Dois a cada três habitantes testados em São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, estão com Covid-19; porcentagens de população indígena e de falta de acesso à água são similares, em torno de 90%, e ajudam a explicar a matança na região
Por Poliana Dallabrida
O município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, registrou 2.342 infectados e 27 mortes por Covid-19, segundo o boletim divulgado pela prefeitura na terça-feira (09). Os casos crescem em ritmo acelerado no município de 45,5 mil habitantes, dos quais quase 90% são indígenas. O primeiro diagnóstico positivo foi realizado há 45 dias, em 26 de abril.
Na área urbana do município, conhecido como o “mais indígena do Brasil”, a Secretaria Municipal de Saúde aplicou 1.705 testes entre os dias 26 e 29 de maio. Entre as pessoas testadas, 65% estavam infectadas, informou o UOL, quase dois a cada três testados. Esse dado coloca o município entre os cinco primeiros no ranking proporcional de confirmados por cem mil habitantes.
Com área equivalente à Inglaterra, São Gabriel da Cachoeira é o principal município da região conhecida como Alto Rio Negro. A região abriga 23 etnias, distribuídas em 733 comunidades. Além das Terras Indígenas Alto Rio Negro, Balaio e Yanomami, já homologadas, há sete em processo de demarcação.
NÚMERO DE CASOS É SEIS VEZES MAIOR QUE OS OFICIAIS
Os testes foram realizados apenas na zona urbana, área de responsabilidade da secretaria municipal de saúde. O atendimento aos indígenas nas comunidades às margens do Rio Negro e seus afluentes é de responsabilidade do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro (DSEI Alto Rio Negro), braço do Ministério da Saúde para o atendimento à população indígena da região.
O DSEI Alto Rio Negro, por sua vez, vem testando apenas os profissionais de saúde que atendem nas comunidades. “Os casos têm se alastrado”, afirma Marivelton Barroso, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). “Falta uma testagem em massa para termos um número real de quantos parentes indígenas nossos estão contaminados”.
De acordo com dados compilados pela Foirn, a partir de informações da Secretaria Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira, os Baré, os Tukano, os Tariana e os Baniwa são as etnias mais atingidas pela doença na região. No total, a organização contabiliza 959 indígenas infectados e 18 mortos em decorrência do novo coronavírus.
O número de infectados divulgados pela Foirn é seis vezes maior que o divulgado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). O último boletim oficial, de terça-feira, registra 157 casos e cinco mortes por Covid-19 entre os indígenas do Alto Rio Negro.
Barroso explica que a Sesai desconsidera os indígenas que vivem na área urbana do município. “A Sesai não contabiliza o que eles chamam de índio urbano. Para nós, não existe isso. Aqui estamos na cidade mais indígena do Brasil”.
90% DOS DOMICÍLIOS NÃO TÊM ABASTECIMENTO DE ÁGUA
A falta de saneamento básico é um dos fatores de risco na região. De acordo com informações do Censo de 2010, reunidas para o De Olho nos Ruralistas pelo blog Desigualdades Espaciais, naqueles distritos com população essencialmente indígena em São Gabriel da Cachoeira (a maioria)mais de 90% dos domicílios não possuem abastecimento de água da rede geral do município.
Apenas 15 localidades, concentradas na zona urbana do município, possuem números melhores, e as residências sem abastecimento de água da rede geral caem para entre 14,4 e 60,5%. Nessas áreas, a porcentagem da população indígena é menor, com até 86% dos habitantes declarados indígenas.
Segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, apenas 27,52% da população de São Gabriel da Cachoeira possuía banheiro e água encanada em 2010.
Guilherme Monção, médico da DSEI Alto Rio Negro, explica que são comuns os casos de crianças com verminoses, baixo peso e desnutrição nas vilas onde não há saneamento. “Todos os meses temos que tratar verminose em crianças. É praticamente um uso contínuo de medicamentos por conta do saneamento básico nulo nas comunidades indígenas”, afirma.
Monção explica que são comuns os casos de crianças com verminoses, baixo peso e desnutrição nas vilas onde não há saneamento: “Todos os meses temos que tratar verminose em crianças. É praticamente um uso contínuo de medicamentos por conta do saneamento básico nulo nas comunidades indígenas”.
Sem poder se deslocar à sede do município, a população indígena depende do fornecimento de cestas básicas. No dia 18 de março, a prefeitura criou o Comitê de Enfrentamento e Combate ao Covid-19, composto pelas secretarias do município, além de Polícia Militar e Civil, Exército, Marinha, Funai e organizações como Instituto Socioambiental (ISA) e Foirn. O comitê articula ações para garantir, além do atendimento à saúde, a distribuição de alimentos para a população da região.
No começo de maio, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) determinou que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) divulgasse um cronograma para o fornecimento de cestas básicas para as comunidades do Alto e Médio Rio Negro. A decisão foi uma resposta a uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal no Amazonas.
A decisão também exige que o governo federal aplique medidas diferenciadas para a concessão do auxílio emergencial à população da região, como a prorrogação do saque — para evitar o deslocamento de indígenas das aldeias às sedes municipais — e a dispensa da confirmação por SMS de informações do aplicativo “Caixa Tem”. Parte das comunidades da região do Alto e Médio Rio Negro tem acesso à internet, mas dificilmente possui sinal de telefonia.
No dia 5 de junho, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) entregou 60.170 cestas básicas para a Funai distribuir em 32 municípios das regiões do Alto Solimões, Manaus, Rio Negro, Vale do Javari e Médio Purus, no Amazonas. Não há informações de quantas cestas básicas foram distribuídas exclusivamente às comunidades do Alto Rio Negro.
Como o fornecimento de cestas básicas pela Conab não tem sido suficiente, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e organizações locais estão se responsabilizando provisoriamente pela compra e distribuição de alimentos para a população.
‘O SEGUNDO BOOM DE CASOS SERÁ NAS COMUNIDADES’
O atendimento aos indígenas do Alto Rio Negro se dá por incursões de profissionais que passam trinta dias seguidos nas comunidades. Em geral, as equipes são formadas por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, dentista e auxiliar de saúde bucal. “A atenção à saúde chegava razoavelmente às comunidades”, aponta Guilherme Monção. “Agora houve um aumento gigantesco da demanda e os profissionais já não são suficientes”.
Ele diz que a chegada da pandemia provocou um colapso imediato no município: “Foi uma semana muito complicada. Tínhamos pessoas precisando ser entubadas e não tínhamos respiradores para todos”.
O Hospital de Guarnição, mantido pelo Exército e pelo estado do Amazonas, não possui UTI e tem 14 respiradores — até 18 de maio, eram apenas seis. Os pacientes graves são transferidos de barco para Manaus, centro médico de referência da população indígena da região, distante 862 quilômetros de São Gabriel. Atualmente, cinco pessoas estão internadas no município e seis foram transferidas para a capital amazonense. Em maio, uma equipe formada por duas médicas, uma fisioterapeuta, duas enfermeiras e seis técnicas de enfermagem foi deslocada pelo Ministério da Saúde para reforçar o atendimento no município.
A situação em São Gabriel, que hoje o médico descreve como “controlada”, deve se agravar nas comunidades indígenas. “Na cidade, a quantidade de pessoas entubadas é menor que a quantidade de respiradores, então a situação melhorou”, avalia Monção. “O segundo boom de casos será nas comunidades”.
O aumento dos casos nas comunidades indígenas se deve ao trânsito de pessoas que saíram do município em direção às aldeias no começo da pandemia: “Estamos encontrando muitas pessoas que estavam em São Gabriel da Cachoeira quando começou a aumentar os números da doença e foram para as comunidades, mas já estavam infectadas”.
CASOS ENTRE INDÍGENAS JÁ ATINGEM 93 POVOS
O geógrafo Hugo Nicolau Barbosa de Gusmão, responsável pelo blog Desigualdades Espaciais, fez também para o observatório um mapa da população indígena no município. Na maior parte dele a porcentagem de população indígena é superior a 86%. Como a população é quase toda indígena e o município quase não tem saneamento, os dados são convergentes em relação ao mapa anterior.
Carla Dias, antropóloga do Programa Rio Negro do ISA, conta que as famílias da região circulam bastante — de remo, de rabeta — e visitam muito a sede do município porque lá é que estão os serviços. “Uma das preocupações é garantir que as pessoas fiquem em suas comunidades”, explica.
Para tentar conter o avanço da doença, a prefeitura decretou um bloqueio no trânsito fluvial em março. “A ideia era montar barreiras para conter a chegada do vírus e ganhar um tempo maior para que não chegasse aos territórios”, diz Barroso, da Foirn. “Conseguimos ganhar tempo. Mas, uma vez que a Covid-19 chegou na sede, foi difícil conter a propagação em todo o território”.
O Brasil superou nesta quarta, 10, a marca de 734.047 casos e 38.543 mortes pelo novo coronavírus. Longe dos centros de tratamento e com baixa imunidade para doenças respiratórias, os indígenas são considerados um grupo de risco. Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), há 2.390 indígenas de 93 povos com Covid-19 no país e 236 vítimas fatais.
| Poliana Dallabrida é repórter do De Olho nos Ruralistas |