PL de auxílio emergencial para camponeses exclui Programa de Cisternas, decisivo no Semiárido

In Agricultura Camponesa, Agroecologia, De Olho na Comida, Em destaque, Principal, Últimas

Ausência ocorre apesar da explosão de casos de Covid-19 no Nordeste e da exposição dos agricultores à seca; texto que vai à votação na Câmara nesta quarta-feira também não prevê recursos para aquisição de sementes e mudas

Por Mariana Franco Ramos

O projeto de lei 735/2020, que trata de medidas emergenciais de amparo aos agricultores familiares do Brasil em isolamento ou quarentena durante a pandemia de Covid-19, deve ser votado nesta quarta-feira (1º) na Câmara. O relatório, apresentado pelo deputado federal Zé Silva (SD-MG), contudo, traz algumas diferenças em relação à proposta original, debatida com representantes de movimentos populares.

O texto não contempla, por exemplo, os R$ 150 milhões que seriam destinados ao Programa Cisternas, cujo objetivo é garantir a famílias rurais de baixa renda atingidas pela seca o acesso à água; nem verbas para aquisição de sementes e mudas da agricultura camponesa. Líderes ouvidos pelo De Olho nos Ruralistas defendem, ainda, uma diferenciação maior nos valores de crédito, especialmente para mulheres, e a desburocratização dos processos.

Líderes querem urgência na aprovação de auxílio. (Imagem: Reprodução/ASA)

Membro da coordenação executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Alexandre Henrique Pires lembra que o Semiárido concentra aproximadamente 50% das unidades de agricultura familiar do Brasil.

“A gente pode ter um bom inverno como o de 2020 ou um processo de estiagem extremamente prolongado, em que a disponibilidade hídrica das chuvas não permita a atividade produtiva ou permita de forma muito restrita”, afirma. “Por isso que o projeto precisa garantir a agenda do acesso à água”.

Segundo ele, além da questão emergencial, é necessário pensar em ações para o bioma no período pós-pandemia: “Os efeitos da pandemia na vida das pessoas de uma forma geral não vão se restringir ao período do decreto de emergência. O artigo quinto do PL, que trata do apoio às famílias, é vago quando fala que ‘poderá’ contemplar as cisternas. Lamentavelmente, ele não traz a agenda das cisternas como fundamental para a produção de alimentos”.

Em carta encaminhada a Zé Silva, a ASA chama a exclusão de “injustiça”. A organização destaca que o acesso à água é também condição fundamental para a higiene e a prevenção da Covid-19, assim como para garantir melhores condições de segurança alimentar e nutricional da população.

— Dos dez estados com maior número de infectados pelo novo coronavírus, cinco estão concentrados no Nordeste. A doença segue seu rumo de interiorização, atingindo, cada vez mais, uma população desassistida de hospitais e equipamentos.

Saiba mais aqui sobre o deputado Zé Silva: “Aliado de relator da MP da Grilagem abriu empresa para regularizar terras em Minas“.

RELATOR EXCLUIU SUGESTÕES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Para o secretário executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Denis Monteiro, é importante que o texto seja votado logo, porque existe um desamparo grande dos agricultores. Por outro lado, ele pondera que há várias lacunas em relação ao que foi proposto pelos movimentos. O PL reúne ao menos 23 matérias semelhantes, de diversos autores. “Existem várias articulações no âmbito do Parlamento e imagino que na votação haverá destaque em relação a esses e eventualmente outros pontos”.

De acordo com o agrônomo, os movimentos propunham um crédito que tivesse bônus de adimplência, ou seja, quem pagasse o financiamento em dia poderia ter o que os agricultores conhecem como rebate. “Era um projeto de R$ 20 mil e bônus de 50%, prazo de carência de cinco anos e dez anos para pagar”, descreve. “O relatório propõe crédito de R$ 10 mil, metade do valor, juros de 1% ao ano, no caso das mulheres 0,5% ao ano, carência de três anos e dez anos para pagar”.

Famílias em Riacho das Almas, Pernambuco. (Fotos: Bernardo Dantas/Habitat Brasil)

Em relação ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) Emergencial, uma das diferenças, conforme Monteiro, é que a proposta inicial estipulava R$ 10 mil por agricultor ou agricultora, sendo que 50% deveria ser acessado por mulheres. “O relatório fala em R$ 4 mil e, no caso das mulheres, R$ 5 mil. É um valor baixo”, opina.

Alexandre Henrique Pires, da ASA, também crítica a mudança. Na avaliação dele, garantir renda é uma forma de fortalecer a autonomia das mulheres. “Nesse momento de crise econômica, ambiental e política, as pessoas que mais sofrem são as mulheres. Elas acabam assumindo, pela própria pressão social da estrutura que a gente vive, o papel de alimentar a família”.

Outra questão importante, segundo os representantes das organizações, é que o relatório não prevê a possibilidade de aquisição de material propagativo, ou seja, sementes e mudas via PAA. “Se a gente pensa num projeto emergencial com foco na produção de alimentos, para garantir o abastecimento das famílias, é fundamental que os agricultores tenham os recursos genéticos necessários”, afirma o coordenador da ASA.

Ele critica, ainda, a exigência da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) para os agricultores acessarem as políticas. “As DAPs têm data de validade. Ele (agricultor) tem que sair da zona rural, ir à cidade e atualizar. Leva um tempo e, para quem está numa situação marginal, é muito ruim”, destaca. “Os indígenas normalmente nem têm DAP”. Pronaf é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.

Se aprovado pela Câmara, o projeto segue para o Senado e, na sequência, deve ser sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, antes de entrar em vigor. Pires pede que as redes e articulações do campo sejam mais consultadas. “Toda lógica do PL está voltada unicamente para a relação entre o governo federal e os estados. Não considera a possibilidade de editais públicos, do envolvimento de organizações de agricultores e de demais organizações não governamentais”.

| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas*|

Foto principal (Habitat Brasil): camponesa carregava balde de 20 litros na cabeça, antes das cisternas

* a cobertura sobre segurança e soberania alimentar durante a pandemia tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil

You may also read!

Vídeo mostra como mercado, imprensa, Legislativo e Judiciário naturalizaram Bolsonaro

De Olho nos Ruralistas reúne informações e imagens sobre a ascensão do político patrocinada por empresários e jornalistas; omissão

Read More...

Proprietária que reivindica terras em Jericoacoara é sobrinha de governadores da ditadura

Tios de Iracema Correia São Tiago governaram o Ceará e o Piauí durante os anos de chumbo; os três

Read More...

Clã que se diz dono de Jericoacoara foi condenado por fraude milionária em banco cearense

Ex-marido de Iracema São Tiago dirigiu o Bancesa, liquidado por desviar R$ 134 milhões da União e do INSS

Read More...

Leave a reply:

Your email address will not be published.

Mobile Sliding Menu