do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos (AST BRA-EUA).
2. É imperioso que o diálogo seja justo e que iguais medidas e condições de debate sejam asseguradas às partes envolvidas. É com este sentimento que lamentamos não termos sido convidados a integrar a programação do Seminário Base de Alcântara: próximos passos promovido pela Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação, em 15 de abril do corrente ano. O referido evento reuniu autoridades do governo federal com competência para discutir a situação, e contou ainda com ampla participação da bancada maranhense no Congresso brasileiro, esta, que assumiu publicamente a tarefa de trabalhar para a aprovação do AST BRA-EUA no Parlamento. É justo que as comunidades quilombolas de Alcântara participassem do Seminário, como forma de equilibrar e estabelecer o justo debate.
3. As comunidades quilombolas de Alcântara possuem entre os seus membros estudiosos, profissionais e pesquisadores de várias áreas do conhecimento, a saber: historiadores, antropólogos, juristas, cientistas políticos, pedagogos etc., mestres e doutores e todos estes são das comunidades quilombolas de Alcântara, ou seja, temos condições e capacidade suficiente para enfrentar o debate científico que o referido Seminário se propôs.
4. O Seminário promovido pela SECTI teve como propósito fazer um debate científico acerca do AST e o uso da Base de Alcântara. Consideramos um equívoco grave dissociar o debate científico da questão quilombola. Em Alcântara, é importante destacar, estas são duas realidades indissociáveis. O debate quilombola é igualmente científico e merece o justo tratamento na arena pública. Jamais orbitaremos no espaço, sem que questões terrenas sejam resolvidas. Ninguém que deseja o “céu” o terá às custas de vidas alheias.
5. O que se verificou no Seminário não foi um debate científico, a começar pela inapropriada palestra motivacional, ao estilo autoajuda do Ministro de Ciência e Tecnologia, Sr. Marcos Pontes. As outras autoridades e debatedores do Seminário, com o devido respeito, centraram seus esforços apenas em fazer ampla e irrestrita defesa do AST BRA-EUA, afastando-se do debate científico e das questões técnicas referidas ao tal Acordo.
6. Senhores e Senhoras, a luta das comunidades quilombolas de Alcântara pelo seu território já se arrasta por quase 40 anos. Questões sérias relacionadas ao Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) precisam ser resolvidas para que se avance em qualquer outra discussão quanto ao uso do CLA. Destacamos: 1) as violações decorrentes da desapropriação ocorrida em 1980, regime militar, como a ausência de indenizações às pessoas e famílias compulsoriamente remanejadas; 02) é grave o fato de o CLA funcionar por quase 40 anos sem licença ambiental e ausência de estudo/relatório ambiental, sem que as comunidades quilombolas e a sociedade brasileira saibam ou possam mensurar ou mesmo dimensionar os possíveis danos à saúde das pessoas e ao ambiente, provocado pelas operações de lançamentos de foguetes; 03) por fim e mais importante. Sem a titulação do território quilombola de Alcântara, nos termos do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, publicado no Diário Oficial da União em novembro de 2008, dificilmente sentaremos com o Estado brasileiro para tratar do AST BRA-EUA. A efetiva titulação do nosso território é a segurança jurídica fundamental para o avanço de qualquer debate necessário. Sem a certeza jurídica do nosso território, não há consenso. Não há acordo. Foguetes não decolarão! A certeza do nosso território é a premissa básica norteadora para o debate proposto.
7. Consideramos imediatista e precipitada à propositura de projetos de lei no parlamento brasileiro com vistas à disciplinar os possíveis royalties ou coisa similar a partir do uso da Base de Alcântara. Para nós, esta é uma discussão necessária e que independe do Acordo com os EUA. O CLA no seu atual modelo de gestão, já é obrigado, no nosso entender, a repartir os benefícios gerados com a comunidade. Queremos participar sim dos benefícios e lucros gerados pela atividade espacial em Alcântara. É um direito que nos assiste. E para isso, temos propostas que no momento oportuno serão apresentadas e publicizadas. As propostas até então apresentadas por congressistas maranhenses e veiculadas nas mídias e jornais não contemplam e não condizem com a nossa realidade.
8. Se o Estado brasileiro quiser aprovar o uso comercial do CLA com qualquer país, terá de primeiro titular nosso território. É nossa condição, e exigimos que isso seja tomado como prioridade pelas autoridades que aqui estão. Aliás, convocamos a toda sociedade brasileira comprometida com a soberania brasileira a priorizar a defesa de Alcântara e a defesa dos quilombolas que ali vivem.
9. Se assim não for, que o Estado brasileiro assuma publicamente o ônus de se replicar os mesmos erros e arbitrariedades que vitimaram nossas famílias quilombolas na década de 1980, cujas sequelas marcam nossas vidas e a vida dos nossos filhos e netos até os dias atuais.
10. Ainda sobre o uso da Base de Alcântara pelos Estados Unidos precisamos compreender uma questão básica: a eleição de Bolsonaro em 2018 representa a ruptura do projeto de Estado-nação pactuado na constituinte de 1988. Como bem pontou nosso querido Leonardo Boff, o governo Bolsonaro representa o triunfo da barbárie e da estupidez. É também o governo da política colonialesca da servidão e da subserviência aos Estados Unidos. E é neste contexto que se insere o acordo com os EUA. É uma escancarada entrega do nosso patrimônio científico – a Base de Alcântara – aos Estados Unidos. Quem quiser fazer a defesa do Acordo, que faça. Mas que o faça ciente disso. Ciente da opção pela estupidez e pela barbárie. Ciente de que se estar a desempenhar o lamentável papel de lacaio dos Estados Unidos, como sabidamente acertou nosso Presidente Lula em recente declaração a imprensa.
11. Bolsonaro é inimigo do povo brasileiro, é inimigo declarado dos povos do campo, trabalhadores e trabalhadoras rurais, indígenas e quilombolas. É inimigo dos direitos humanos. É inimigo da democracia. Portanto, render-se o seu o Acordo com os Estados Unidos para uso da Base de Alcântara, alegando supostas vantagens econômicas na prática é alinhar-se a sua lógica bolsonarista. É a opção pela barbárie e pela estupidez.
12. Quem se unir a Bolsonaro pela aprovação do AST no Congresso brasileiro, sem que antes se titule o nosso território, será tratado publicamente como um dos seus. Não existem adversários e inimigos pela metade ou reservados apenas algumas situações. Inimigos são inimigos e como tais devem ser tratados. E jamais subestimados.
13. Vivemos um tempo muito caro, do ponto de vista político e histórico. O tempo em que vivemos não permite ambiguidades. Governos federais anteriores, do campo progressista, sucumbiram a estas ambiguidades e por conta disso toda a sociedade brasileira hoje paga o preço de termos o governo que aí está. Sobretudo, Alcântara cujo processo de titulação ficou pronto ainda em 2008, e as mãos palacianas tremeram em assinar o decreto de titulação das nossas terras tradicionalmente ocupadas.
14. Aqui no Maranhão, o Governo do Estado na década de 1980 foi o primeiro grande fiador do projeto aeroespacial e publicou um decreto que desapropriou 52 mil hectares das nossas terras para fins de implantação do CLA, resultando no deslocamento compulsório de 312 famílias. Com isto alinhou-se a ditadura militar. Marcou negativamente às nossas vidas. Famílias inteiras e suas gerações foram desestruturadas por conta desse ato insano e arbitrário.
15. O Estado do Maranhão deve um pedido de desculpas formal às comunidades de quilombolas de Alcântara, por ter nos colocado ao arbítrio dos militares do regime ditatorial vigente na década de 1980. Constitui-se medida imperiosa em homenagem aos restos de valores democráticos ainda vigentes nesta escangalhada República, a FORMALIZAÇÃO DE UM PEDIDO DE DESCULPAS ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE ALCÂNTARA POR PARTE DO GOVERNO DO ESTADO MARANHÃO.
16. Por sorte, atualmente no Maranhão temos um governo notoriamente comprometido com a democracia e que tem se colocado publica e incisivamente contrário aos desmandos do governo Bolsonaro. É o que nos dá o alento da garantia institucional para o debate necessário. E é este o exato compromisso que solicitamos deste governo do Estado. Para tanto, como passo inicial sugerimos a constituição de uma Câmara Técnica no âmbito do executivo estadual composta por órgãos do governo estadual afetos à pauta, Defensorias da União e do Estado, Ministério Público Federal, comunidades, por meio de suas instituições representativas e assessorias para tratar dos aspectos da regularização do território quilombola de Alcântara e temas correlatos, dentro de sua atribuição institucional, além de alinhar, nivelar e centralizar as discussões referidas ao território quilombola e o programa aeroespacial brasileiro.
17. Deve conformar o papel institucional da referida Câmara Técnica, dentre outras coisas, assegurar as condições efetivas para que as comunidades quilombolas de Alcântara possam cumprir suas agendas em defesa do seu território, na sua plenitude e inteireza, com mais diversos órgãos e instancias do governo brasileiro, e caso seja necessário, assegurar as condições para cumprimento de agendas internacionais, considerando que o caso de Alcântara tramita em duas Cortes internacionais de justiça: a Organização Internacional do Trabalho e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.
18. Caberá ainda a esta Câmara Técnica, caso seja constituída, funcionar como canal entre o Executivo estadual e o Executivo federal. É preciso ter o entendimento que debates como este Painel são necessários. Mas o diálogo em questão exige a observância da institucionalidade e do cumprimento de formalidades. Por isso a importância da Câmara Técnica.
19. Apelamos à bancada maranhense no parlamento federal o compromisso público de não se alinhar a política colonealesca de subserviência e entreguismo do Bolsonaro aqui representada pela entrega do nosso estratégico equipamento científico, a Base de Alcântara, aos EUA. Igualmente, solicitamos dos senhores que não votem pela aprovação do Acordo do Congresso. Se assim o fizerem estarão a sentenciar de morte quase 800 famílias quilombolas de Alcântara, localizadas no litoral.
20. Por fim, não bastasse à emblemática relação do programa aeroespacial com as comunidades quilombolas, denunciamos aqui que já se encontra em avançado estado de tramitação em diversas instancias dos governos brasileiro o projeto de construção do Terminal Portuário de Alcântara na Ilha do Cajual, próximo ao porto do Cujupe. Trata-se de um porto de cargas, empreendimento de responsabilidade da Empresa GPM – Grão-Pará Multimodal. O porto se levado a cabo, se instalará numa área de tripla proteção do Estado: a Ilha do Cajual é quilombola; Possui um parque arqueológico com presença de fósseis de dinossauros; e está localizada numa área de proteção ambiental.
21. O porto será conectado ao continente por um ramal ferroviário que será integrado a estrada de ferro Carajás e a Ferrovia Norte Sul. É grave e dolosa que esta situação tramite em diversos órgãos do Estado brasileiro desde 2017 sem a merecida publicidade e transparência. Esta situação agravará ainda mais o cenário de violações de direitos humanos em Alcântara, a ferrovia atravessará todo o centro-sul do município afetando diretamente os territórios quilombola de Ilha do Cajual e de Santa Tereza.
22. A Situação é gravíssima, é dolosa e vamos denunciá-la ao Ministério Público Federal para solicitar a apuração, bem como, em instancias internacionais. O silêncio imposto às tratativas relacionadas ao Terminal Portuário de Alcântara revela o caráter doloso do Estado brasileiro em lesar mais uma vez os direitos das comunidades de Alcântara.
23. Não somos contra o CLA, tampouco, avessos ao desenvolvimento. Ao contrário queremos integrar esse processo de desenvolvimento. Pudemos e queremos trabalhar na Base de Alcântara, mas queremos ter a segurança jurídica de ao final do expediente puder voltar para nossas casas e paras terras secularmente habitadas por nossos ancestrais. Queremos que gerações futuras de nossas famílias possam gozar da mesma terra da qual hoje ocupamos e utilizamos.
24. Vamos vencer esta luta, pois a vitória pertence a quem resiste e a quem faz o bom e o justo combate!